sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

0822) “O Chão que Ela Pisa” (4.11.2005)




Não existem, ao que eu saiba, grandes romances literários sobre o mundo do rock. Parece até que cultura-de-massas e alta literatura são modos de pensar incompatíveis, e que para entender o pensamento de uma é preciso desfazer-se dos hábitos mentais da outra. 

Em todo caso, uma bela tentativa de fazer um romance épico sobre a vida e a carreira de astros do rock é este romance de Salman Rushdie, The Ground Beneath Her Feet no título original, o qual não deixa de me lembrar o título de uma bela canção que mistura rock e 3o. mundo, “Diamonds on the Soles of her Shoes”, que Paul Simon gravou na África do Sul em seu histórico Graceland

Rushdie é um escritor indiano educado em Londres. Nascido em 1947, pertence à geração que cresceu com os Beatles, os Rolling Stones e Bob Dylan, cujos versos aliás são citados de vez em quando. 

O Chão que Ela Pisa (Companhia das Letras, 1999) conta a história de uma banda de rock indiana formada por um casal (como White Stripes, Eurythmics, Everything But The Girl e outras): o compositor e guitarrista Ormus Cama e a cantora Vina Apsara. Os dois se conhecem adolescentes, se apaixonam, se separam, se reencontram, separam de novo... enfim, o que habitualmente acontece nessas histórias. Existe uma certa ressonância (que Rushdie deixa óbvia) com o mito de Orfeu e Eurídice: a amada que morre e o cantor que vai resgatá-la do mundo dos mortos. 

O livro é irregular, mas magnificamente bem escrito. Rushdie é um estilista completo, capaz de compactar num pequeno trecho melodioso, coloquial e fluido meia dúzia de informações díspares e mutuamente complementares. Seu conhecimento do mundo do rock e dos bastidores de uma super-banda é tão limitado quando o meu (apesar de ele ser amigo de Bono e de outros megastars), mas não é esta a questão. 

O mundo do rock descrito por ele é um mundo limítrofe entre o nosso universo e um universo vizinho, que é onde ocorre a história. Lá, Madonna não é uma cantora, é uma jornalista de rock. Kennedy não foi morto em Dallas. Elvis Presley chama-se Jesse Parker, e seu empresário (o Coronel Parker, em nosso mundo) chama-se lá Tom Presley. E Ormus Cama é um rapaz de Bombaim que compõe as grandes canções do rock lá na Índia antes mesmo que elas sejam gravadas nos EUA. Por algum processo cósmico de pré-ressonância, nesse universo paralelo ele capta as canções antes mesmo de seus autores. 

O livro tem dezenas de personagens, e sua ação cobre várias décadas. A edição de bolso tem 595 páginas, e cada uma delas mereceria duas de comentários. A prosa de Rushdie, apesar de fluida e vívida, é extremamente trocadilhesca, embora não à maneira intrincada de Joyce, mas com os trocadilhos emergindo espontaneamente, como acontece na nossa prosa coloquial. Rushdie é um excelente escritor, capaz de nos arrastar pelo tempo e pelo espaço, em qualquer direção, pela simples força de seu encantamento verbal.






0821) A imaginação (3.11.2005)





(ilustração: Jeffrey Michael Harp)

A imaginação parece criar coisas do nada, como um mágico que enfia a mão na cartola sem saber o que vai sair dali. Tanto pode sair um coelho cor-de-cenoura mastigando um catálogo telefônico quanto um pão francês com uma chave inglesa dentro. 

Onde estavam estas imagens, antes do instante em que eu pensei nelas? Não estavam em lugar nenhum: foram conjuradas por um esforço meu, pela conexão inesperada (e que eu nunca fiz em minha vida, até alguns segundos atrás) entre conjuntos de sinapses no interior de meu cérebro, conjuntos de reações químicas que envolvem os padrões verbais e visuais relativos ao elementos evocados ao acaso (“mágico”, cartola”, “coelho”, etc.).

A escritora americana Audrey Niffenegger (autora do elogiado The Time Traveller’s Wife) diz num artigo recente: 

“De onde vêm as idéias? As minhas tendem a brotar do nada. Num instante, estou tentando lembrar onde deixei minhas chaves. No minuto seguinte estou pensando numa menininha chamada Lizzie, cujo rosto é todo coberto por pelos negros e macios. Ela não estava em minha mente um instante atrás; de onde terá vindo? De algum salão muito amplo, cheio de idéias, penso eu. Imagino Lizzie esperando pacientemente, segurando uma senha onde há um número, esperando seu número ser chamado. Talvez esteja esperando ali há anos. Agora chegou sua vez. Ele se levanta, pronta para pular para dentro de minha mente, com a esperança de que tudo dê certo”.

Pessoas diferentes têm a imaginação desencadeada por processos diferentes, com ênfase naquilo que fazem de maneira mais espontânea. 

