quinta-feira, 31 de agosto de 2023

4977) Os monstros do Loch Ness (31.8.2023)



 
Desde que eu me entendo por gente existe uma busca constante pelo famoso Monstro do Loch Ness, uma espécie de criatura aquática pré-histórica que se diz existir nesse lago da Escócia. Dezenas de pessoas dizem que já o viram, mas isto não prova a existência de nada. Algumas pessoas o fotografaram, mas isto nunca foi prova, mesmo no tempo dos filmes de celulóide e de negativos que podiam ser periciados. Depois da invenção do Photoshop, e, agora, com a famigerada Inteligência Artificial, fotos do monstro vão pipocar por todos os lados. O que também não serve de prova para coisa alguma.
 
A foto mais famosa do monstro (a do início deste texto) foi tirada em abril de 1934 pelo médico londrino Robert K. Wilson. É tão famosa quando a foto do Pé Grande (ou “Sasquatch”) – na verdade um fotograma de um curto trecho de filme captado em 1967 no norte da Califórnia por Roger Patterson e Robert Gimlin. As acusações de fraude são muitas, é claro. Vendo um monstro, quem resistiria a fotografá-lo? Não o vendo, quem resistiria a forjar uma foto? Vendo a foto, quem resistiria a questioná-la? E la nave va.



(O sasquatch)

 
Neste ano de 2023 foi desencadeada uma nova busca ao monstro do Loch Ness, ou “Nessie”, desta vez usando barcos com hidrófonos (que captam o som num meio líquido) e drones térmicos, que fotografam a água de cima para baixo, registrando imagens dos objetos com diferença de temperatura. “Nessie” deve ser o mais famoso dos criptídeos (animal cuja existência é suposta, mas não comprovada). Buscas deste tipo criam uma situação ambígua. Descobrir o monstro (vivo ou morto) não seria uma maneira de extinguir a curiosidade, a atração, as polêmicas?


 
Uma característica interessante do Loch Ness é a sua extensão. Ele é uma faixa de água estreita e comprida, num comprimento de cerca de 56 quilômetros por 2 ou 3 km de largura, e com uma profundidade máxima de 220 metros. A água é pouco transparente, devido às características do solo em volta. Ou seja – há uma série de circunstâncias físicas tornando a busca mais fácil ou mais difícil, conforme o ponto de vista.
 
Há uma verdadeira indústria local em torno dos avistamentos do monstro, e isso nos remete a uma coisa curiosa. As aparições da Virgem Maria em localidades como Lourdes (1858), Fátima (1917), La Vang (1798), Zeitoun (1968) são fatos que desencadeiam reações muito parecidas. Alguém vê (ou imagina ter visto) algo extraordinário. A notícia se espalha, multidões acorrem, a imprensa aproveita, os céticos ridicularizam, os crentes se encolerizam e acreditam cada vez mais...
 
E enquanto isto há um saudável aquecimento da indústria hoteleira local, dos restaurantes, dos postos de gasolina, das lojas de souvenires, dos postos de venda de produtos relacionados ao fenômeno – quadros, imagens, bonecos, panfletos, fotos, bonés, camisetas e por aí vai.



 
Fatos deste tipo lembram um conceito proposto por Kurt Vonnegut Jr. em seu livro Cama de Gato (“Cat’s Cradle”, 1963). É o conceito de “wampeter” – que, ao que eu saiba, nada tem a ver com o trêfego jogador Vampeta, ex-Corinthians e Seleção Brasileira.
 
Em seu livro, Vonnegut descreve uma religião bizarra, o “bokononismo”, organizada em torno de conceitos bem curiosos. Bem ao estilo do autor de Matadouro Cinco, são conceitos cheios de crítica corrosiva ao funcionamento do nosso mundo.
 
O wampeter precisa ser entendido em função de outro conceito, o karass, que ele explica logo nos capítulos iniciais do livro (Cama de Gato, Ed. Aleph, trad. Livia Koeppl):
 
Nós, bokononistas, acreditamos que a humanidade é organizada em equipes, equipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que estão fazendo. Bokonon chamou equipes como essas de karass (...). “O homem criou o tabuleiro de xadrez: Deus criou o karass”. Com isto ele quer dizer que um karass ignora fronteiras nacionais, institucionais, profissionais, familiares e de classe social. Tem a forma tão livre como a de uma ameba. (pág. 12)
 
No capítulo 24, ele explica:
 
Isto me leva ao conceito bokononista de wampeter.
 
Um wampeter é a base de um karass. Não existe karass sem wampeter, Bokonon diz, assim como não existe uma roda sem eixo.
 
Um wampeter pode ser qualquer coisa: uma árvore, uma pedra, um animal, uma idéia, um livro, uma melodia, o Santo Graal. Seja o que for, os membros do karass giram em torno do seu wampeter no caos majestoso de uma nebulosa espiral. É evidente que as órbitas dos membros do karass que estão em volta do wampeter em comum são órbitas espirituais. São as almas que giram, não os corpos. (pág. 58)
 
O monstro do Loch Ness é um wampeter, uma hipótese que atrai para si a vida e os esforços de dezenas de milhares de pessoas, talvez mais, mobilizadas para demonstrar sua existência ou sua não-existência. Nesse grupo heterogêneo cabe todo tipo de gente, desde os fanáticos que fazem disto uma religião até cientistas de bom senso tentando estabelecer a verdade dos fatos, e gente com dinheiro sobrando, tempo livre, e disposição para embarcar em alguma aventura divertida.
 
É possível (longinquamente possível, arrisco-me a supor) que haja algum ser pré-histórico no Loch Ness, ou se não pré-histórico pelo menos algum tipo raro de criatura volumosa e assustadiça. A busca por ela é algo mais justificável, por exemplo, do que a demanda dos defensores da Terra Plana. Ainda não podemos afirmar com certeza que “Nessie” não existe, então faz sentido investigar se ela é real ou não. Por outro lado, a redondeza da Terra foi comprovada de muitas maneiras. Que wampeter meio absurdo é este, que mobiliza tanta gente?



(O Lago Ness)
 

As pessoas precisam girar em torno de uma idéia, um projeto, um objetivo (=um wampeter), entre outros motivos pelo fato de que nossa sociedade se interessa por pessoas que agem assim. Vendo no streaming alguns documentários sobre terraplanistas, observei mais uma vez um padrão recorrente. Um número considerável deles são pessoas com certa segurança material (dinheiro herdado, ou profissões confortáveis) mas sem um objetivo mobilizador de suas energias, e muitas vezes com uma certa angústia de invisibilidade social, aquele pavor de “não ser ninguém”.
 
