segunda-feira, 3 de julho de 2023

4958) Salve o compositor popular (3.7.2023)




Fazer uma música é um dos prazeres mais simples e artesanais que nos restam, num século em que tudo tem que ser, a) monumental, b) lucrativo, ou c) legitimador de alguma tecnologia recém-posta à venda. 
 
Há quem diga que literatura é a mais barata das artes, uma “arte a custo zero”, porque pode-se escrever um livro inteiro usando apenas papel e lápis. Pois olhe, música você pode fazer de mãos nos bolsos, e assobiando pra não esquecer a melodia. Eu já compus assim. 
 
Quantos bilhões de melodias já terão sido inventadas, decoradas e repetidas, nestes últimos milênios de História? Perderam-se?  Foram esquecidas?  Que importa? Também se perderam ou foram esquecidas as pessoas que as criaram, e mesmo assim não acho que a maioria delas creia que viveu em vão. 
 
Tenho para música aquilo que a gente chama de “ouvido duro”: dificuldade para lembrar uma melodia, para distinguir duas notas ou dois acordes muito parecidos, para perceber que uma corda de violão está semitonando. Talvez por isso mesmo, cada lararaiá que inventei me parece um triunfo pessoal sobre mim mesmo, digno de comemoração. 
 
Uma vez, na casa de alguém, eu estava conversando com um músico de orquestra sinfônica, um cara da minha idade, mas com uma carreira profissional que já vinha desde a infância. 
 
– Acho incrível a pessoa que compõe – disse ele. – Tocar, como eu toco, é fácil. Mas compor!  Nunca consegui compor uma música. 
 
– Mas é muito fácil – disse eu, com a auto-confiança dos primitivos. Peguei um violão que estava por perto, arpejei meu ré-maior básico e comecei a solar. – Tiruliruliro... tralá-laiá... Pronto, está aqui uma melodia. Compus agora. 
 
Ele recuou horrorizado, como se eu tivesse lhe exibido uma ratazana sanguinolenta. 
 
– Mas compor não é isso! – exclamou. – Não é apenas enfileirar notas. É algo muito mais complexo. 
 
Ele tinha razão. Ele é um músico erudito. Eu sou um músico popular. Eu posso compor assobiando, em pé no ônibus. Eu posso me dar o luxo do lugar-comum, do formatinho banal, da melodia naïve. O luxo da repetição, como o pintor de paisagens da Praça General Osório. Ele, não. Para ele, vale sem dúvida a máxima de Thomas Mann quanto à literatura: “Escritor profissional é aquele para quem o ato de escrever é mais difícil do que para as outras pessoas”. 
 
Minha primeira música gravada foi “Caldeirão dos Mitos”, que Elba Ramalho incluiu em seu segundo álbum, Capim do Vale (1980). Quando o disco saiu, eu tocava a faixa cinquenta vezes por dia, para me assegurar de que ela não tinha ido embora. Era bom demais para ser verdade. 
 
Uma noite, nessa época, estava bebendo com amigos num bar de João Pessoa, e a algumas mesas de distância um grupo de jovens alegres, de violão em punho, cantava músicas variadas. De repente, começaram a cantar o “Caldeirão”: “Tãrãrã-tãrãrã... Eu vi o céu à meia noite, se avermelhando num clarão...” 

Comoção geral na minha mesa; eu fiquei sem fala. Os amigos me disseram: “Vai lá!... Vai na mesa deles, fala que a música é tua!”  Eu, sabiamente, não fui. Ir para quê? Para amarrar a importância da música à presença do autor? De jeito nenhum. Música gravada é passarinho fora da gaiola. “Sabiá lá na gaiola fez um buraquinho... voou, voou, voou, voou...” 
 
Alguns anos atrás, eu estava na FLIP, em Paraty. Tinha acabado de anoitecer e eu vinha testando meus tornozelos por cima das pedras traiçoeiras daquele calçamento. Numa esquina, encontrei um ou dois amigos fazendo parte de um grupo maior. Parei, trocamos abraços, cumprimentos, apresentações rápidas, dez minutos de papo, e o grupo se desfez. 
 
Saíram todos e ficamos eu e um senhor, idoso, negro, bem vestido. 
 
– O senhor é nordestino – constatou ele, com simpatia. 
 
– Sou mesmo – disse eu. Estendi a mão e me apresentei: – Braulio Tavares, da Paraíba.
 
– Prazer – disse ele. – Sou Edeor de Paula. Fiz um samba em homenagem ao seu Nordeste. 
 
Eu não reconheci o nome, como não reconhecera o rosto. 
 
– Que ótimo. Como é o samba? 
 
Ele pigarreou e puxou: 
 
– Marcado pela própria Natureza... 
 
E eu já emendei em uníssono, no tom dele, com o verso seguinte:
 
-- O Nordeste do meu Brasil... Oh, solitário sertão, de sofrimento e solidão...



(Edeor de Paula)
 
E ali, naquela encruzilhada de um começo de noite paratiense, cantamos todo o samba “Os Sertões”, que desde 1976, quando foi lançado pela escola Em Cima da Hora, eu me acostumara a cantar em Campina Grande, na nossa batucada de fins de semana, a “Batucada de Lanka”. Cantando junto com o autor, eu me lembrei de Lanka, de Lucy, de Chiquinho, de Marquinho, dos batuqueiros que já se foram e que dariam altas gargalhadas se me vissem ali, quarenta anos depois, tirando a maior onda e cantando o samba junto com o autor do samba. 
 
Seu Edeor se comoveu, certamente; nos despedimos com um abraço amistoso, e ele deve ter experimentado pela milésima vez o raro prazer de ser conhecido por uma música que criou. 
 
Não existe fórmula nem receita para fazer música. Ela pode ser criada na calada da noite por uma pessoa sozinha, e pode surgir numa ruidosa mesa de bar, rabiscada às pressas em guardanapos, com palpites e pitacos até do garçom. O que importa é que depois de criada a música cria seu primeiro círculo de ressonância, entre os que cantam, os que escutam, os que decoram, os que repetem... 
 
A música é gravada e ai vira tudo outro patamar. A gente ouve a música no rádio do táxi, no corredor do shopping, no palquinho de um forró, no alto-falante da rodoviária, na sala de espera do dentista... É um passarinho que voa para onde quer, sem pedir outra coisa senão o alpiste de três minutos de atenção. O cara que compôs a música também escuta, mas dá menos atenção à música do que aos rostos e aos olhos de quem está ouvindo. Não basta a música tocar no rádio: ela tem que tocar as pessoas. 
 
Dizem que Oscarito, no auge das chanchadas que estrelava com Grande Otelo na Atlântida, costumava botar algum disfarce de óculos e chapéu e assistir ao filme nas sessões da tarde na Cinelândia. Entrava, sentava num cantinho... e não olhava para a tela. Olhava para a platéia. Queria ver se a piada funcionava, se o timing de uma cena tinha ficado correto... É nisso que a gente pensa: no que o público está pensando. 
 
O que bate com um preceito sábio de Bertolt Brecht, quando explicava a diferença entre o teatro tradicional e o seu teatro épico: no teatro tradicional, a platéia observa o palco; no teatro épico, o palco observa a platéia.
 
Por isso quando a gente encontra um desconhecido numa esquina e ele, sem saber sequer o nosso nome, é capaz de lembrar e cantar uma música que a gente fez, então nesse momento o circuito se fecha. A energia flui. A gente fica sabendo (mais uma vez) que aquela noite em claro não foi em vão.