segunda-feira, 3 de junho de 2024

5068) Os espaços liminares (3.6.2024)




("The Yellow Room")
 

Há um gênero de narrativa que não é propriamente de terror, e se situa mais no campo do Insólito, mas é capaz de provocar um calafrio quando o leitor começa a mergulhar nela. É um terror sem monstros, digamos; um terror sem violência ou sadismo, um terror sem criaturas que ameaçam. Um terror baseado não no medo da morte ou do sofrimento – mas na Estranheza. 
 
É um conceito de espaço, não no sentido da Física e da Astronomia, mas no sentido do espaço social, um lugar físico que foi ocupado pela presença humana, contaminado pela presença humana através de construções, edificações, modificações no ambiente (uma cerca, uma ponte, um poço, etc.). Qualquer foto de uma cidade nos dá uma imagem confortável, até aconchegante, desse espaço social. Um lugar cheio de gente, ruas, prédios, vida humana. E sentimo-nos em casa. 
 
Existem espaços, contudo, que nos dão essa sensação de forma oblíqua, incompleta. Como se a presença ali fosse insuficientemente humana.  Como se aquele espaço não tivesse sido domesticado de todo. Como se no meio do matagal houvesse uma casa, mas entrando pela porta da frente víssemos que dentro da casa o matagal prosseguia intacto. 
 
Não precisamos entrar no domínio do Fantástico ou do Terror ou do Realismo Mágico para nos depararmos com esse tipo de ambiente, mas ele está presente em todo tipo de narrativa – da ficção científica à fantasia, etc. 
 
J. G. Ballard é um dos principais autores que exploram esses “espaços liminares” (“liminal spaces”), espaços que ficam no limiar entre o humano e o não-humano, entre a civilização e a selvageria, entre a indiferença e a ameaça. Diz ele, em suas memórias, falando sobre um cassino abandonado que via na infância: 
 
Mas havia um significado mais profundo para mim – a sensação de que a própria realidade era um cenário que podia ser desmontado a qualquer momento e que, por mais magnífico que algo parecesse, podia ser varrido a qualquer momento e atirado na lata de lixo do passado. 
(Milagres da Vida, trad. Isa Mara Lando, p. 58-59) 
 
Existe hoje em dia um verdadeiro culto aos “espaços abandonados”, edifícios que deixaram de ser úteis mas não foram demolidos e hoje estão tomados pelo mato e pela ferrugem. 
 
O primeiro fotógrafo nesse gênero que acompanhei pela Internet foi o piloto de avião comercial Henk van Rensbergen. Seu trabalho o leva a viajar pelo mundo inteiro, e suas horas de folga são dedicadas a fotografar lugares abandonados. Escrevi sobre ele aqui: 
 
https://mundofantasmo.blogspot.com/2008/03/0018-lugares-abandonados-1242003.html


Porém não são apenas os lugares abandonados que nos produzem estranheza, mas também os lugares novos, impecáveis, artificiais, impessoais, meio deslocados de função. A percepção dessa estranheza produziu a subcultura do que o pessoal chama de “backrooms”, que pode significar aposento dos fundos, bastidores, salas secretas. Espaços que parecem realistas, mas de uma realidade imaginada e construída não por seres humanos, e sim por uma Inteligência Artificial eficiente, mecânica, sem imaginação, sem compreensão do que está fazendo. 
 
Surgiu um trelelê recente na web a respeito de uma foto que para muita gente era uma foto “icônica” desses backrooms ou espaços liminares. A foto circulava há muitos anos nos grupos dedicados a esse assunto, e ao que parece somente agora no fim de maio foi descoberta a sua origem. A foto é esta: 


 

Por variadas razões ela se tornou um parâmetro dessa estranheza espacial. Os espaços liminares já vêm sendo explorados na pintura, principalmente a pintura surrealista: 



(Giorgio de Chirico, “Piazza”, 1913)



(Paul Delvaux, “Solitude”, 1956)


Espaços destinados à presença humana, mas esvaziados, quase totalmente, da presença humana. 
 