No momento em que se tornam parte de um karass e dedicam-se a um wampeter (um wampeter extraordinário, polêmico, fora do comum) essas pessoas saltam para outro patamar social. Ficam famosas. São convidadas para participar de convenções, seminários, mesas redondas; recebem bilhetes aéreos e vouchers de hospedagem; dão entrevistas para jornais e emissoras de TV; envolvem-se em polêmicas que do dia para a noite fazem a Web pegar fogo com acusações, questionamentos, desmentidos, solidariedades, traições... 
 
Em suma: por causa do wampeter que cultivam, esses John Does, esses Zé Ninguéms tornam-se pessoas importantes, e os mais espertos chegam mesmo a faturar uma boa grana.
 
O monstro existe? A Terra é plana? No fim das contas, isso é irrelevante. Existe a busca pelo monstro, existe a “demonstração” da idéia terraplanista, e é isto que faz mover a engrenagem de discussões, artigos, programas, debates, teses, documentários, notícias. O fenômeno de um karass em torno de um wampeter tem a forma de uma rosquinha, um “donut”, um toróide. O centro é vazio, sim, mas tudo que gira em torno dele é real.




 
 





segunda-feira, 28 de agosto de 2023

4976) A arte do nome do personagem (28.8.2023)




O nome é o rosto verbal do personagem, a senha que basta pronunciar para fazê-lo surgir por inteiro.  Na criação de um personagem, a escolha ou invenção de um nome próprio é uma decisão final que nem sempre é fácil.  Alguns escritores costumam fazer listas de nomes e sobrenomes, e os distribuem pelos personagens seguindo um pouco o instinto e um pouco a busca de verossimilhança. 
 
Pode ser que o autor queira fazer do seu personagem alguém típico, mediano, e nesse caso pode ser útil dar-lhe um nome quase invisível.  “José da Silva” já é caricatural, mas nomes como “Antonio Barbosa” ou “Paulo Ferreira” são nomes brasileiros que tendem a passar despercebidos.  Qualquer “Maria” se dilui em milhões de outras, a menos que traga um segundo nome fora do comum. 
  
Na antiga literatura satírica ou moralizante usava-se o nome do personagem para revelar desde logo sua característica principal.  Um indivíduo ingênuo chamava-se “Simplício” ou “Inocêncio”; um indivíduo decente e probo era “Honorato”.  “Fidélia” sugeria uma esposa digna, e  “Dolores” uma sofredora.  
 
Essas indicações óbvias destinavam-se talvez a um público leitor não muito sofisticado, para quem a iniciativa de associar o nome do personagem ao seu caráter era uma gratificante façanha intelectual.  Com o passar dos tempos este recurso foi se tornando mais sutil, mas não se perdeu de todo.  Em Dona Flor e Seus Dois Maridos Jorge Amado contrasta os dois esposos da protagonista chamando a um Vadinho, que sugere “vadio”, e ao outro Teodoro Madureira, que sugere um homem religioso e maduro.  
 
Os nomes dos personagens de Guimarães Rosa já mereceram numerosos estudos, começando pelo Recado do Nome de Ana Maria Machado, em 1976.   Na literatura de Rosa existe um propósito permanente de não tratar os nomes próprios como um dado imutável, documental, extraído da realidade e impossível de modificar.  Ele considera que o nome é um elemento literário a mais, e que cabe ao escritor interferir nele, torná-lo significante.  
 
Os nomes dos grandes personagens de sua obra (Riobaldo, Diadorim, Zé Bebelo, Augusto Matraga, Miguilim, etc.) já foram exaustivamente analisados pela crítica.  Mas basta pegarmos uma lista de coadjuvantes para perceber o ouvido e a memória afetiva do autor, como nas listagens que Riobaldo faz dos jagunços do bando: Alaripe, Sesfrêdo, João Concliz, Quipes, Joaquim Beijú, Tipote, Quêque, Mão de Lixa, Freitas Macho, Preto Mangaba, Coscorão, Jiribibe, Moçambicão, Sidurino, Rasga-em-Baixo, Dimas Doido...  Nomes tão peculiares e característicos quanto um rosto humano visto de perto.
 
Nomes abstratos foram muito usados na literatura romântica, onde apareciam “o Marquês de S...” ou “a Duquesa de D...”, quando não “o Barão de ***” – o que levou a Emília de Monteiro Lobato a proclamar-se “Condessa de Três Estrelinhas”. 
 
Osman Lins foi um dos raros escritores brasileiros a criar um sinal gráfico para designar um personagem, em vez de um nome.  Em seu romance Avalovara, uma personagem feminina é referida por um sinal: um círculo com um ponto no centro e duas pequenas saliências erguidas dos lados, como duas orelhas.  Um recurso ousado, até pelo fato de que o leitor não dispõe de um equivalente sonoro para este sinal, como ocorre com qualquer nome comum. Se um personagem se chama “Capitu”, existem sons correspondentes à combinação dessas seis letras nessa ordem.  Mas a personagem de Avalovara existe apenas para os olhos, na página; é um personagem fora do mundo oral.


 (Avalovara

 
Oswald de Andrade, embora mais conhecido como poeta e agitador literário, escreveu dois romances que estão entre as obras mais criativas de todo o Modernismo Brasileiro, Memórias Sentimentais de João Miramar  e Serafim Ponte Grande.  Neles, a verve satírica do escritor se volta contra a afetada e ignorante burguesia de sua época, e ele prega aos seus personagens nomes burlescos: Pinto Calçudo, Machado Penumbra, Madama Rocambola, Carlindoga, Mariquinhas Navegadeira...  São nomes que nada têm de realistas, mas que muitas vezes evocam justamente os apelidos cômicos que as pessoas de sobrenomes pomposos colocam nos parentes, na sua intimidade familiar. 
 
A literatura de ficção científica tem a obrigação de inventar outros mundos, outras civilizações, outras línguas e outras Histórias.  Como produzir nomes que reflitam essa enorme estranheza?  Um alienígena, vindo de outro sistema solar, não pode se chamar William nem Bóris.  Uma solução frequentemente empregada pelos autores é tentar reproduzir foneticamente os sons, teoricamente ininteligíveis, que constituem os nomes próprios.  Daí surgem nomes como “Ph’theri” e outros. 
 
