sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

4043) As letras do crime (6.2.2016)



Você é um cidadão norte-americano que trabalha para uma empresa de pesquisa, contratada, em última análise, pelo governo do seu país. Sua missão é viver no Terceiro Mundo: em países quentes, com cidades de trânsito infernal, água pouco confiável, costumes incômodos, idioma inexpugnável, valores ininteligíveis.  Você avalia as coisas, preenche planilhas, faz uma pesquisa meio quantitativa e meio qualitativa. Deve transmitir suas impressões, opiniões, julgamentos, avaliações da probabilidade disto ou daquilo acontecer.

O narrador de The Names (1982) de Don DeLillo é um cara que produziu uma lista de 27 indignidades praticadas por ele na convivência conjugal; a lista foi escrita por ele meio que psicografando o que ele achava que a esposa pensava a seu respeito. Agora separado, ele se dedica a preencher as planilhas e estudar grego, afinal estão morando em Atenas. Há uma simetria incubada entre essa massa de tabulações e índices que ele, James Axton, manda via telex para seus patrões. E há em volta dele (que só o percebe mais adiante) uma série de crimes simétricos acontecendo. Crimes onde – como nos policiais clássicos de Agatha Christie (Os Crimes do ABC) ou de Ellery Queen (A Tragédia de X, ...de Y, ...de Z) ou de Borges (“A morte e a bússola”) – as letras, a grafia, o local do crime, são coisas cruciais. 

“Nunca pensei que teria saudade do meu apartamento,” diz uma amiga de Axton, em Jerusalém; “deve ser porque meu corpo ficou lá.” Seus amigos expatriados são todos razoavelmente abastados e vão toda noite aos restaurantes locais, onde têm noitadas espirituosas rodeados por figurantes gregos. Há um cineasta meio maldito, amigo de Axton, que quer transformar toda a investigação desse mistério (a esta altura já se percebe ser um culto clandestino) num documentário. É um desses artistas intensos, que se arrebatam por uma idéia e não abrem nem pra um trem. Ele e Axton conseguem conversar, separadamente, com homens do culto. Têm diálogos de terrestre com marciano, e vão embora.

DeLillo tem uma prosa como de quem tem um baralho bem traçado na mão e vai estalando cada carta na mesa, virando e estalando. Aquela maneira meio realista-modernista dos norte-americanos, cada frase fazendo cair pelo menos uma ficha. A descrição dialoga com o leitor sem que o personagem perceba. Ele tem também um olho bom para no meio da descrição de um passeio ou de uma conversa anotar vislumbres. “Uma mulher colocava estrume de vaca em fôrmas ovais para secar ao sol.” “Um chapéu de homem veio esvoaçando pela rua afora.” “Um homem a cavalo, uma mulher que caminhava atrás segurando a cauda do cavalo.”