segunda-feira, 23 de março de 2009

0910) Um homem chamado Rosa (15.2.2006)




Guimarães Rosa foi enterrado de óculos, porque era míope. Sua descoberta visual do mundo está narrada nas aventuras do menino míope Miguilim, em Corpo de Baile.

Era o filho mais velho de sete irmãos. Uma vez, na infância, encheu de água uma banheira, deitou-se nela, e pediu a dois irmãos menores que sentassem em cima dele. Queria ver quanto tempo agüentava sem respirar. O pai apareceu e interrompeu o experimento científico.

Nos tempos de estudante “liso”, costumava rifar os livros que acabava de ler, vendendo bilhetes aos colegas para comprar mais livros.

Escreveu contos fantásticos nos anos 1930 para O Cruzeiro, somente para embolsar uma grana, sem saber que estava fazendo o que nos EUA da época se chamava de “pulp fiction”.

Era tímido, mas cheio de expedientes. Quando começou a namorar Lygia (Lili), sua primeira esposa, costumava passar na porta do colégio dela, na hora da saída, dar de cara com ela e exclamar: “Mas que coincidência!” Em breve as amigas dela já apontavam: “Lili, lá vem Coincidência”.

Era expansivo, imensamente carinhoso. As filhas (Vilma e Agnes) o chamavam João Papai Beleza; as netas de Vovô Beleza. Adorava falar em público. Uma vez, nas bodas de ouro dos pais, festa animadíssima, pediram-lhe para fazer um discurso. Ele foi se entusiasmando e começou a lembrar os “ausentes”; daí a pouco todo mundo estava chorando.

Era supersticioso. Se por distração passava por baixo de uma escada, voltava atrás, explicando: “Tem que despassar!” Quando presenteou seu amigo Geraldo França de Lima com uma faca de caça, teve que recitar três vezes: “Que esta faca não corte nossa amizade”.

A família inteira tinha um viés para o sobrenatural. Sua mãe e seu irmão José Luís narravam episódios de visagens e aparições. Morando no Rio, Rosa chegou a freqüentar um centro espírita na Rua Voluntários da Pátria.

Morria de medo de tomar posse na Academia Brasileira de Letras. Por superstição, e por consciência: tinha tido uma isquemia, o coração estava muito mal, achava que não suportaria a emoção: “Eu sou médico, e sei exatamente como estou”.

Dizia que só tinha se candidatado para honrar sua terra natal (Cordisburgo) e porque os pais só o considerariam um escritor de verdade se entrasse para a Academia.

Na noite da posse, Geraldo França de Lima foi buscá-lo e o encontrou de pijama: “Não vou mais”. Insistiram, ele vestiu-se em silêncio, irritado. Ao sair, pousou a mão na porta e disse: “Vou, mas não volto”.

Era uma noite chuvosa. Ele só desceu do carro porque na mesma hora chegaram Juscelino e D. Sara Kubitschek, que vinham para a cerimônia, e o levaram para dentro.

Rosa entregou a Geraldo um vidro de coramina e disse: “Se durante o discurso eu fizer ‘assim’ com a mão é porque estou tendo um enfarte”. No fim, cumprimentado por todos, exclamava: “Eu não vou morrer, não vou morrer nunca mais. Sou o maior orador do mundo!”

Três dias depois, encantou-se para sempre.






0909) A blasfêmia (14.2.2006)



A blasfêmia é um ato de libertação. Sofremos na infância uma lavagem cerebral (toda educação tem algo de lavagem cerebral) proibindo-nos sequer de pensar certas coisas. A religião católica ameaça com o fogo do Inferno e com tormentos indizíveis certas ofensas, mesmo mentais, à Divindade. Quando adolescente, eu passava noites em claro pensando coisas sacrílegas e pornográficas, mas não via trezentos raios de fogo trovejando do céu, reduzindo-me a algo menor que uma mosca torrada. Quando conheci o cinema de Luís Buñuel, um especialista em sacrilégios, entendi-o profundamente. Não, nunca tive raiva da igreja. Apenas queria ter certeza de que ninguém me eletrocutaria para sempre só porque visualizei a imagem de... Deixa pra lá, não quero escandalizar os leitores.