Isaac Asimov, nas suas histórias sobre robôs inteligentes, dá aos seus robôs mecânicos siglas que são transformadas, na linguagem coloquial, em nomes próprios.  Assim, “NS-Two” torna-se “Nestor”, “LV-X” torna-se “Elvex” e assim por diante.  Já os nomes dos personagens humanos na sua série da “Fundação” são uma hábil mistura de radicais e sílabas aleatórias, que os tornam fáceis de pronunciar, mas com o grau de estranheza suficiente para parecerem nomes de outros mundos: Hari Seldon, Salvor Hardin, Golan Trevize, Dors Venabili, Ebling Mis, Eto Dermezel, etc.  
 
Cada escritor cria um laboratório de nomes de acordo com o universo que está criando.  Os planetas onde ocorrem as histórias de Cordwainer Smith têm um clima retrô, são civilizações avançadas que procuram reproduzir fases antigas da História da humanidade, recorrendo a idiomas extintos.  Isto o faz criar nomes próprios como Lord Jestocost, Dolores Oh, Magno Taliano, Lord Femtiosex, Lady Arabella, Lord Sto Odin, além de lugares como o planeta Viola Siderea e o Alpha Ralpha Boulevard, “a avenida que subia até as nuvens”.  
 
O ideal é que um nome literário seja marcante, único, e que fique colado àquele personagem para sempre: Quincas Borba, Jane Eyre, Gregor Samsa, Isaías Caminha, Emma Bovary, Dorian Gray, Maria Moura...  Nomes fortes, característicos, não tão comuns que se confundam com outros, não tão raros que sugiram um exotismo desnecessário. 
 
 
(Uma versão ligeiramente diferente deste texto apareceu na revista Língua Portuguesa, Editora Segmento (São Paulo), março de 2009)
 
 





quinta-feira, 24 de agosto de 2023

4975) Drummond: "Cabaré Mineiro" (24.8.2023)



 

Este poema do livro Alguma Poesia (1930) poderia aparecer numa antologia de poesia erótica brasileira, sem decepcionar. Decepcionaria, talvez, quem acha que a poesia erótica só é feita para excitar, para despertar um desejo bem empoderado de fazer “aquilo”. Nada contra; mas existe a poesia erótica que implica numa reflexão sobre o erotismo, num desvendar de sintomas do erotismo, como se mostrasse um ambiente (ou uma vitrine) e perguntasse mudamente ao leitor: “Isto te excita? E isso? E aquilo?”.
 
Ou, para lembrar o título impagável de um conto de Robert Sheckley: “Você sente alguma coisa quando eu faço assim?...”
 
“Cabaré Mineiro” é um título auto-explicativo e merecedor de comentário. Existem vários tipos de lugares chamados de "cabarés", que não são, necessariamente, casas de prostituição. Neste extremo, temos aqueles lugares onde os clientes entram, há um recinto com várias mulheres em exposição (ou elas são trazidas em grupo, para serem apreciadas), o cliente escolhe uma, e os dois se retiram rumo a um dos quartos.
 
É um sistema vapt-vupt, eminentemente prático; ninguém perde tempo com nhém-nhém-nhém. (Já ouvi muuuito esse argumento.) A gente vê isso em contos de Rubem Fonseca, em filmes como Domicílio Conjugal de François Truffaut ou A Bela da Tarde de Luís Buñuel, em filmes de Fellini como Roma, Amarcord etc.  Eu acho que chamar de cabaré um lugar desse tipo é usar um santo nome em vão.
 
No extremo oposto, o cabaré é um lugar alegre. Um night-club: tem mesas, pista de dança, palco com orquestra (ou, na faixa popularesca, vitrola de ficha), balcão e garçons servindo bebidas... Os quartos ficam no andar de cima ou na parte traseira, mas as mulheres circulam por entre os clientes, conversam, sentam na mesa, bebem, flertam... Ali o nhém-nhém-nhém impera, porque (também já ouvi muito este argumento) sem nhém-nhém-nhém que graça tem?!
 
O cabaré do poema de Drummond é bem assim, como os cabarés de Jorge Amado. É um espaço social onde os homens se exibem, gastam a rodo, disputam a atenção das mulheres mais bem cotadas, assistem danças, em alguns casos jogam baralho... O sexo é apenas um dos elementos envolvidos.
 
O poeta diz:
 
A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
 
A nacionalidade duvidosa da dançarina já carimba no primeiro verso a natureza fantasiosa do ambiente, onde o uísque escocês é paraguaio. A “sala mestiça” é um elemento confirmador de que não é nenhum “Tabarís” frequentado por coronéis ricaços; é um cabaré de classe média.
 
Com olhos morenos estou despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
 
É interessante o fato do poema ser narrado, sem pudor, na primeira pessoa. Não se trata de saber, biograficamente, se Drummond frequentava cabarés, mas de vê-lo como um personagem-narrador identificado com o ambiente.
 
É o mesmo poeta que no mesmo livro insiste em afirmar que já foi “brasileiro moreno como vocês”. O poeta afirma ter olhos morenos, como em outro poema queixava-se do “desprezo da morena”. Há uma busca consciente de brasileiridade, projeto meio confuso mas provavelmente sincero que os modernistas cultivaram em maior ou menor grau.
 
A descrição realista da dançarina torna mais clara essa tensão mental e simbólica entre a mente de um rapaz classe-média (que está ali, em princípio, pagando) e uma moça pobre. Ela é picada de mosquitos, tem marca de bala, tem dente de ouro, é gorda... Mas é linda, é linda! O desejo fala mais ato do que tudo. O poeta os supostos defeitos, mas não liga. E quem liga?! 
 
Lembra um poema muitíssimo posterior de Drummond, de Boitempo, onde ele diz: “eu quero a puta eu quero a puta”.
 
Ele (o narrador da historinha) quer descarregar a tensão sexual acumulada, é claro, mas é mais do que isso. Ele quer compartilhar (com ela, com o leitor, tanto faz) o instante de iluminação em que ele percebe que uma mulher feia pode ser linda, o desejo de quem precisa dela a torna linda; assim como um país feio pode ser um país lindo, se conseguirmos ter desejo por esse país.
 
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
 
Estou exagerando? Não acho. Olha só o paralelismo dos versos “com olhos morenos... / cem olhos brasileiros...”. Ele pula da experiência particular para a experiência social, coletiva. Naquele salão, todos somos morenos, todos somos brasileiros, todos somos espanholas de Montes Claros. Há um desejo coletivo que serve de liga, de argamassa.
 
As tetas da dançarina, elemento atrator do desejo dos homens, equivalem às tetas da lavadeira em “Iniciação amorosa”. E lembra os versos do repentista Canhotinho:
 
Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos,
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram!
 