Algumas pessoas pensam por associação de idéias; outras, por associação sonora de palavras; outras, por associação visual de imagens. 

Um exercício que faço com freqüência é pegar meio ao acaso um álbum de fotografias ou de pinturas, olhar para uma delas, e fazer de conta que estou vendo um filme. Que lugar é aquele? Quem são aquelas pessoas, o que estão fazendo ali, o que estão pensando naquele exato momento, que história está acontecendo com elas? 

Se você se concentrar, os personagens vão brotando, as histórias vão brotando. O poeta Wallace Stevens disse: “A imaginação é como a luz: ela não adiciona nada além de si mesma”. Ou seja, tudo já estava de alguma forma em nossa mente, naquele galpão às escuras. A imaginação é o facho de lanterna que o percorre e revela o que está amontoado lá dentro.

Outra metáfora útil é pensar na imaginação como o primeiro momento de contato entre dois elementos da memória que nunca haviam sido conectados antes. Se eu penso num cangaceiro empunhando uma pistola, esta imagem pertence à memória; já a vi. Mas se penso num cangaceiro empunhando uma enceradeira, acho que criei uma ligação eletroquímica em meu cérebro ligando estes dois conjuntos de registros, “cangaceiro” e “enceradeira”. 

Imaginar é produzir novas conexões, novos atalhos, novas passagens. É um jogo de “ligar os pontos”, sendo que os pontos são fornecidos pelos sentidos.






0820) A noiva cadáver de Tim Burton (2.11.2005)



Falei recentemente nesta coluna da minha admiração pelos filmes de Tim Burton ao comentar A Fábrica de Chocolate (26 de agosto). O recém-estreado A noiva cadáver me parece imensamente superior a este outro. É um deleite para os olhos de quem se encantou com O estranho mundo de Jack (“The nightmare before Christmas”), um longa-metragem de animação feito inteiramente com bonecos. Esta é uma tecnologia que muitos julgavam sepultada com as novas (e rápidas, e baratas) técnicas digitais. Burton a traz de volta com o mesmo encanto espontâneo com que cultiva narrativas de terror gótico, ambientações da Inglaterra vitoriana e elementos visuais dos filmes B das décadas de 1930 ou 40. Burton é um garoto que adorava histórias de terror, e soube crescer o suficiente para manejar orçamentos de 150 milhões de dólares como o da Fábrica de Chocolate, ou os 80 milhões de dólares de Batman Returns, que valiam muito mais em 1992.

O filme transcorre ao longo de uma única noite, e é o luar que lhe dá uma paleta de cores que vão do cinza-grafite ao chumbo-azulado, passando pela asa-de-graúna-diluída, pelo guarda-chuva-daltônico e pelo durepoxi-exposto-ao-sol. Recorro a estes termos pouco vernaculares para tentar exprimir a riqueza de tonalidades desse ambiente soturno, melancólico, prateadamente romântico. Quando o protagonista encontra sua noiva macabra (não resumirei aqui a história), desce ao mundo subterrâneo do pós-vida, há uma transição brusca para outro registro cromático. As luzes e cores do mundo dos mortos sugerem as geléias e celofanes coloridos dos spotlights de um cabaré noturno. O mundo do Além é mais barulhento, mais festivo e mais vívido do que o mundo dos vivos.

O uso da animação em “stop motion”, em que os bonecos são colocados em posições sucessivas, com mínimas diferenças, e fotografados, dando a ilusão de movimento, cria uma envolvente impressão de realidade e fantasmagoria. O crítico Roger Ebert observa que este tipo de animação, com seus movimentos sutilmente mecânicos e que não correspondem à dinâmica de nossa coordenação motora, nos comunica a impressão de uma realidade transfigurada, muito mais do que a mera aparência das figuras.

A noiva cadáver é cheio de centenas de pequenos detalhes criativos, bem-humorados, que dão aos filmes de animação (em que são gastos dias e dias para fazer um gesto, às vezes meses para fazer uma única cena) uma espécie de “saturação de significado”, como se cada uma dessas imagens contivesse em si informação suficiente para um curta-metragem inteiro. Sua iconografia nos evoca um mundo onde se misturam infância e morte, violência e inocência, poesia e terror, apodrecimento dos corpos e incorruptibilidade dos sentimentos. O mundo de Tim Burton é o mesmo de Ray Bradbury e de Marc Chagall, ou o mundo mental de um poeta que tivesse a fascinação de Augusto dos Anjos pelo macabro, mas com o otimismo e a pureza juvenil de um Mário Quintana.