Em Memórias, Sonhos e Reflexões C. G. Jung narra um episódio de infância em que o esforço para aceitar a visualização de uma cena sacrílega (e, vista em retrospecto, bastante bobinha) produziu nele alguns dias de incessante terror que culminaram (quando permitiu por fim que a imagem se formasse em sua mente) num estado eufórico e quase transcendental de libertação íntima. Comento este episódio em meu livro O Anjo Exterminador (Ed. Rocco, 2002), porque ele tem relevância para discutir a tendência blasfema dos surrealistas parisienses em geral e de Buñuel em particular. A blasfêmia é um ato de afirmação da liberdade individual: “Eu penso no que eu quiser, e assumo a responsabilidade”.

Não é o caso de episódios recentes como a publicação num jornal dinamarquês de cartuns ofensivos ao Profeta Maomé. O que os dinamarqueses fizeram não é uma blasfêmia, porque para eles, provavelmente, Maomé é uma entidade tão exótica e distante quando o Padrinho Ciço ou Iemanjá. Não acho que um humorista dinamarquês (ou de qualquer país ocidental) tenha problemas íntimos em fazer gozações com o respeitável Profeta do Islã.

Este é um ingrediente ainda mais explosivo na revolta dos muçulmanos. Eles não apenas vêem seu ídolo ofendido, como percebem que os ofensores estão se lixando para o ídolo. Na verdade, nem sequer quiseram ofendê-lo: querem apenas ridicularizá-lo, porque não lhe dão nenhum importância. É essa atitude arrogante e desdenhosa do Ocidente para com seus valores sagrados que enfurece ainda mais os islamitas.

Um dos polêmicos cartuns, reproduzido na imprensa, mostra Maomé chegando todo enfarruscado no Paraíso, onde é recebido por Buda, Cristo e Jeová, que lhe dizem: “Liga não, eles fazem isso com a gente o tempo todo”. Ao contrário dos países do Oriente Médio, onde Igreja e Estado geralmente se misturam, as sociedades ocidentais têm essa atitude bem republicana de “colocar Deus no seu devido lugar”. O que os cartunistas dinamarqueses fazem não é heresia nem blasfêmia; isto só acontece quando agredimos algo em quem acreditávamos. E, não sendo blasfêmia, é mera pose, mero escracho, não envolve nenhum tipo de crescimento ou libertação espiritual.

0908) A patáfora (12.2.2006)


(Ilustração: Jerry Uelsmann)

A patáfora é um interessante conceito literário inventado pelo escritor Pablo López, ou Paul Avion. Ela é uma consequência direta do conceito de ‘Patafísica, criado no século 19 por Alfred Jarry, autor do famoso Ubu Rei. A ‘Patafísica (escreve-se assim mesmo, com um apóstrofo antes do P) é descrita como “a ciência das soluções imaginárias”, ou como “a ciência que lida com as exceções, e não com as regras”. Não é uma ciência, claro: é um movimento literário de cunho absurdista, onde se misturam surrealismo, humor, subversão do cientificismo e do racionalismo, sátira ao pedantismo e à pompa do Saber oficial. Ver: http://www.pataphysics-lab.com/sarcophaga/.

A patáfora é um prolongamento da metáfora, que é um dos mais simples e mais utilizados recursos literários. A metáfora é simplesmente uma comparação entre duas coisas na qual em vez de dizermos que A parece com B dizemos que A é B. “Tua boca é uma fruta madura”, “o Brasil de hoje é um verdadeiro cassino”, “minha vizinha é uma bruxa”, “esse carro é uma lata velha”... Já a patáfora seria uma figura literária mais complexa, que ocorre quando o autor toma a metáfora como algo real e passa a trabalhar dentro dessa nova realidade.

