domingo, 22 de março de 2009

0905) João Antonio (9.2.2006)



Dez anos atrás falecia o escritor João Antonio, e acaba de sair um volume, mistura de biografia e coletânea de cartas, organizado por seu amigo e correspondente Mylton Severiano, Paixão de João Antonio (Ed. Casa Amarela). Outra recolha de cartas é Cartas aos amigos Caio Porfírio Carneiro e Fábio Lucas (Ateliê Editorial & Oficina do Livro), e a editora Cosac & Naify está relançando sua obra. Parco consolo para um sujeito que foi sempre do contra, que gostava de bradar impropérios contra a pseudo-intelectualidade pequeno-burguesa (não sei se usava este termo, mas a intenção era esta) e que morreu em dolorosa solidão (morava sozinho, e seu corpo só foi descoberto quando arrombaram o apartamento três semanas depois).

Na década de 1970, três livros de João Antonio caíram como bombas no meu colo: Leão de Chácara, Malhação do Judas Carioca e Malagueta, Perus e Bacanaço (este um relançamento, tendo surgido em 1963). João Antonio era uma mistura de repórter, malandro, escritor de mesa de bar e etnógrafo involuntário da marginália urbana paulistana/carioca. Seu habitat e seu campo de pesquisa eram as sinucas, os botequins, os prostíbulos, as casas de cômodos, os cortiços, as oficinas mecânicas, as buates de strip-tease, os inferninhos, os conjuntos habitacionais populares, as praças de camelôs. Um Brasil que viceja e floresce ao ar livre e à luz do sol, mas mesmo assim subterrâneo e clandestino. Um país onde as exceções superlotam as calçadas enquanto os raros exemplares da regra passam de carro blindado e com vidro fumê.

João Antonio registrava o “slang” e o “argot” da nossa marginália, e uso estes termos para não incomodar os ouvidos delicados dos leitores de François Villon, Kerouac, Céline ou Henry Miller. Sua obra foi uma imersão existencial e lingüística nessa panela borbulhante de vigaristas, gigolôs, comerciárias, traficantes, cartomantes, X-noves, operários, desocupados, golpistas e otários. Lembro que uma vez viajei de ônibus de Campina para Recife lendo um de seus livros. Ao saltar, na Rodoviária velha, fui caminhando até a Conde da Boa Vista, onde tinha um encontro não sei com quem. Ziguezagueando pelas ruas estreitas e repletas em torno do Mercado São José, tive uma espécie de iluminação mística, como se a experiência de ler João Antonio tivesse subitamente me teleportado para o universo paralelo que ele descrevia tão bem. Nunca a existência do Brasil me pareceu tão real.

O escritor era meio atrabiliário, farrista, brigão, indispunha-se com Deus e o mundo, teve problemas com os críticos e com as editoras, e se bem me lembro um de seus últimos livros intitulava-se Abraçado ao meu rancor. Foi um preço que pagou pelo direito de abrir o ventre do Brasil, olhar o que tinha lá dentro, e mostrar a quem tivesse coragem de olhar também. Tomara que hoje esteja em paz, porque como dizia Riobaldo, “esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande”.

0904) A auto-ajuda quântica (8.2.2006)



Uma resenha no jornal o anunciava como um “documentário sobre Física Quântica”, e corri para ver o filme Quem somos nós” (“What the bleep do we know?”), em cartaz aqui no Rio. De vez em quando eu trisco no tema quântico aqui nesta coluna, não porque o compreenda, mas porque percebi que dá ibope. Vejo a toda hora uma socialite dizer que “depois dos 50 adotou uma visão quântica da vida”, ou então um diretor de teatro asseverar que “o palco contemporâneo precisa assumir uma multiplicidade quântica de pontos de vista”, ou então uma mocinha dizer que fugiu com o namorado “porque a Física Quântica nos ensina que devemos escolher o nosso próprio universo”.

Não ria, caro leitor. Não, também não chore, não adianta. A Ciência está aí para isso mesmo: para ser divulgada, diluída, popularizada, transformada em arroz-de-festa, ser desentendida até que alguém a entenda. Na primeira metade do século, aconteceu com Einstein e Freud. Os papos de coquetel daquela época foram subitamente invadidos por expressões como “trauma”, “complexo”, “o Inconsciente”, “velocidade da luz”, “tudo é relativo”, “E=mc2”. Ninguém entendia bulhufas, mas estas palavras eram as roupas da moda com que os interlocutores vestiam suas surradíssimas idéias de sempre.