É mais um capítulo da nossa promiscuidade cruel e afetiva entre classes sociais, com sua mistura de desejo e repulsa, de dominação e submissão, de exploração e de armistício.
 


(Canhotinho)
 





segunda-feira, 21 de agosto de 2023

4974) Eu já fui cineasta (21.8.2023)



(Lydia Tár)


Em certos momentos tenho a impressão de que fui a única pessoa a gostar do fime Tár, estreado por Cate Blanchett e dirigido (com brilhantismo) por Todd Field, aquele rapaz que faz o pianista amigo de Tom Cruise no filme kubrickiano Eyes Wide Shut (“De Olhos Fechados”, 1999).
 
Sei que não sou o único, claro, e nas redes sociais vi inúmeros elogios. Mas vi também rejeições bruscas, irritadas: ao filme, ao enredo, à personagem principal, à narrativa, à verossimilhança da história contada.
 
Tar se passa num mundo que eu só aceito como real porque sei que o é. É o mundo das pessoas riquíssimas, sofisticadas, cosmopolitas, poderosas. Não é um mundo de executivos bilionários, de banqueiros, de políticos. Curiosamente, é o mundo da Cultura e da Arte, ou seja, em princípio este mesmo mundinho de fundilhos rasgados e mão-em-concha onde vivo e bulo há mais de meio século.  
 
Só que, no caso dela, é o mundo da alta cultura, da música orquestral, das grandes temporadas líricas... Alguém já afirmou que a música sinfônica e a física teórica são as maiores contribuições da Europa ao pensamento humano. Uma constatação que pode ser ampliada, é claro (eu incluiria o romance dos séculos 18-19), mas nunca reduzida. Estes dois monumentos ninguém discute. 
 
Lydia Tár é uma maestra talentosa, culta, articulada, articuladora, ambiciosa, sagaz, olimpicamente certa do próprio poder no mundo da música. Não é um papel difícil para Cate Blanchett. Ela já interpretou Bob Dylan, o Dylan elétrico do Royal Albert Hall Concert, o Dylan de 1966. E tira Lydia Tár de letra.
 
A maestra é do tipo capaz de passar o trator por cima de tudo, quando precisa alcançar um objetivo: namorar uma musicista jovem, demitir um funcionário, proteger a filhinha que sofre bullying na escola, acabar um namoro que perdeu o encanto. Tudo isto a ajudou na subida à Fama – e, como nos romances-para-costureirinhas, tudo isto vai provocar seu desmoronamento final. (Que, ao contrário da maioria dos espectadores, achei adequado, dramaturgicamente plausível, e narrado com desconcertante simplicidade.)
 
Gosto de fazer aproximações inesperadas, meio randômicas, entre coisas não-relacionadas. O nome da personagem de Cate Blanchett me foi trazido à memória quando assisti agora há pouco tempo o documentário Béla Tarr: I Used to be a Filmmaker (2013) de Jean-Marc Lamoure, sobre o cineasta húngaro conhecido por seus filmes austeros, enigmáticos, arrastados, filosóficos, tarkovskyanos. 

(Béla Tarr)


O documentário acompanha as filmagens de O Cavalo de Turim (2011) o último filme dirigido por Tarr, nascido em 1955, autor de Satantango, O Homem de Londres  e outros.
 
É um filme feito na borda do fim dos tempos, por assim dizer: uma campina semi-desértica, açoitada por uma ventania que parece obstinar-se em varrer dali a presença humana para que o mundo se acabe sem que haja testemunhas.
 
Numa casa de pedra vivem um homem de um braço só e uma mulher jovem, aparentemente sua filha. Ele tem uma carroça e um cavalo, e de vez em quando vai vender coisas num vilarejo. E só.
 
O filme é preto-e-branco, e tem uma música que parece uma ventania repetida em loop misturada a uivos de banshees carpindo a morte do sol.
 
No doc, vemos Béla Tarr dirigindo cenas deste filme impressionante, e conversando com membros da equipe, que dão breves entrevistas comentando seu trabalho. São artistas que criam juntos com o diretor há muitos anos: a montadora (e esposa) Agnes Hranitzky, o escritor Lazslo Krasznahorkai, o fotógrafo Fred Kelemen, o compositor Mihaly Vig, a atriz Erika Bok.
 
É o mundo da Arte e da Cultura, também. E ao ver as filmagens de O Cavalo de Turim tenho a sensação de que o diretor e sua equipe estão mais próximos, social e historicamente, daqueles personagens miseráveis cuja vida estão filmando do que do mundo glitzy, o mundo blasé, o mundo highbrow da maestra Lydia Tár. 
 
Tudo isso é cultura, por certo, e não estou aqui contrapondo maestras que vestem (o quê, Deus do céu? Eu só estudei até Dior e Givenchy) a cineastas intelectuais que trajam capote e botas. É um mundo só, e Béla Tarr não é propriamente um tresmundista rodando filme vencido e largando papagaios no comércio do vilarejo onde filmou. Seus filmes são produções internacionais, e aparecem nos grandes festivais de cinema. Ele não é um pobretão.
 
Mesmo assim, há um contraste tão desconcertante entre o mundo de Lydia Tár e o mundo de Béla Tarr que o primeiro impulso é achar que são polos opostos, e que os dois nada têm em comum. Eu vejo, contudo, no olhar de Cate Blanchett (quando “recebe” a maestra) e no olhar do diretor húngaro a mesma concentração, a mesma fixidez, a mesma imperturbabilidade das pessoas capazes de criar com grande intensidade e em alto nível. O olhar impiedoso do artista nos momentos em que deixa de ser gente como a gente e passa a ser o que é.
 
A maestra deixa que a vida pessoal lhe arruíne a carreira; o cineasta pára de filmar em 2011 e vai fazer outra coisa. Rica ou modesta, fashion ou ascética, a Arte de verdade cobra um preço alto. Feliz de quem tem uma vida com que pagá-lo. 
 









sexta-feira, 18 de agosto de 2023

4973) Otacílio Batista, cantador (18.8.2023)

 
 
O próximo mês de setembro trará as comemorações do centenário de nascimento de Otacílio Batista, um dos grandes cantadores de viola de sua geração. Um amigo-e-mestre com quem tive a sorte de conviver durante alguns anos, principalmente entre 1975 e 1980, quando eu morava no Nordeste (Campina Grande, Salvador) e convivia mais de perto com o Olimpo da cantoria.
 
