quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

4790) Cinco pragas (3.2.2022)




1
Balbino acordou antes de abrir os olhos. Foi despertado pelo barulho da chuva na calçada, o rocio gelado que se infiltrava pelos rasgões da manta, o ronco surdo e contínuo de um ônibus a resfolegar diante do semáforo. Encolheu mais o corpo, coçou as canelas, moveu a língua na boca ressecada, tentou pensar de novo no que estivera sonhando: era numa espécie de marcenaria, cheiro de serragem, um serrote, um botijão de vinho sem rótulo, a voz de alguém contando dinheiro. Virou o corpo para o outro lado, sentiu as coisinhas caminhando pelo couro cabeludo, aconchegou-se a si mesmo, passou a mão pela folha de jornal e sentiu por baixo dela as pedras portuguesas, geladas, como sempre. Despregou as pálpebras e soergueu a cabeça quando ouviu vozes; era um casal esperando o sinal abrir de novo para atravessar a rua. De longe ouviu se aproximando a voz metálica do alto-falante da kombi do ferro-velho, anunciando que comprava geladeira velha, máquina de lavar velha, ar condicionado velho, porta de alumínio velha, panela velha, motor de carro velho. Olhou para o lado, viu o plástico azul-claro ainda esticadinho, as revistas sem capa, as duas torneiras fazendo peso numa ponta, os dois cinzeiros na outra, os livros úmidos de orvalho, dois Sidney Sheldon, dois Jorge Amado, um Debord. O sinal abriu, o homem disse alguma coisa alegre e deu uma palmada de leve na bunda durinha da mulher, os dois atravessaram e sumiram. Balbino desistiu de tudo e pronunciou a frase proibida, que trazia de cor há tantos anos, a frase que dedicara ao mundo, e sobre o mundo começaram a cair gotas vermelhas, gotas pegajosas de um sangue escarlate, rubro, carmesim.
 
2
Amândio Carneiro, escriturário aposentado, 77 anos, viúvo, um dia criou coragem. Fez a barba, passou loção, vestiu uma camisa estampada, sentou na sala fingindo que lia uma revista. À aproximação de Dona Jucimara, 62 anos, sua diarista há três meses, exibiu para ela toda sua custosa dentadura e disse: “Ah, Dona Ju, não bote essa blusa não... Não bote não, que assim a senhora me tira do sério!...”, ao que ela o olhou de cima a baixo e disse: “Condenado, teu destino é um AVC”. Dito e feito.
 
3
Julinho Gouveia, 19 anos, ajeitou nervosamente o paletó, olhou em volta o salão repleto do Clube Aquático Cruznovense, passou a mão pelos cabelos, e dirigiu o olhar vagarosamente para uma mesa a dez metros de distância onde estava acomodada a família Cristaldi: Seu Adolfo, o bigodudo proprietário da charutaria local, sua esposa Dona Hermínia, empertigada e desafiadora, e a filha única Elzira, rosto de pétala, boca de morango, seiozinhos de manga-rosa, bem sentadinha e comportada em seu vestido branco de ombros à mostra, e com olhos que estavam à espera dos de Julinho, compreendendo-o, encorajando-o, mandando-lhe uma mensagem telepática que era ao mesmo tempo uma aceitação, um convite e um pedido de socorro. Julinho mexeu no nó da gravata com a ponta dos dedos, engoliu em seco, tomou dois goles de cuba-libre e ergueu-se. Atravessou aquele espaço sem nem perceber que estava se desviando dos garçons com bandejas e dos casais que se encaminhavam para o dancing ao som de Moonlight Serenade, tocada pela Orquestra do Maestro Josué. Chegando junto à mesa, fez o que acreditou ser uma curvatura respeitosa diante do casal idoso, e com um sorriso trêmulo para Elzira, perguntou: “Quer dançar?...” Sabe-se lá o que se passa na alma feminina; Julinho não saberá nunca, talvez, mas o fato é que Elzira lhe endereçou um sorriso altaneiro e indiferente, e disse: “Sinto muito, estou comprometida.”  Julinho sentiu fugir-lhe o sangue do corpo, fez nova curvatura mecânica e retornou para a mesa, sem ver nada, sem enxergar nada, sem escutar coisa alguma, sem outro pensamento senão o maçarico de ódio e acetileno que ardia de vergonha em sua alma e que o fez murmurar com uma voz que não reconheceu como sua: “Pois eu quero que você morra no caritó, sua franga despenada.”
 