Está acontecendo agora com outras ciências, como por exemplo a Genética. “Não posso parar de tomar champanhe,” explica uma socialite, “é algo que está no meu genoma!”. Eu mesmo estou volta e meia usando aqui nesta coluna frases como “as canções dessas bandas são lambada pura, usam sanfona mas não têm o DNA do forró”. Idem idem a Física Quântica, cujos conceitos são distorcidos, deformados, transformados em clichês do cotidiano; mas, repito, é o preço que se tem de pagar pela popularização.

“Quem somos nós?” tenta explicar o assunto, mas recorre a uma dramatização desnecessária e inepta, com uma protagonista neurótica, maus atores, situações e diálogos de uma vacuidade assombrosa. Existem algumas animações interessantes, e entrevistas didáticas que não esclarecem muito. Entre os cientistas entrevistados está Fred Alan Wolf, autor de Taking the Quantum Leap, livro que li deliciado em 1985 e que, este sim, explica tintim-por-tintim os processos quânticos básicos. Wolf é meio marginalizado hoje como um pensador “New Age”, juntamente com Fritjof Capra, autor de O Tao da Física, e este filme mostra por quê. Quando um cientista sai da torre-de-marfim e tenta se aproximar do Povo, descobre que fora da torre está “assim” de charlatães, e que agora é visto como um deles.

Se você não sabe nada sobre Física Quântica, não vai sair do cinema sabendo muito mais. O filme tem boas intenções mas escolhe o caminho errado para expor suas idéias. A maneira mais adequada de explicar a Física Quântica é através de animação gráfica, geométrica, abstrata, e da encenação dos experimentos mentais clássicos (v. “O gato de Schrodinger”, 26 e 29 de julho de 2005).

0903) Os Construtores do Templo (7.2.2006)



A Maçonaria é tida como uma Sociedade Secreta, embora hoje seja descrita como uma sociedade civil com certas formalidades vedadas ao público em geral. (Descrição que poderia servir também para alguns conselhos de acionistas de Bancos, por exemplo) Como sociedade secreta, no entanto, ela não parece ter o mesmo charme romântico de outras como os Illuminati ou os Templários medievais, que têm rendido numerosas obras literárias, das quais o Código da Vinci é o exemplo mais recente. As únicas obras narrativas de que me lembro envolvendo a Maçonaria são a noveleta O Homem que Queria Ser Rei de Kipling (filmada por John Huston, com Sean Connery e Michael Caine como dois ingleses maçons que descobrem um reino perdido nos confins do Oriente) e A Flauta Mágica, ópera de Mozart, filme de Ingmar Bergman.

A estes, junta-se a “Trilogia do Templo” de Z. Rodrix, o camaleônico músico do “Som Imaginário”, do “Joelho de Porco” e do trio Sá, Rodrix & Guarabira, co-autor de “Anos 60”, “Casa no Campo”, “Mestre Jonas”, “Blue Riviera”... Canções que hoje me parecem tão antigas quanto o Templo de Salomão (e que talvez durem mais do que ele).

Johaben – Diário de um Construtor do Templo (Ed. Record, 2005) é o primeiro volume da trilogia, e conta os altos e baixos da vida de Johaben de Tiro, um garoto fenício que passa por uma montanha-russa de glórias e desgraças, em reviravoltas folhetinescas dignas do Conde de Monte Cristo ou do Rocambole. Mais importante do que as peripécias do enredo, contudo, é o lento e sofrido processo de aprendizado de Johaben, que de escravo nas pedreiras de Salomão passa a pedreiro e a construtor.

