segunda-feira, 18 de novembro de 2024

5124) "Uma aventura na Martinica" (18.11.2024)



Comento aqui de vez em quando a antiga arte de pegar uma idéia alheia e dar-lhe outro desenvolvimento. Já li um comentário de algum roteirista de Hollywood, não sei mais quem, dizendo, mais ou menos: “A idéia alheia é um trampolim. Serve de apoio inicial para a gente tomar impulso e ir para um lugar completamente diferente”. Concordo totalmente. 


Mais do que dizer que “é uma coisa natural”, eu diria que é uma coisa essencial. Todo mundo precisa de um chão para pisar e para tomar impulso. E as idéias alheias, principalmente quando já estão publicadas, mesmo que não estejam ainda em domínio público são de conhecimento público. 

 

E para mim, vale a regra básica – você pode até pegar uma idéia alheia, desde que faça algo melhor ainda ou totalmente original. Como fez James Joyce pegando a estrutura da Odisséia para o seu Ulisses, ou como fez Shakespeare pegando velhos relatos históricos europeus para suas tragédias. 

 

Uma Aventura na Martinica (“To Have And Have Not”, 1943), de Howard Hawks, é um bom filme que está à disposição no streaming do saite Belas Artes À La Carte, cujo acervo eu sempre frequento e recomendo. (São cerca de 12 reais por mês: se você assistir um único filme, já economizou.) 

 

 

É um filme que Hawks, um cineasta competente como poucos, fez com um olho no público e outro em Casablanca, sucesso recente de Bogart, que era nesse tempo o ator mais bem pago de Hollywood.  A II Guerra Mundial ainda era o fato mais importante do mundo, e muitos filmes, como o próprio Casablanca, optavam por deixá-la ao fundo de uma história de tensões e emoções entre poucas pessoas. 

 

A Guerra serve como um diapasão emocional para todos, deixando-os num fio de navalha entre a vida e a morte, a fortuna ou a desgraça. 

 

Essas pessoas estão reunidas num lugar exótico, fazendo o possível para sobreviver, dando pequenos golpes, fazendo pequenas transgressões, mantendo-se honestas num cenário de corrupção e violência. E alguns são idealistas: pessoas envolvidas numa missão, arrebatadas por uma ideologia, pessoas que aproveitam a iminência do fim do mundo para tentar transformar o mundo num lugar mais justo. 



Esses elementos estão presentes em Casablanca, cuja direção foi oferecida a Hawks, e que foi parar nas mãos também competentes de Michael Curtiz e virou um clássico. Hawks afirma que não gostou de certos aspectos de Casablanca, e que jamais seria capaz de filmar uma cena como a dos frequentadores da boate cantando “A Marselhesa” na cara dos nazistas. Compreende-se: é uma cena que lida com um patriotismo idealizado e apela para o sentimentalismo. Nada mais distante do cinema de Howard Hawks. 

 

Em todo caso, ele acabou extraindo de Ernest Hemingway a autorização para filmar o romance To Have And Have Not, e o resultado foi um Casablanca totalmente diferente. Bogart vive nos dois filmes o sujeito durão, cético, que sabe se virar nas dificuldades mas não tem um credo político dizendo-lhe o que fazer. E as circunstâncias o levam a ajudar os rebeldes da Resistência Francesa contra os nazistas, com risco da própria vida. Por quê? Porque (diz ele) havia dois grupos lutando entre si, e ele gostou deste grupo e não gostou do outro. 

 

E também porque havia uma mulher envolvida e envolvendo-o.  

 

Em Casablanca, era Ingrid Bergman, casada com (e apaixonada por) um militante de esquerda. Em Uma Aventura na Martinica, essa personagem feminina se desdobra em duas, e esta variante estrutural é um dos detalhes mais interessantes do filme: há a esposa (Dolores Moran) do militante que precisa de ajuda urgente, mas há também uma aventureira que antes mesmo do surgimento do casal monopoliza a atenção de Bogart: é “Slim”, Lauren Bacall estreando no cinema, aos dezenove anos e com um olhar proibido para menores de dezoito. 



Os críticos enumeram um cardápio completo de semelhanças com Casablanca, desde atores secundários que aparecem em ambos os filmes até a presença simpática de um pianista que cantarola em conjunto com a estrela. Nada disso é apontado para diminuir a importância do segundo filme. Pelo contrário: uma sessão dupla com os dois sendo vistos nesta ordem mostra o que um roteiro bem concebido pode trazer de novo a uma situação já familiar ao espectador. 

 

O filme acontece quase todo no ambiente fechado do hotel, com umas poucas saídas marítimas. A presença de Bogart traz à mente O Falcão Maltês (John Huston, 1941) e aqueles confrontos claustrofóbicos, um apartamento com vários homens de arma engatilhada, negociando quem morre e quem não. 



Hawks e Huston (que era dez anos mais novo) são especialistas nesse tipo de situação “teatral”, fechada, baseada totalmente em suspense, diálogo e presença física dos atores. É uma das qualidades do cinemão norte-americano. Huston foi roteirista para Hawks no começo da carreira; é lícito dizer que cada um aprendeu alguma coisa com o outro. 

 

A amizade entre os dois diretores gerou outro exemplo de “pegar idéia alheia” neste filme. 

 

Uma Aventura na Martinica acaba com a fuga de Bogart e Bacall pela porta do hotel, depois de salvar os membros da Resistência e punir os colaboradores dos nazistas. 

 

Hawks pretendia terminar o filme com uma perseguição-e-combate em alto mar (presente no livro original, de Ernest Hemingway), mas a minutagem já estava grande e ele desistiu. Em vez disso, repassou a idéia (e certamente esboços de roteiro) para Huston, que estava preparando um filme bem parecido com este – o ótimo Key Largo (“Paixões em Fúria”, 1948), também com Bogart e Bacall no elenco. (O barco pilotado por Bogart era inclusive o mesmo nos dois filmes.) 




(Bogart, Bacall e o diretor Howard Hawks)