Eis uma comparação: “Os olhos de João estavam vermelhos como duas poças de sangue” (uma mera associação de idéias por semelhança). Metáfora: “Os olhos de João eram duas poças de sangue” (o leitor entende que foi feita uma comparação, e que a frase não deve ser tomada ao pé da letra). Patáfora: “Os olhos de João eram duas poças de sangue. Testes de laboratório mostraram que a primeira era do tipo AB positivo, e a segunda A negativo, o que levou o Comissário a supor que se tratava dos sangues da vítima e do assassino”. Ou seja: a patáfora parte da leitura literal de uma metáfora, e constrói sobre esta leitura todo um outro nível descritivo, ou narrativo.

A partir do momento em que patáfora se inicia, o universo onde vinha ocorrendo a história deixa de existir. A metáfora foi uma ruptura simbólica com esse universo, e a patáfora consiste em levar essa ruptura a sério, até as últimas conseqüências. Nas palavra de Pablo López, “é um processo que ocorre quando o rabo de um lagarto cresce tanto que se separa dele e cria um novo lagarto em sua ponta”.

O mais interessante da patáfora é o modo como López diagnostica certas teorias científicas (como a “teoria dos cordões” da física contemporânea) como legítimas patáforas. São teorias construídas em cima de teorias, que por sua vez tinham como ponto de partida outras teorias... A cada nova formulação destas, estamos um passo mais longe da realidade física. São metáforas que se sucedem umas às outras, e de repente alguém propõe uma patáfora que vai muitíssimo mais além, mas que não faz mais do que assumir a realidade do que vinha sendo proposto. A patáfora revela, mais do que um recurso literário, um mecanismo intuitivo e metalinguístico da produção cultural na arte, na ciência, em tudo.

0907) A Copa de 66 (11.2.2006)


(Blow-Up)

Vi no Canal Sportv o filme oficial da Copa do Mundo de 1966. Para nós, essa Copa tem um gosto azedo, tendo sido a única vez, acho, em que o Brasil caiu logo na primeira fase. Os ingleses foram campeões um tanto “na marra”. Tinham um defensor, um tal de Stiles, que batia que dava gosto; e na decisão tiveram validado um gol mais do que fajuto, onde a bola não entrou.

Acho que uma conexão que a imprensa nunca explora, que parece não ocorrer hoje a ninguém, é o fato de que a Londres onde aconteceram aquela Copa e aquela decisão foi a “Swinging London” dos Beatles e dos Rolling Stones, de Carnaby Street e Mary Quant, e que aquela vitória no estádio de Wembley veio em sintonia com um momento mágico vivido pelo país em todos os setores, mas de modo especial na música popular e no cinema.

Ian MacDonald lembra que “o verão de 1966 foi especialmente alegre e turbulento, e 'Good Day Sunshine', composta numa tarde quente por McCartney, na mansão de Lennon, foi uma das muitas canções que souberam captar com precisão essa atmosfera”. Quando a Copa do Mundo teve início, em 11 de julho, os Beatles tinham encerrado há pouco a gravação do álbum Revolver (que seria lançado em 5 de agosto), e estavam no meio de sua última turnê, uma das mais acidentadas. (Tiveram um mal-entendido com a Primeira Dama das Filipinas. sendo escorraçados do país em 5 de julho, e depois se recusaram a tocar no dia 20 na África do Sul, devido ao “apartheid”.)

Quando a Inglaterra ergueu a taça no dia 30 de julho, ao derrotar a Alemanha por 4x2, começava a pipocar a polêmica devido à frase “somos mais famosos do que Jesus Cristo”, dita por Lennon. Foi o ano em que Michelangelo Antonioni desembarcou em Londres e pintou de verde a grama de um parque para filmar um conto de Julio Cortázar (Blow-up). Roman Polanski tinha acabado de lançar Armadilha do Destino, filmado no interior das ilhas britânicas. Richard Lester, o “diretor dos Beatles”, estava dirigindo Buster Keaton e Zero Mostel em Um escravo das Arábias em Roma. O seriado de ficção científica Dr. Who era o grande sucesso na TV. Truffaut tinha vindo da França para rodar Fahrenheit 451 nos estúdios Pinewood. Joseph Losey tinha lançado sua adaptação das aventuras da heroína dos quadrinhos, Modesty Blaise.

