domingo, 23 de agosto de 2009

1216) O fácil e o difícil (4.2.2007)





(Vik Muniz por Vik Muniz)

Há um estilo de cantoria de viola chamado “Quadrão de Meia Quadra” que é uma beleza para um cantador “se amostrar” diante dos leigos. É uma estrofe um tanto longa, e que sempre vai mais ou menos nessa pisada:

“Se eu disser que é meia noite, você diz que é meio dia
se eu disser que é meio balde, você diz meia bacia
se eu disser que é meio João, você diz meia Maria
se eu disser meia Maria, você diz que é meio João.
Se eu disser que é meia areia, você diz meio torrão
se eu disser meio torrão, você diz que é meia areia
se eu disser que é meia quadra, você diz que é quadra e meia
e se eu disser que é quadra e meia, você diz que é meio quadrão.

É um estilo marcante, e foi citado indiretamente por Zé Ramalho em “Avôhai” (“E se eu disser que é meio sabido, você diz que é meio pior...”).

Já tirei muita onda diante de pessoas leigas, cantando de improviso este tipo de verso. Porque na verdade não tem o que inventar, é só essa cantilena de meio-isso-meio-aquilo, substituindo as palavras-chave para encaixar nas rimas obrigatórias. E pronto.

Mas as linhas são longas, são cantadas com certa rapidez atropelada, e envolvem jogos-de-palavras cuja estrutura simples não é percebida à primeira vista, e então parece que é o troço mais difícil do mundo. Já cantei muita meia-quadra, sozinho, ao violão, diante de amigos que saíam dizendo que eu era o maior repentista do Nordeste.

Muito mais difícil do que uma meia-quadra é improvisar uma mera sextilha, onde você tem que tirar seis versos do Nada, do Zero Absoluto, e tudo tem que fazer sentido.

Em toda atividade existem coisas assim. No futebol, por exemplo, um passe de calcanhar parece mais difícil, e provoca mais sensação, do que um passe de 30 metros que vai certinho no pé do outro cara. Este último, por ser feito “de frente”, parece muito mais fácil, e não é.

Vik Muniz, artista plástico paulistano radicado em Nova York, resumiu esta questão numa entrevista à revista Zupi de novembro, de maneira exemplar:

“Existem trabalhos que são gostosos de fazer por serem fáceis e parecerem difíceis, e existem trabalhos gostosos de ver prontos por serem difíceis e parecerem fáceis”. 

No primeiro caso está a meia-quadra, que qualquer cantador mediano canta durante meia-hora sem nem sequer suar a testa.

Muniz observa que quando um trabalho é difícil ele não é bom de fazer: é bom de ver pronto. Isto bate certinho com uma frase que já vi atribuída a Armando Nogueira e a Zuenir Ventura: “Não gosto de escrever. Gosto de ter escrito”. Certas coisas nos dão um orgulho imenso depois que estão existindo, mas só Deus sabe o sofrimento que foi para botá-las de pé. Qualquer elogio a elas, contudo, sempre nos parece pouco, porque só nós sabemos o quanto de suor nos custaram.

Por outro lado, fazer uma meia-quadra e receber mil elogios nos dá complexo de culpa, porque quem elogia está superestimando a dificuldade da façanha, e se iludindo quanto ao talento de quem a praticou.





1215) Embebido em palavras (3.2.2007)




(Lord Macaulay)

Todo mundo que escreve já experimentou a sensação de se plantar diante de uma página em branco (onde se lê “página” leia-se “tela de monitor”) e sentir-se mais em branco ainda. O cara precisa escrever, vive dessa atividade, preparou-se para isto a vida inteira, assumiu compromissos, assinou contratos, já gastou o dinheiro do adiantamento... e (cedo a palavra ao mestre Augusto) “tarda-lhe a Idéia! A inspiração lhe tarda!”. É o famoso “writer’s block”, o bloqueio criativo que em alguns casos patológicos chega a durar anos a fio. Perguntem a Raduan Nassar, a Felipe Alfau, a Arthur Rimbaud. Todos dirão que “foi de propósito”.

Existe uma diferença crucial entre a função imaginativa da mente e o ato de escrever. Os leigos pensam que as duas coisas são uma só. Pois não são. Imaginar é mental, escrever é físico. Na grande maioria dos casos, o indivíduo tem predisposição para uma, e com a ajuda dela começa a estimular a outra até desenvolvê-la, como quem faz exercícios num aparelho de academia para desenvolver um músculo específico. Alguns escritores passam anos a fio tentando escrever de um jeito que não lhes convém, até encontrarem o jeito certo: a mão, à máquina, com lápis, com caneta, em pé, sentado, de dia, de noite... Escrever é uma tarefa corporal, um esforço físico, como tocar um instrumento musical. Pensar todo mundo pensa. Se eu escrevesse todos os livros que surgem já prontos na minha cabeça, ia faltar papel no Brasil.