Digo “Olimpo” na brincadeira, mas a cantoria é meio assim – uma montanha fabulosa habitada por deuses capazes de façanhas que nos parecem sobrenaturais, mas basta subir a ladeira e vê-los de perto para constatar que são “humanos, demasiado humanos”, com as mesmas paixões nossas, os mesmos sentimentos, as mesmas qualidades e defeitos... Ou seja: são duas vezes mais interessantes.
 
Otacílio Batista (28-9-1926 / 5-8-2003) era um dos três irmãos violeiros que muito fizeram para transformar São José do Egito (PE) numa das capitais simbólicas da cantoria. Junto com Lourival (1915-1992) e Dimas (1921-1986) ele representou a geração de meados do século 20, que viveu e impulsionou um dos vários ciclos de expansão e modernização da arte do repente.
 
E está pronta para ir às livrarias a biografia Otacílio Batista, uma história do repente brasileiro (São Paulo: Hedra & Acorde!, 2023), escrita pelo seu neto Sandino Patriota, pesquisador da Universidade Federal do ABC (UFABC). Não é o primeiro livro  abordar a pessoa e os versos de Otacílio, mas neste caso o autor, sendo da família, teve acesso a uma grande quantidade de material, inclusive narrativas orais que enriquecem o retrato.
 
Otacílio Batista Patriota já tem o nome na métrica perfeita do decassílabo em martelo agalopado, com acento nas sílabas 3, 6 e 10. Era um cantador de verso rápido, mas com uma dicção calma e cadenciada, a cabeça trabalhando como um chip Intel enquanto a voz escandia as sílabas sem vexame (=pressa), como se estivesse ditando o verso para alunos aplicados.
 
Fui um deles, aquele tipo de aluno de mesa de bar a quem ele sempre dava explicações pacientes, orgulhoso ao ver como os universitários cabeludos e intelectualóides estavam começando, em meados dos anos 1970, a querer saber quem inventou o galope beira-mar, quem foi Fabião das Queimadas, e a diferença entre sextilha e gemedeira.
 
 O livro de Sandino traz uma comparação detalhada e pitoresca entre os três irmãos Batista, traçando o perfil único de cada um.
 
Lourival: o mais velho, boêmio, farrista, humor sarcástico, lirismo delicado, trocadilhista emérito, vida profissional caótica.
 
Dimas (que não conheci pessoalmente) mais reservado, leitor voraz, lírico e erudito ao mesmo tempo, acabou deixando a viola de lado para ser professor e diretor de colégio.
 
Otacílio, grande observador, de verso elegante e resposta rápida, autor de inúmeros livros, capaz de belas poesias líricas e de versos fesceninos de fazer inveja a Bocage.
 
Como observa Sandino Patriota:
 
Apesar de ser apenas oito anos mais velho do que Otacílio e seis do que Dimas, a distância real entre esses cantadores era de uma geração inteira. Lourival pertenceu à geração dos Vates antigos: cantava, se portava e pensava como os cantadores que fizeram fama no fim do século XIX. (pág. 24)
 
Começando a carreira de cantador profissional em 1940, Otacílio foi um dos protagonistas do “boom” do repente após a II Guerra Mundial.
 
Em 1946, Ariano Suassuna quebrou um honorável tabu da cultura elitista ao levar cantadores (os Batista entre eles) para o palco do Teatro Santa Isabel, no Recife.
 
Em 1947, Rogaciano Leite organizou o primeiro congresso (=festival) de cantadores do Nordeste, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, onde a dupla vencedora foi Cego Aderaldo e Otacílio Batista.
 
Em 1948 Rogaciano “fechou o firo” ao levar para o Teatro Santa Isabel o segundo congresso de cantadores.
 
Em 1949, um grupo de políticos e jornalistas, admiradores do repente, produziram e organizaram uma viagem, ao Rio e São Paulo, de um grupo de violeiros que incluía os três Batistas, o veterano Severino Pinto (o “Pinto do Monteiro”) e Agostinho Lopes dos Santos. A revista O Cruzeiro (25-6-1949) dedicou várias páginas à caravana de poetas, que cantaram para ministros e autoridades, e foram celebrados por Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Cardozo.
 

(Otacíio, Lourival,  Pinto e Dimas)


É bom destacar, sempre, que isto se deu num momento em que o baião de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varria o Brasil radiofônico de ponta a ponta, e Gonzagão nunca deixou de lembrar o quanto sua música devia à batida da viola e às toadas dos cantadores. Foi um grande momento de evidência da cultura do Nordeste na indústria cultural (rádios, jornais, revistas) sudestina.
 
Sandino aborda também a questão do mito de Zé Limeira, “o Poeta do Absurdo” celebrado por Orlando Tejo. Como se sabe, muitos dos versos atribuídos por Tejo a Zé Limeira foram escritos por Otacílio. Hoje, destrinchar quem fez o quê é um pouco como pegar uma xícara de café com leite e separar os dois.
 
Otacílio era alto, corpulento, branco de olhos claros, sempre bem vestido, passo vagaroso, porte altivo. Sempre cortês e atencioso, mas avermelhava num segundo quando alguma coisa o irritava. Bem humorado na hora da anedota ou da piada ferina sobre algum incauto, tinha pavio curto quando se ofendia, erguia os ombros, ficava que era ver um touro. Mas não era homem de briga; se vingava no verso, porque Deus é grande.
 
Lourival Batista já foi objeto de alguns livros (de Ivo Mascena Veras, Alberto da Cunha Melo), e de filmes de curta-metragem, inclusive o Bom Dia, Poeta (2015) de Alexandre Alencar, onde colaborei no roteiro. Otacílio tem agora esta atenta e útil biografia. Fica faltando a de Dimas Batista, o homem que disse: “tudo passa na vida, tudo passa, mas nem tudo que passa a gente esquece”.
 
 
 




terça-feira, 15 de agosto de 2023

4972) A não-música de John Cage (15.8.2023)



 
No mês de setembro completam-se 111 anos do nascimento de John Cage, o compositor mais fora-de-esquadro da música dos Estados Unidos. Chamado de gênio e de charlatão por muita gente. É o que acontece com muitos artistas de vanguarda que inventam um conceito de criação artística, aferram-se a ele com uma monomania quase psicótica, e acabam sendo compreendidos por um certo número de pessoas, em quantidade (e importância) suficientes para garantir a sobrevivência das suas obras. 
 
