sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

3392) Festa de Rei (10.1.2014)



No fim de semana passado, fiz uma coisa que só acontece raramente na vida da gente: realizar um sonho de quarenta anos, e ainda ganhar para isso!  O “ainda ganhar” se deve ao fato de que viajei a trabalho, como parte da equipe do documentário Bom dia, poeta, que incluía Alexandre Alencar (direção), Amaro Filho e Cláudia Moraes (produção), Ivanildo Marques e Chapola Silva (fotografia e som). Eu fui como roteirista e entrevistador, além de poeta nas horas vagas.

O sonho de 40 anos foi conhecer São José do Egito, que o pessoal chama (com certa discrepância geográfica) “a Meca da poesia popular nordestina”. Sem a grandiosidade da Kaaba ou das Pirâmides, São José é uma cidade de 30 mil habitantes que respira poesia como Florença respira artes plásticas ou Nova Orleans respira jazz. Está na essência, na medula daquele povo; está no seu jeito de ser, de falar, de pensar, de interpretar o mundo e de estabelecer seus laços recíprocos de amizade e admiração. No mundo da poesia popular, chamamos de poeta (“bom dia, poeta!”) as pessoas de quem gostamos, que admiramos, que desejamos honrar e tratar bem. Nem todos são poetas, é claro, mas um bom leitor de poesia é mais importante do que duzentos poetas ruins.

A Festa de Rei era a comemoração dos 99 anos de nascimento de Lourival Batista, “Louro” (1915-1992), e um ensaio para a festa do seu centenário no ano que vem. Louro, com quem convivi entre 1975 e 1980, formou, com seus irmãos Otacílio e Dimas, a trinca dos irmãos Batista Patriota, três rochedos imbatíveis contra os quais oceanos inteiros de versos alheios se espatifaram inutilmente. Cada um com suas características; o forte de Louro era o trocadilho, a construção sinuosa e impecável de glosas que entraram para a História, o espírito escarninho e mordaz (principalmente nos desafios com seu grande amigo Pinto do Monteiro), e a alma de poeta, sem vaidade, sem egoísmos. Criou uma família enorme, cheia de artistas, muitos dos quais se revezaram no palco armado em homenagem ao mestre nos dias 4, 5 e 6 deste janeiro.

São José é símbolo de uma região, o Vale do Pajeú, numa área onde Pernambuco e Paraíba se penetram mutuamente, como o símbolo do Yin-Yang, e que engloba Tabira, Itapetim, Teixeira, Tuparetama, Sertânia, Afogados da Ingazeira, Água Branca, Carnaíba, Flores... A Serra do Teixeira e o Rio Pajeú são dois vetores essenciais dessa cultura da sextilha, do cordel, do mote e da glosa; e do repente, do flash instantâneo de percepção que cria uma piada, um trocadilho...  Ninguém entenderá a poesia nordestina sem mergulhar nessa cultura gigantesca e quase invisível. É a ponta de um iceberg, e é maior que o Everest.