0819) Realismo Protestante e Católico (1.11.2005)



Até que ponto a fé religiosa de um artista influencia o seu estilo, as suas opções estéticas, o seu relacionamento com as técnicas que usa? Não estou me referindo ao “conteúdo”, às idéias. É natural que os temas de um muçulmano sejam ligeiramente diversos dos de um budista (embora não necessariamente). Minha curiosidade se volta para o caso da ficção científica, porque volta e meia leio nas revistas especializadas menções ao fato de que este ou aquele autor é católico – o que nos EUA é uma nítida minoria. Os casos mais notórios são de Gene Wolfe, Tim Powers, Walter M. Miller Jr. (autor de Um Cântico para Leibowitz). Haverá uma diferença entre eles e os demais? Formulando a pergunta de outra maneira: a literatura de um católico é diferente da de um protestante? A noção de Realismo Literário de um é diferente da do outro?

Vou arriscar aqui uma teoria meio improvisada que ainda não estou enxergando com plena nitidez. O mundo icônico de um protestante é mais pobre, mais seco, mais sertanejo do que o de um católico. Os protestantes não usam imagens nas paredes, não adoram santos, não fazem promessas, novenas ou romarias, não reverenciam relíquias ou amuletos. A face visível, material, da sua fé, é de um notável minimalismo. Vista por dentro, uma igreja protestante parece a sede de uma Associação de Moradores de Bairro. A fé protestante é abstrata, invisível, subentendida.

Digo isto com todo respeito, meus camaradinhas, até porque, não sendo nem protestante nem católico, minha atitude para com ambas as crenças não é de recusa: é de curiosidade, interesse, vontade de entender por que é que eles crêem daquela forma. Porque quando me viro para a fé católica, vejo uma proliferação exuberante de projeções humanas. O catolicismo e a arte barroca têm muito em comum. Entrem numa sala de ex-votos de uma igreja tradicional. Mãos, pés, cabeças, retratos, pinturas... Ao lado, a nave principal do templo está cheia de santos, anjinhos barrocos, madonas, vias sacras, anunciações, calvários, cordeiros de Deus. É uma gigantesca galeria de imagens animistas. Iconicamente, o Catolicismo é de um antropomorfismo total. Compará-lo ao Protestantismo é comparar Michelangelo a Mondrian.

Se um artista crê de fato na fé que diz professar, não há como não absorver o lado visível dessa fé, sua faceta estética, até porque, sendo artista, esse lado é um dos primeiros em que presta atenção. Não chegarei ao mecanicismo extremo de dizer que a crença dum artista determina seu estilo, mas não há dúvidas de que um católico se sente muito mais à vontade para manejar imagens antropomórficas do que um protestante ou um muçulmano, que talvez não as vejam com os mesmos olhos e não se sintam totalmente autorizados a manipular este tipo de material. Alguma diferença há de haver, porque mesmo sendo a medula das duas crenças semelhante, é no lado expressivo, a manifestação exterior, que divergem.

0818) Canções de Violeiro (30.10.2005)




(Elomar)

Quem ouviu, não esqueceu nunca mais: um dedilhado vigoroso de violão, recoberto por um solo de flauta de Hermeto Paschoal, e a voz comedida de Edu Lobo fazendo brotar os versos de Capinam: “Era um, era dois, era cem / era o mundo chegando e ninguém / que soubesse que eu sou violeiro / que me desse amor ou dinheiro...” A canção ia num crescendo até o rasgar triunfante do refrão, onde sobressaía a voz de Marília Medalha: “Quem me dera agora / que eu tivesse uma viola / pra cantar!” “Ponteio” ganhou um dos melhores festivais da MPB, o III Festival da TV Record, em 1967. Primeiro lugar, desbancando “Domingo no Parque” de Gil, “Alegria, Alegria” de Caetano, “Roda Viva” de Chico Buarque, e outras. Até um cara radicalmente não-saudosista como eu não pode deixar de murmurar: “Pense num tempo bom!”

https://www.youtube.com/watch?v=NJ8T64nAAHg 


Outra canção derrotada por “Ponteio” nesse festival foi uma parceria entre Dori Caymmi e Nelson Motta: “O Cantador”. Foi Dori quem propôs a Edu uma parceria numa canção “sobre cantador de viola”. A parceria não deu certo, e cada qual acabou fazendo uma canção à parte. Quem saiu ganhando fomos nós, com esta bela canção em que Elis Regina subia ao palco cantando: “Amanhece preciso ir / Meu caminho é sem volta e sem ninguém / Eu vou pra onde a estrada levar / Cantador só sei cantar / Eu canto a dor / Canto a vida e a morte / Canto o amor”.

https://www.youtube.com/watch?v=4Nx6HrpkUAM


A nata dos jovens compositores da MPB recorria ao repentista nordestino como símbolo de valores tão caros aos anos 1960: o apego ao aqui-e-agora, o romantismo, a veia poética, a disponibilidade existencialista, a liberdade andarilha de se largar na estrada... Tanto é assim que logo em seguida Sidney Miller ganhou um prêmio de melhor letra com “A Estrada e o Violeiro”, defendido por ele e Nara Leão: “Sou violeiro caminhando só / por uma estrada caminhando só...”

https://www.youtube.com/watch?v=xC0QdX8i1IQ


Canções belíssimas – e um tanto ingênuas, porque provinham de rapazes de classe média urbana, que de cantadores só conheciam as lendas e os livros. 