De acordo com o canal da Farrell McGuire no YouTube, foi preciso seguir muitas pistas e contar com várias descobertas isoladas para chegar até a provável origem da foto. 
 
Segundo ele, ela foi feita nas instalações atualmente ocupadas por uma loja da rede Hobby Town, na cidade de Oshkosh (Wisconsin). Aparentemente, era um espaço criado ali por uma loja ocupante anterior, a Rohner’s; antes de ser reformado, alguém resolveu tirar fotos daquele local, sem imaginar que estava criando um símbolo de toda uma subcultura internética. 




Quem quiser mais detalhes dê uma olhada aqui na sensacional descoberta de McGuire (ele fala em inglês, mas há a opção de acompanhar uma transcrição do lado direito da tela). 
 
https://www.youtube.com/watch?v=-1EKIIM3ShI
 
O websaite Metafilter, onde tomei conhecimento desta descoberta, tem uma discussão interessante, com muitos exemplos de “espaços liminares”: 
 
https://www.metafilter.com/203949/disquieting-images-that-just-feel-off
 
A mitologia urbana dos backrooms tem a ver com o espírito descartável da nossa civilização, como observou J. G. Ballard naquele trecho que citei no início. É uma civilização que não foi feita para a pessoa humana, que parece ter sido desenhada por uma Inteligência Artificial sem alma, sem espírito, sem entendimento, visando apenas o cumprimento de uma tarefa dentro de especificações dadas. 




Tais ambientes produzem em nós essa sensação de “não pertencimento”, de alienação, de que aquele espaço é menos humano do que deveria. É um efeito parecido com outro conceito um tanto recente, o do “Uncanny Valley”, ou “o Vale da Estranheza” – a sensação que temos diante de bonecos, manequins ou andróides quase perfeitamente humanos mas guardando alguma característica indefinível que nos provoca repulsa, medo, inquietação. 
 
Sigmund Freud estudou isso no seu ensaio O Estranho (1919), referindo-se à “dificuldade em distinguir entre criaturas artificiais (estátuas de cera, bonecas, autômatos, etc.) e pessoas de verdade.” Uma pessoa que parece demais um boneco ou um boneco que parece demais uma pessoa nos provocam a mesma rejeição instintiva. 
 
Algo parecido se dá com os “espaços liminares”, que nos inquietam sem que haja ali a presença de monstros, de criminosos, de criaturas repugnantes ou ameaçadoras. E os artistas contemporâneos têm sabido explorar esse efeito, que está presente no cinema de David Lynch, Andrei Tarkovsky e Stanley Kubrick, na literatura de Ballard ou de Philip K. Dick.    




Um conto de Thomas M. Disch, “Descending” (em Under Compulsion), 1968), é o símbolo perfeito dessa disjunção, ao mostrar um homem que depois de fazer compras numa loja de departamentos começa a descer escadas rolantes na direção da garagem, e nunca mais consegue sair desse labirinto. A partir de certa altura, há apenas escadas descendo, nenhuma pessoa em volta, e ele não tem resistência física para subir de volta no sentido contrário ao das escadas. Seu universo se transforma num corredor estreito, iluminado por lâmpadas fluorescentes, unindo duas escadas rolantes, a que vem de cima e a que o leva para baixo, sempre para baixo. 
 
O insólito dessas narrativas não sugere uma presença do sobrenatural, antes indica um ruído naquilo que nos acostumamos a considerar o Real, ou o Normal, que para algumas pessoas é a mesma coisa. Quem acredita na prevalência do Normal confia na existência de valores absolutos. Acredita que o mundo é, em última análise, um conjunto organizado e harmônico de elementos, numa ordem que faz sentido. 
 
Esse otimismo ontológico foi posto à prova e questionado ao longo do século 20 pelo Surrealismo, pelo Expressionismo, pelo Teatro do Absurdo, pela literatura de Horror Cósmico, por todos os movimentos artísticos que viram no mundo “um vácuo atormentado, um sistema de erros” (como dizia Carlos Drummond).