sexta-feira, 7 de março de 2008

0035) Crianças e monstros (2.5.2003)




Por que motivo os garotos de hoje em dia têm uma fascinação tão grande por monstros? Seja nos gibis, nos filmes, nos desenhos animados, nos video-games, nos jogos de computador, nos RPGs, nos jogos de cartas tipo Magic: the Gathering, é uma procissão infindável de criaturas horripilantes, seres saídos de um pesadelo ou de uma bad-trip lisérgica. Durante os filmes O Senhor dos Anéis, vi na platéia pais ou mães fechando assustados os olhos diante de alguns seres, enquanto os garotos comiam pipoca sem nem bater a pestana, para não perder um fotograma sequer.

Aliás, nem sei por que fiz essa pergunta inicial, porque a verdade é que eu mesmo quando tinha dez anos não me interessava por outra coisa senão criaturas monstruosas. Não tínhamos a riqueza de opções que a cultura de massas de hoje proporciona, mas lembro com ternura revistas como Histórias Macabras ou Ultra Ciência, filmes como Tarântula ou a versão original do King Kong

E recordo a atração e repulsa que me causava a visão de alguns mendigos deformados que vez por outra eu avistava pelas calçadas. Quanto mais fracos e indefesos somos, mais temos vontade de ter medo, e quando descobrimos um tipo de medo que não envolve perigo, mergulhamos nele de cabeça.

As crianças amam nos monstros, talvez, a sua feiura. Quanto mais feio, mais fascinante. Talvez porque o aspecto heterogêneo dos monstros (asas de morcego, dentes de tigre, patas de elefante, não-sei-quantas cabeças) reproduza em forma visual a heterogeneidade de impulsos que a criança sente dentro de si logo após o nascimento: raiva, fome, desejo, dor física, desconforto... 

Aos cinco ou seis anos, o garoto, já domesticado, alfabetizado e tudo, reencontra naqueles seres bestiais um equivalente às forças primitivas que recorda terem se agitado dentro dele próprio.

O monstro é tudo que a Cultura e a Civilização ainda não conseguiram domesticar dentro de nós. Cada um de nós nasce monstro. Nasce, mentalmente, uma criatura feita unicamente de desejos físicos e desconfortos físicos. Os desejos são satisfeitos com regularidade, mas novos desejos vão surgindo. Os desconfortos são apaziguados, mas só até um certo ponto. 

Aprendemos a ver, a ouvir, a lembrar, a andar. Aprendemos a imitar sons que outras pessoas nos repetem sem cansaço até que começamos a balbuciá-los de volta. Vamos aprendendo que temos um rosto, temos um nome, temos uma identidade, somos alguém que aquelas criaturas que nos cercam já conheciam antes mesmo do nosso nascimento. Isso nos dá um senso de importância, e de que o mundo tem ordem. Mas todas as vezes que vemos um monstro, lembramos do que éramos, do que talvez nunca tenhamos deixado de ser.

Temos o que Augusto dos Anjos definia como “...essa necessidade do horroroso, que é talvez propriedade do carbono!” O Monstro é a transcrição visual do que sentimos naqueles momentos em que nossa mente vê a si própria em sua totalidade.





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