Cage é visto como um dos integrantes do que alguns gozadores chamam “a turma do barulho”, compositores de formação erudita que utilizam métodos não-convencionais para produzir música. Instrumentos, notações, estruturas, tudo a serviço de composições que parecem querer, insistentemente, desmontar nosso conceito do que é música. 
 
Perguntado num programa de TV se de fato fazia música, ele disse: “Sim. Eu considero que música é a produção de sons, então posso chamar de música isto que faço”.
 
Cage faz música experimental de muitos tipos. Um deles consiste em descobrir sonoridade e expressividade em sons de origem diferente e estrutura diferente do que se observa numa música orquestral comum.
 
Acho que é mais fácil entendê-lo quando pensamos nas experiências do nosso Hermeto Paschoal na música popular. O albino Hermeto toca chaleira, toca badalo de vaca, bota porco para roncar numa gravação, balança uma lata cheia de tampas de garrafa... É música? Eu acho que sim, porque, sendo músico popular, ele envolve tudo isso num colchão sonoro de música convencional, feita com teclados, saxofones, etc. 
 
Em Hermeto, os sons não-convencionais passam como mero complemento da música dele. Uma música às vezes estranha, mas jazzística, meio erudita, meio popularzona, uma música que tudo recebe e tudo acolhe. 
 
John Cage, não. Ele oferece ao ouvinte o som concreto, cru e cumulativo de campainhas, percussões aleatórias usando vidro e metal, água jorrando ou sendo chacoalhada, ruído de aparelhos culinários, rádio captando estática... Ele faz essa música propositalmente não-melódica, não-rítmica e não-harmônica (creio eu) não para agredir nossos ouvidos, mas para despertá-los.
 
A música que nós ouvimos (erudita ou popular) é feita de um repertório de sons muito vasto, os sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra, uma banda de rock, uma escola de samba, etc. Sua riqueza é espantosa, inesgotável, mas é um conjunto de timbres, fraseados melódicos, estrutura e cadências com as quais já nos acostumamos. Reagimos a ela como um cachorro reage a uma campainha. Fomos treinados para aceitá-la, e nossa balança de gosto/não-gosto funciona em torno do cardápio que ela oferece. 
 
Mas... Basta ouvir meia hora de música oriental ou africana para perceber o quanto ignoramos e o quanto provavelmente estamos perdendo. Bastava ouvir mais, prestar atenção, ler um pouco a respeito, construir uma nova sensibilidade... Mas a verdade é que pouca gente tem tempo pra isso. Contenta-se com o que já conhece, e que não é pouco. 
 
Cage é um artista provocativo, com muito da atitude dos artistas plásticos de vanguarda. Ele faz uma composição que consiste apenas de silêncio, o que equivale às telas em "Branco sobre branco" de Malévitch. Com um complemento: a peça 4’33” exige que o concertista se sente ao piano, mas sem tocar, e a peça sonora será composta pelos ruídos da plateia. 
 
Todo o trabalho de Cage (incluindo livros, palestras, entrevistas) mostra os bastidores da música, a discussão do que constitui uma música, o limite entre a música na cabeça do compositor e o resultado final mostrado ao público. Em geral, essa discussão não nos interessa. Somo consumidores, somos ouvintes, queremos o resultado pronto. Não queremos participar da discussão criativa, queremos fruir uma criação e passar para a próxima.  
 
Esse “queremos” é relativo, claro, porque milhares de pessoas (eu por exemplo) tem algum interesse por essas discussões. Não queremos só andar no carro, queremos saber como o motor funciona.  
 
Daí que a língua inglesa tem um expressão-padrão para isso: “a poet’s poet” é um poeta que escreve para outros poetas, “a painter’s painter” é um pintor cuja obra interessa mais a outros pintores do que ao público, e assim por diante. Não tem nada demais nisso, e só mesmo o furor consumista e anti-intelectual de nossa época para considerá-lo uma forma de elitismo.
 
Em todo caso, Cage é abraçado e estudado não apenas por músicos eruditos. Roqueiros como Frank Zappa, Brian Eno, e outros tocam para multidões, fazem música dançante para balançar o esqueleto, mas gostam de refletir sobre a filosofia da composição, e de estudar em profundidade a matéria primas (o som e o silêncio) que estão manipulando, e os instrumentos que utilizam. E a obra de Cage é uma referência para eles.
 
No documentário John Cage: Journeys in Sound (2012) de Allan Miller e Paul Smaczny, Cage aparece em papos-cabeça com John Lennon e Yoko Ono; explicando sua obsessão por cogumelos comestíveis; compondo com o auxílio do I-Ching, o Livro das Mutações. É um experimentalista, um curioso com erudição, um cara que gosta – pra usar um clichê do momento – de “pensar fora da caixa”.
 
No programa de TV que aparece no documentário, Cage conta que às vezes o pai o levava para caçar no bosque, e os dois não conseguiam abater nenhuma caça para o jantar. Então o pai dizia: “Não faz mal, a gente sempre pode ir na cidade e comprar alguma coisa de verdade”. Os animais caçados pessoalmente são vistos como um substituto da comida “de verdade” – a industrializada, que se compra no supermercado. 
 
Essa curiosa dicotomia está na raiz da música de Cage. Para ele, os sons de verdade, a música de verdade, são as sonoridades livres, selvagens e à solta que existem no mundo: barulho de chuva, de trânsito, de talher de metal em prato de louça, de porta rangendo, de vidro quebrando, de papel sendo amassado... E não a música radiofônica, feita como sonoridades industrializadas, codificadas, domesticadas, padronizadas... A comida-enlatada do som.
 
No mesmo programa de TV o apresentador previne Cage, antes do “concerto”, que algumas pessoas da platéia poderão rir durante os seus números “musicais”. Ele responde, tranquilo: “Tudo bem. Eu acho o riso melhor do que as lágrimas”.
 
 



sábado, 12 de agosto de 2023

4971) O começo Mike Tyson (12.8.2023)




(Gardner Dozois)
 
Gardner Dozois, editor da Asimov’s Science Fiction, uma revista que recebia centenas de contos por semana, tinha uma receita infalível para filtrar este material.  Dizia ele:
 
Leio a primeira página do conto, e depois a última.  A primeira página tem que me dar vontade de continuar lendo sem parar.  A última precisa me dar vontade de voltar atrás e saber o que aconteceu para resultar naquele desfecho. 
 
Quando se tratava de um romance (completava ele), fazia o mesmo com o primeiro e o último capítulo.
 