A Inglaterra campeã do mundo tinha um time antipático, que batia muito, mas com alguns craques (Banks, Hurst, Best, Charlton). Afora isto, era o país da moda no universo pop, graças ao cinema e à música popular que brotavam ali. Esta sensação de onipotência e alegria se reflete no famoso episódio do locutor Kenneth Wolstenholme, que transmitia o jogo final. Com 3x2 para a Inglaterra, ele observava: “Há alguns torcedores na beira do campo, eles acham que o jogo já acabou...” Nesse instante, Hurst invadiu a área e marcou o quarto gol, fazendo-o gritar: “Acabou agora!” Naquele ano, o Submarino Amarelo foi a ilha ancorada na Mancha.

0906) “Zazie no Metrô” (10.2.2006)



O Cine Odeon (Rio) abriu uma retrospectiva de Louis Malle e fui correndo rever este filme de 1960, baseado no romance célebre de Raymond Queneau. David Thomson o considera “um filme esmagadoramente sem graça”, mas este é o equívoco mais freqüente de quem vê um filme ser anunciado como “comédia”; afinal, no vocabulário dos distribuidores de cinema ainda não existe o rótulo de, digamos, “vaudeville absurdista”. Zazie só é comédia na medida em que recorre ao repertório essencial das comédias: confusões de identidade, ação corporal, perseguições incessantes, quiproqüós, mal-entendidos, brigas ferozes que não deixam ferimentos. Existe nele algo dos filmes de Buster Keaton e Jerry Lewis, dois jesus-pequeninos dos diretores da “nouvelle vague”, mas seria demais esperar que um destes diretores tivesse a intenção de provocar risadas.

As correrias e confusões de Zazie não induzem ao riso. São um recurso que visa ao desnorteamento espacial e temporal do espectador, sabotando o piloto automático que ele costuma ligar nos filmes convencionais, e alertando-o de que um susto e uma surpresa estão sempre à sua espera na tomada seguinte. Zazie é uma versão infantil (no bom sentido do termo) de filmes como Uma mulher é uma mulher de Godard. É o mundo dos amores e da boêmia, só que visto através dos olhos de uma garotinha do interior que entra em contato com duas estranhas espécies: os Parisienses e os Adultos. Isto dá ao filme, aliás, um tom permanente de indefinição ou inversão sexual: uma menina cabeçuda e desbocada, que fala palavrão como um garoto (“Napoléon mon cul!”), um homem casado que dança de drag-queen numa boate, mulheres atiradas, homens tímidos.

Há um pouco de Jacques Tati numa cena em que o cenário modernoso e de péssimo gosto de um bar é botado abaixo por uma briga generalizada, assim como numa perseguição amalucada ao longo de um engarrafamento parisiense. Mas mais do que o humor de Tati o que temos aqui é o humor de Queneau, autor do livro original. Um humor menos voltado para a gargalhada do que para o sorriso silencioso do leitor que, diante de uma cena sem pé nem cabeça, logo percebe que ela ocorre assim por se basear num trocadilho, ou numa confusão verbal, ou numa paródia ou pastiche, ou no fato de personagens se comportarem como se estivessem em histórias de gêneros diferentes. Em muitos episódios cômicos desta natureza nos sentimos como alguém que toma parte numa festa num país estrangeiro: ficamos sem entender a maior parte do que foi dito ou feito, mas não ligamos, porque a todo instante acontece algo inesperado e divertido.

Zazie é um misto entre as comédias politizadas de Godard e as diversões hilariantes e sem-culpa de Richard Lester. Seu objetivo é menos o riso do que o desmantelamento constante de protocolos narrativos, da sintaxe esperada pelo leitor/espectador, e neste aspecto consegue reproduzir em imagem e som a desconcertante, erudita e amalucada prosa de Queneau.