4
A vidraça da janela começava a clarear e Dona Nair, de olhos entreabertos, flutuava numa brisa, numa nuvem matutina de alfazema, quando o sono foi rasgado ao meio pela motosserra-trituradora do liquidificador da vizinha madrugadeira, Dona Olenka, em pleno despertar de sua obsessão por vitamina C. Ela estremeceu dos pés à cabeça, enquanto duas furadeiras-zumbidoras lhe perfuravam os tímpanos e convergiam para o centro dos miolos. Num repelão, sentou na cama, passou a vista pela quitinete cheia de vinis, de pôsteres, de plantas, de badulaques e quinquilharias, mas arrumadinha. Apoiou os cotovelos nos joelhos, suspirou fundo, e falou baixinho: “Ah, condenada dos infernos, cururu-têitêi, tomara que toda vez que tu ligar essa ingrizia leve um choque bem grande!...”  Deu um suspiro fundo e ainda não o concluíra quando escutou um grito agudo, carregado de dor e de medo, e depois o estardalhaço de coisas desabando, coisas de vidro se espatifando tilintantes, e um rumor surdo de cadeira arrastada, um ou outro soluço. Levantou-se alarmada, hesitou, o peito palpitando de susto, levou à mão à boca quando percebeu a gravidade do que acabara de produzir. Nova hesitação, mas já foi com mãos firmes que agarrou o robe-de-chambre jogado na poltrona de vime, enfiou-se nele, abriu a porta, bateu na porta de serviço da vizinha. “Dona Olenka?... Dona Olenka?... Está tudo bem aí?...”  Rumores confusos lá dentro e então a porta entreabriu uma fresta cautelosa, depois abriu-se toda e ela avistou o chão coberto por um lago de mamão com laranja, um esfregão, um rodo, e segurando o rodo, cravando nela as verrumas de dois olhos azuis como sabão-em-pó, Dona Olenka, desgrenhada mas viva, trêmula mas viva, enfiada num roupão-toalha que parecia ter sobrevivido a duas guerras mundiais. “Pois não?...” foi o que ela respondeu. “Desculpe... Aliás, bom dia... Ouvi um barulho, me assustei... A senhora está bem?...” Sem largar a quina da porta, Dona Olenka proferiu; “Estou, estou muito bem, obrigada. Bom dia.”  Fechou a porta, ouviu os passos de Dona Nair se afastando e falou baixinho: “Estou bem porque meu santo é forte, sua bruxa hippie.”
 
5
Numa pausa no meio de uma estafante noite de trabalho, por volta das duas e 53 da madrugada, o contista Nesso de Vanja, depois de fumar o quarto beck diante do teclado e mergulhar na implosão fractal de um protetor de tela, sentiu-se transferido para um lugar onde havia lágrimas e ranger de dentes, e ali ele encarou a aparição que tinha a forma de um castiçal e tinha a forma de uma baleia, e a encarou sem medo, e exigiu tudo a que tinha direito sobre a Terra, exigiu flores, exigiu mulheres em flor, exigiu castelos e herdades, máquinas futuristas, e a adoração das multitudes. Um trovão e um relâmpago simultâneos o deixaram cego e surdo, mas não tão surdo que o impedisse de ouvir a voz indiferente, com uma nitidez metálica, que lhe anunciou: “Todos te elogiarão... mas ninguém te lerá”.