Ao que parece, foi durante a construção do Templo que certos rituais e preceitos da Maçonaria de hoje se cristalizaram. O “Diário” pode ser lido como um romance histórico (o autor disseca o ambiente histórico, geográfico e religioso da época, além das técnicas de mineração, construção, artes e ofícios), um épico bíblico, e também como um romance iniciático, porque mais importante do que a construção do Templo feito de pedra e de metais preciosos é a construção interior do “templo” da personalidade de Johaben, personagem instável, “capaz de horrores e de ações sublimes”. Neste sentido, há um notável paralelo entre a Engenharia Antiga e a Alquimia Medieval conforme vista por Jung. Todos aqueles infindáveis processos de refino e depuração dos metais para criar a “Pedra Filosofal” e transformar o chumbo em ouro eram (para Jung) um mero pretexto externo para desencadear a formação interna de uma personalidade baseada na observação da Natureza, na paciência, na ação, na determinação, naquela fórmula que os místicos medievais sintetizavam em: “Saber; poder; ousar; calar”.

É um livro de fluxo alternadamente narrativo e descritivo, repleto de informações curiosas. Embora não seja propriamente um romance fantástico, lembra a fantasia rigorosa de Ursula LeGuin ou Gene Wolfe.

0902) Canções de infância (5.2.2006)



(Peter Bruegel)

São aquelas canções em que o letrista recorda (em geral com nostalgia) aspectos de sua infância. Constituem um gênero à parte, porque embora todo mundo tenha tido infância parece que os sujeitos metidos a poeta são mais propensos a endeusar a sua. Vai daí que as canções de infância tenham um vasto cancioneiro na MPB (e certamente por aí afora). 

Talvez a mais típica delas seja a de Ataulfo Alves em que ele relembra seus dias de menino “no meu pequenino Miraí”, e que já comentei nesta coluna (“Eu era feliz e não sabia”, 23.8.2005). 

A canção de Ataulfo é meditativa e filosófica, mas grande parte das canções de infância são fascinadas enumerações de tudo aquilo que nos deleitava e que já não podemos fazer, porque somos homens barbados e cheios de responsabilidades. Vejam o saudosismo de Chico Buarque em “Meus Doze Anos” (da “Ópera do Malandro”): 

Ai que saudade que eu tenho dos meus doze anos 
que saudade ingrata 
dar banda por aí fazendo grandes planos 
e chutando lata. 
Trocando figurinha 
matando passarinho 
colecionando minhoca; 
jogando muito botão 
rodopiando pião 
fazendo troca-troca. 

O elenco de travessuras é tipicamente urbano (e nesse sentido a fictícia infância do personagem carioca não difere muito da dos garotos de meu tempo em Campina Grande). 

Mas veja-se o velho e imbatível Pinto do Monteiro, o Rei do Repente, nascido em 1895, lembrando sua própria infância num tom não muito diverso do de Chico: 

Ovo de pato e marreca 
quebrar em beira de poço 
abrir milho na boneca 
pra ver se tinha caroço 
ir pra beira da estrada 
jogar pedra e dar pancada 
em cabra, bode e suíno; 
em cachorro pontapé 
que isso tudo foi e é 
brincadeira de menino. 

Menino? Devagar com o andor, que o santo usa saia! Gal Costa popularizou no país inteiro a canção “Teco Teco” de Pereira da Costa e Milton Vilela: 

Teco teco teco teco na bola de gude 
era o meu viver 
quando criança no meio da garotada 
com a sacola de lado 
só jogava pra valer 
não fazia roupa de boneca 
nem tampouco convivia 
com as garotas do meu bairro 
que era natural; 
subia em poste, soltava papagaio 
até meus catorze anos era este o meu mal. 

Mal coisa nenhuma: são as coisas boas da vida. Quer ver, pergunte a Jackson do Pandeiro e Martinho da Vila, que gravaram o clássico de Edgar Ferreira, “Tempo de Menino”: 

Eu que fui menino pobre 
e me criei na estrada 
carreguei frete na feira 
joguei lebre na calçada 
levei bilhete do rapaz pra namorada... 
Só não fui guia de cego, ai ai ui ui 
mas fui craque na pelada... 

Caberia talvez um estudo sociológico que colocasse todas essas brincadeiras lado a lado como no famoso quadro de Peter Bruegel “Children’s Games” (1560) onde ele recenseia as brincadeiras da Europa do seu tempo, mostrando dezenas de garotos numa rua larga demonstrando dezenas de travessuras. Deve existir algo nessas brincadeiras que as torna inesquecíveis.