Lord Macaulay, grande historiador britânico, disse na velhice que sua capacidade para reconstituir épocas e lugares remotos se devia a sua capacidade de fantasiar, de sonhar acordado: “Fico sonhando grande parte do meu tempo; talvez não mais do que antes, mas antigamente eu sonhava meus sonhos diurnos andando; agora os sonho sentado, perto da lareira. Se tiver vida para isso, escreverei sobre esse estranho hábito uma dissertação mais completa do que jamais foi escrita sobre esse assunto. É um bom hábito, sob certos aspectos. Eu, pelo menos, lhe atribuo grande parte dos meus sucessos literários”.

A melhor maneira de “ser bom” numa atividade é pensar nela o tempo todo. É conduzir a si próprio para um estado mental de atividade incessante, confrontando idéias, fazendo e respondendo perguntas, propondo problemas, inventando soluções. O poeta Hart Crane dizia: “O indivíduo deve estar encharcado de palavras, literalmente embebido delas, para que elas possam se combinar da maneira certa no momento certo”. Pensar é fácil, ou melhor, imaginar é fácil para um grupo específico de pessoas. Manter esse estado mental durante o enfrentamento físico com o instrumento (seja caneta Bic ou computador) são outros quinhentos. Escrever pode até embaralhar o pensamento. Augusto dos Anjos era um que compunha o poema mentalmente, corrigia, revisava, decorava, e só depois passava-o para o papel, para que esta tarefa física não interferisse na sua concentração criadora.


1214) Uma Noite no Museu (2.2.2007)



Esta comédia é um daqueles filmes-de-férias que poderiam ter cópias adquiridas por Escolas de Cinema no mundo inteiro, tal a nitidez da fórmula que seguem. É como aqueles casos que fazem um médico, inebriado pelo saber científico, dizer aos seus alunos, apontando um paciente: “Vejam que belo exemplo de escoliose lombar!” Neste caso, o professor diria algo como: “Vejam que belo exemplo de filme-de-atores disfarçado de filme-de-efeitos-especiais, tendo como justificativa ética a décima milésima história de Hollywood sobre um pai desempregado em crise de auto-estima querendo mostrar ao seu filho o quanto ele não é um babaca como a mãe do menino, cujo atual namorado é, este sim, um grande babaca, vive dizendo!” Vejo filmes assim desde que Ben Stiller estava na barriga da mãe (que, aliás, interpreta o papel daquela senhora com a qual ele faz a entrevista de emprego no começo do filme).

A imprensa bate na tecla de que “os efeitos especiais são a única coisa que presta no filme”. Eu os achei ínfimos: limitam-se ao esqueleto de Tiranossauro que anda, e aos soldadinhos e cowboys miniaturizados. Coisas que hoje em dia um diretor entrega à equipe de segunda unidade, e nem confere os “takes” no fim do dia. A premissa do filme (as criaturas de um Museu de História Natural ficam vivas durante a noite) dá a impressão de que os efeitos especiais são mais numerosos, porque vemos uma mistura carnavalesca de cowboys, dinossauros, legionários romanos, vultos históricos, macacos, leões, faraós, o escambau. Noventa por cento são atores fantasiados, como em qualquer Escola de Samba carioca. Torna o filme visualmente mais variado, e o rótulo genérico “efeitos especiais” confere à ação uma impressão de irrealidade.

O filme (de acordo com o saite “Internet Movie Data Base”) custou 110 milhões de dólares, ultrapassou este piso em sua segunda semana em cartaz, e até 21 de janeiro tinha faturado 204 milhões de dólares nos EUA e 18 milhões de libras no Reino Unido. Acho que filmes assim podem ser uma boa ilustração para a teoria kantiana do “fim” e da “finalidade” estética, como explica Ariano Suassuna em sua “Introdução à Estética”: “No pensamento kantiano, as Belas-Artes pertencem a um campo determinado, o da finalidade, no qual não se tem em vista nenhum objetivo prático, mas sim, pura e exclusivamente, o prazer do sujeito e a harmonia de suas faculdades. Já as Artes úteis, ou mecânicas, pertencem ao campo do fim, isto é, da destinação prática do objeto”. Ou seja: o filme de Shawn Levy não visa prioritariamente à finalidade da fruição estética, e sim ao fim prático de sua utilização do ponto de vista do público (entretenimento reiterativo) e do ponto de vista da indústria (manter atores, equipes, estúdios, etc. funcionando). Há filmes que são obras de arte, pertencem à mesma categoria de algumas músicas, livros ou quadros. E há filmes que são empreendimentos utilitários, como parques-de-diversões ou museus. Não são arte.