Isto não é um critério absoluto de julgamento literário, porque alguns textos começam de mansinho e vão nos envolvendo.  Outros terminam bem, mas de maneira indireta, alusiva, sem desfechos bombásticos.  Mas para quem precisa definir um critério urgente de interesse, serve perfeitamente.  Um bom começo é meio caminho andado. 



Já tive o hábito de chamar esse tipo de abertura de conto “O Começo Mike Tyson”. Mike Tyson foi o campeão mundial dos pesos-pesados nos anos 1980-1990, e era famoso por ganhar as lutas logo no primeiro assalto. A gente ia assistir a luta num bar, e quando emendava as mesas, sentava e pedia a primeira cerveja... a luta já tinha acabado. Ele partia pra cima e resolvia o problema, às vezes, em questão de dois ou três minutos.



(Machado de Assis, por Abel Costa)
 

No conto (ou romance), às vezes nem precisa ser um parágrafo inteiro, porque a primeira frase pega o leitor pelo braço e o conduz. Machado de Assis é um mestre nessas frases de abertura que em poucas palavras impõem uma situação, jogam o leitor de súbito no meio de um acontecimento.  Como em “O relógio de ouro”:
 
“Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro, inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia”. 
 
Em “Fulano”, ele arrasta o leitor:
 
“Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo Fulano Beltrão.  Conheceu-o?  Era um homem de cerca de sessenta anos...” 
 
Em “A carteira”, começa ele:
 
“...De repente Honório olhou para o chão e viu uma carteira.  Abaixar-se, apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes”
 
Outras frases de abertura provocam espanto, como em “História comum”:
 
“Caí na copa do chapéu de um homem que passava...” 
 
O autor não tarda a revelar que quem conta a história é um alfinete.

 
Começos bruscos convêm a histórias de mistério e suspense, como na aventura de Sherlock Holmes “A granja da abadia”, contada por Conan Doyle:
 
“Numa fria e nevoenta manhã de inverno, em 97, acordei com uma batida no ombro.  Era Holmes. A vela que ele segurava brilhava no rosto ansioso e fiquei imediatamente sabendo que acontecera alguma coisa.  – Venha, Watson, venha!  O jogo começou!  Nem uma palavra!   Vista-se e venha!”  
 
É a técnica de começar a história in media res, já no meio dos acontecimentos, sem deixar ao leitor tempo para respirar, como faz Rubem Fonseca na abertura de “Desempenho”:
 
“Consigo agarrar Rubão, encurralando-o de encontro às cordas.  O filho da puta tem base, agarra-se comigo, encosta o rosto no meu rosto para impedir que eu dê cabeçadas na cara dele”. 
 
É a descrição de uma luta, que o autor torna vívida através do uso de palavrões, que exprimem a agressividade animal da cena, e do uso do jargão dos lutadores (“de encontro às cordas”, “tem base”). 
 
Fonseca é mestre nos inícios coloquiais, em que logo na primeira frase nos deparamos com uma história de narrador pouco confiável, como “Gazela”:
 
“O senhor talvez pense que eu estou bêbado, mas não estou bêbado porra nenhuma.  É esta história que me deixa tonto, nunca contei nada para ninguém; na verdade, quem me parece bêbado é o senhor”. 
 
Outra técnica tradicional das aberturas é anunciar o caráter extraordinário da história a ser contada, e fisgar o leitor logo na primeira linha.



Como faz Conan Doyle, em “O caçador de besouros”:
 
“—Uma experiência curiosa? disse o doutor. – Sim, meus amigos, aconteceu-me curiosíssima experiência.  Espero nunca ter outra, porque seria contra todas as leis da probabilidade que dois acontecimentos semelhantes se passassem numa só vida de um homem.  Podem vocês acreditar-me ou não, mas a coisa aconteceu exatamente tal como a conto”.
 
Criar uma aura de mistério ou anunciar uma revelação espantosa serve a autores que lidam com o fantástico, como Guy de Maupassant na abertura de “Quem sabe?”:
 
“Meu Deus!  Meu Deus!  Vou afinal escrever o que me aconteceu!  Mas será  que conseguirei?  Terei coragem?  Aquilo é tão estranho, tão inexplicável, tão incompreensível, tão louco!” 
 
O tom desesperado, quase histérico de Maupassant é herdeiro direto de autores como Edgar Allan Poe, que manipularam com a mesma mestria o conto alucinatório.  Poe começa assim “O coração denunciador”: 
 
“É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso!  Mas, por que ireis dizer que sou louco?  A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu.” 
 
Ou em “O gato preto”:
 
“Para a muito estranha embora muito familiar narrativa que estou a escrever, não espero nem solicito crédito.  Louco, em verdade, seria eu para esperá-lo, num caso em que meus próprios sentidos rejeitam seu próprio testemunho.  Contudo, louco não sou e com certeza não estou sonhando”. 

 
Muitos autores escolhem começar assim um conto.  Anunciar um mistério, uma dúvida, uma situação enigmática e inquietante, e contar com a curiosidade do leitor pra mantê-lo preso até o final.  Isto pode ser feito como Conan Doyle em “Os três Garridebs”, com a revelação parcial de detalhes:
 
“Podia ter sido uma comédia como podia ter sido uma tragédia.  A um homem custou a perda da razão, a mim me custou um pouco de sangue e a um terceiro lhe custou as penas da lei.  Entretanto, sempre houve um elemento de comédia.  O leitor que julgue por si mesmo”.
 
Claro que nem sempre é preciso recorrer ao suspense ou a situações violentas.  Basta o mistério, como Machado começa “Entre santos”:
 
“Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária”. 
 
Em “Idéias de canário” ele começa assim:
 
“Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito.  Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo.  Eis aqui o resumo da narração”. 
 
E seu conto clássico “Missa do Galo” principia:
 
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”. 
 
Esta frase inicial dá o tom de todo o conto, em que a personagem feminina nos é revelada pelo narrador ingênuo, sem que ele entenda os fatos que está narrando.
 


(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista Língua Portuguesa (Ed. Segmento, São Paulo) em dezembro de 2008.)





quarta-feira, 9 de agosto de 2023

4970) O fim da crítica de cinema (9.8.2023)




A crítica de cinema é uma atividade em extinção? Não, não é, apesar de tudo o que tem acontecido. Principalmente (entre muitas, muitas outras coisas) a resistível ascensão do “influenciador de internet”, a pessoa que tem um canal de YouTube, um blog, um saite, seja lá o que for – e com essa arma explica o mundo para um milhão de seguidores. 
 