Igualmente bela, e muito mais visceral, é a rústica e sofisticada cantiga de Elomar, a qual ainda hoje arrepia os cabelos do braço de quem entende sua doação ilimitada e kamikaze: “Apois pra cantador e violeiro / só há três coisas neste mundo vão... / Amor, forria, viola – nunca dinheiro! / Viola, forria, amor – dinheiro não!”

https://www.youtube.com/watch?v=WOEb0eqVgAo


Se outros exemplos não houvessem, bastariam estes para comprovar minha tese de que “Canção de Violeiro” é um gênero de música popular brasileira, tanto quanto o maxixe ou o xote. 

Se classificarmos as canções pela letra, e não pela música, ganharemos um olhar novo, um ângulo novo para enxergar nosso Cancioneiro. (Ou os demais. Basta não esquecer do bardo Bob Dylan, e dos bluesmen dos EUA, “cantadores de outro sertão”.) 

https://www.youtube.com/watch?v=-RNGZMh3TDQ


Vão à estante de CDs e confiram, nas vozes de Zé Ramalho, Chico Buarque, Djavan, Silvério Pessoa, Siba & Fuloresta do Samba, a perpétua louvação da arte de viver de desafio, amar de improviso e morrer de repente.

Silvério Pessoa e Alceu Valença, "Eu vi a Máquina Voadora":
https://www.youtube.com/watch?v=Rzg8vCn5h8w


0817) A extinção do mistério (29.10.2005)



A obra de Julio Verne foi a primeira a misturar com sucesso o conceito de aventuras geográficas e o de especulação científico-tecnológica. Outros o tentaram antes; nenhum o conseguiu com tal brilhantismo, nem provocou impacto tão duradouro. As “viagens extraordinárias” de Verne são lidas com fervor por garotos adolescentes e, mesmo que venham depois a ser esnobadas, e trocadas pelos inevitáveis Balzac ou Flaubert (para ficarmos apenas nas letras francesas), a impressão que deixam é profunda.

Verne encarnou um curioso aspecto dualista da aventura colonial. Por um lado, as nações européias dedicaram todo o século 19 à descoberta, conquista e exploração dos recantos mais remotos do mundo. Os europeus desse tempo pareciam imbuídos duma fascinação pelo exótico, pelo misterioso, pelo desconhecido. Era um tal de embrenhar-se na selva, escalar as cordilheiras, cruzar os desertos, navegar para além do crepúsculo... O romance de aventuras, como gênero literário, nasceu nesse tempo. Surgiram escritores capazes de infundir beleza, poesia e excitação à Aventura – uma atividade que, vamos e venhamos, consistia apenas em fazer imensos esforços físicos, passar por privações, e correr perigo de vida.

Muitos o fizeram pela ambição do enriquecimento, alguns por interesse científico, outros por achar que era aquilo que a Pátria esperava deles. Mas o romance de aventuras (Verne inclusive) nasceu da noção de que era belo e excitante ir em busca do desconhecido. Era a atração do mistério que os levava à nascente do Congo, à jângal de Bornéu ou às geleiras do Polo.

O que impelia esses aventureiros, no entanto, era um impulso inverso ao sonho que aparentemente os motivava. O que aguçava essa fome de mistério era justamente a ansiedade que a civilização burguesa e tecnológica experimenta diante do mistério, do desconhecido, do imprevisível, do imponderável. Para essa sociedade (que hoje vive nos EUA sua mais recente mutação: o Complexo Industrial-Militar insuflado pelo espírito conservador e expansionista do Evangelismo de Direita) todo mistério é perigoso. Tudo precisa ser sabido, tudo deve ser quantificado e registrado, para que fique sob vigilância e controle, e não possa vir a ser uma ameaça. Ela ama o mistério como o caçador ama a caça que sonha em abater.

É irônico que os grandes aventureiros sejam também os grandes coveiros da aventura. Porque tudo que descobrem eles entregam de mão beijada ao espírito anexador da sociedade burguesa. Assim como a grama não mais crescia por onde passava Átila, o rei dos hunos, por onde passam os grandes aventureiros e exploradores o mistério vai deixando de existir. Verne foi um escritor de aventuras que recuava cautelosamente diante do fantástico, diante do misterioso e do inexplicável. Seus heróis percorrem todo o globo terrestre atraídos pelo mistério, mas é para extinguir esse mistério que arriscam suas vidas