O medo é real, no entanto, e um artigo recente de Manuela Lazic no The Guardian pergunta: “Quem precisa de críticos de cinema, quando os estúdios têm como certo que os influenciadores vão elogiar o filme?”. Eu diria que O Império dos Fãs é um título muito mais ameaçador do que O Ataque Dos Clones ou mesmo A Vingança dos Sith.   
 
https://www.theguardian.com/film/2023/aug/01/what-are-film-critics-for-today
 
Não posso ser demasiado severo com os fãs cinematográficos: fui um deles, e pelo que me dizem não existe o conceito de “ex-fã”. Não há como negar, porém, que qualquer multidão de fãs tem um comportamento ligeiramente insetóide, e há um mecanismo pavloviano conduzindo essas multidões na direção da bilheteria e, depois, na direção dos teclados, onde passarão a conduzir novas levas para a bilheteria – que, mais do que a tela, é a razão de ser de tudo aquilo. 
 
Não entra aqui, por enquanto, a questão dos filmes serem bons ou ruins, até porque estes conceitos são construídos através do que podemos chamar de “subjetividade coletiva” – grupos significativos de pessoas que compartilham critérios e opiniões. Se um milhão de pessoas no mundo inteiro diz que um filme de Fellini ou um filme de David Lynch é bom, isto significa alguma coisa. Se dizem que o filme de [coloque aqui o nome de algum diretor ruim de hoje em dia, estou desatualizado] é bom, também não posso discutir. Como diz um meme famoso, “cultura não é só o que você gosta”. Paciência. 
 
A Internet e suas plataformas de vídeo têm canais onde os chamados influenciadores falam diretamente para centenas de milhares de pessoas, ou até milhões, seja ao vivo ou em gravação. Isto vai muitíssimo além, no Brasil por exemplo, do que um crítico de cinema de jornal ou revista pode alcançar. Em termos de formação de opinião, no atual desnível tecnológico, os fãs andam de Ferrari e os críticos no fusquinha de sempre. 
 
O poder dos críticos sempre foi proporcional ao poder dos meios de comunicação. Nos anos 1980, no Rio de Janeiro, uma crítica negativa de Maria Helena Dutra era capaz de tirar de cartaz um show que acabara de estrear no Canecão. Bárbara Heliodora demolia uma peça de teatro, e a peça corria o risco de não ter uma segunda temporada. Curiosamente, devastações desse tipo são mais raras na literatura. Pouca gente apanhou tanto quanto Carlos Drummond e Guimarães Rosa – mas se impuseram. Também tiveram críticos respeitados a seu favor. Ou seja: havia peso nos dois pratos da balança. 
 
Pode-se estender um pouquinho essa metáfora e dizer que o problema agora não está na balança; digamos que esteja na fita métrica. Críticos de peso continuam existindo, mas os critérios de sucesso ou fracasso não são determinados por eles, e sim por uma floração de semi-críticos, que são os influenciadores. Alguns certamente têm formação cultural semelhante à dos críticos da imprensa. Outros são demasiado jovens, voluntariosos, opinativos na base do “amei” ou “detestei”. Em parte foram formados pela própria imprensa, quando esta começou a usar slogans redutores tipo Imperdível ou Fuja! para qualificar os espetáculos. 


(Pauline Kael)
 
A novaiorquina Pauline Kael, que escrevia na poderosa The New Yorker, já teve um enorme peso-de-poder nas mãos, algo que um crítico brasileiro jamais imaginaria. Suas opiniões nem sempre coincidem com as minhas, mas ela fala com clareza, com paixão, com bons argumentos e com conhecimento de causa – mesmo quando destrói filmes que eu admiro ou quando elogia banalidades. Eu leio os críticos, afinal, não na expectativa de que concordem com a minha opinião, mas para que a enriqueçam.
 
Às vezes a crítica dela vinha carregada de vitríolo, vinha azedada por aquele complexo-de-sabe-tudo que os novaiorquinos têm (e não só eles, mas cala-te boca). Pauline dizia receber cartas ameaçadoras dizendo em quantos pedaços o missivista pretendia cortar seu corpo, e o que faria depois com cada um deles. No filme What She Said: The Art of Pauline Kael (Rob Garver, 2018), há um depoimento de David Lean que chega a incomodar. Ele tinha sido convidado a um almoço do New York Critics Circle, em 1970. 
 
Existe uma coisa, não sei bem como chamá-la, digamos: um círculo de críticos. Eles têm línguas afiadas. E eu fiquei ali por duas horas. E Pauline Kael tem uma língua especialmente afiada. Eu só lembro de ter dito, no final: “Acho que vocês só ficarão satisfeitos no dia em que eu fizer um filme preto-e-branco em 16mm”. E Pauline Kael disse: “Oh, não, pode fazer colorido.” E isto foi tudo. Teve um efeito muito sério sobre mim. Eu pensei: por que diabo estou fazendo filmes? Eu não tenho que fazer isso. E deixei de fazer, por algum tempo. Isso abala a confiança da gente, sabe, de um jeito terrível.



(David Lean)
 
Quem diz isso não é um jovem inseguro, é o homem que dirigiu A Ponte do Rio Kwai, Doutor Jivago, Lawrence da Arábia e A Filha de Ryan. Disse ao ser acuado por críticos que certamente não gostavam de seu cinemão de tela larga, paisagens amplas, dramas pessoais misturados a momentos épicos da História, com bela música orquestral. Bons filmes. (Eu gosto.)
 
Hoje, um rapaz ou uma moça de 25 anos, que ouviu algum galo cantar mas não sabe onde, pode fazer um estrago semelhante ao de Pauline. Mesmo que não seja algo encomendado por inimigos pessoais do diretor ou por estúdios rivais, mesmo que seja uma opinião sincera e sem maldade, pode produzir um estrago pela simples questão dos grandes números. 
 
Millôr Fernandes (que tinha língua tão ferina quanto a de Pauline Kael) disse que ditadura é quando você manda em mim, e democracia é quando eu mando em você. Dá para pensar que um bom crítico/influenciador é o que concorda com meu gosto, e o mau é o que discorda. As opiniões em si teriam um efeito apenas estimulante se não fosse o enorme poder que é conferido a alguém, seja nas páginas de uma revista influente como The New Yorker seja num canal de YouTube com um milhão de assinantes. 
 
Dizem que o poder corrompe, e se fosse só isto era bom. A verdade é que o poder ilumina, ofusca, fortalece, inebria, ilude, reafirma, provoca, atiça... Um crítico em posição de poder é uma pessoa montada num tigre. (Um artista também.)