quarta-feira, 27 de junho de 2018

4361) Sagarana: A hora e vez de Augusto Matraga (27.6.2018)






“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é o derradeiro (e para muitos o melhor) conto do livro Sagarana (1946), o primeiro e possivelmente o mais acessível dos livros do autor.

Tenho falado nestes meus comentários sobre Sagarana que um dos temas gerais do livro, expresso numa epígrafe na sua abertura, é o da “ida e volta”. Está na epígrafe que diz “for a walk and back again”. Que exprime, de certo modo, o retorno mental de Rosa ao seu sertão de origem, mesmo morando longe.

O conto “Matraga” conta a história da “morte” simbólica de um valentão e sua “ressurreição” como herói. É a história de um homem que é uma coisa, transforma-se em outra, e no fim volta a ser o que era, mas valorizado por essa transformação.

Se algum professor precisar de um exemplo literário para explicar o conceito de “tese / antítese / síntese”, este conto serve como um dedo numa luva.

Já na primeira fase do conto (tese), ficamos sabendo que Matraga (que na verdade chama-se “nhô” Augusto Esteves) é menino mimado, agroboy que cresceu mandando e desmandando, mas hoje tem a vida em pandarecos:

Fora assim desde menino, uma meninice à louca e à larga, de filho único de pai pancrácio. (...) Agora, com a morte do Coronel Afonsão, tudo piorara, ainda mais. Nem pensar. Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando Nhô Augusto. E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca.



Este balanço ocorre na mente de D. Dionóra, a esposa em vias de separação, por não aguentar mais as brutalidades dele. Ela vai morar com um pretendente, e no mesmo dia os capangas de Nhô Augusto se passam para o lado do Major Consilva, velho inimigo da família. E a quem cabe ordenar a surra homérica, e o castigo final:

“Arrastem pra longe, para fora das minhas terras... Marquem a ferro, depois matem.”

Assim é feito, e Nhô Augusto, os ossos todos partidos a pauladas, recebe o ferro em brasa “...com a marca de gado do Major – que soía ser um triângulo dentro de uma circunferência – e imprimiram-na, com chiado, chamusco e fumaça, na polpa glútea direita de Nhô Augusto”.

Dado por morto após rolar numa ribanceira, ele é recolhido por um casal de pretos num casebre ali perto.

Nhô Augusto, dias depois, quando voltou a ter noção das coisas, viu que tinha as pernas metidas em toscas talas de taboca e acomodadas em regos de telhas, porque a esquerda estava partida em dois lugares, e a direita num só, mas com ferida aberta. As moscas esvoaçavam e pousavam, e o corpo todo lhe doía, com costelas também partidas, e mais um braço, e um sofrimento de machucaduras e cortes, e a queimadura da marca do ferro, como se o seu pobre corpo tivesse ficado imenso.

Começa então a convalescença física e a purificação moral. Depois de desmoralizado o valentão e derrotado o brabo, ficou somente o Nhô Augusto de dentro, fraco e infeliz. O processo dura “muitos meses, porque os ossos tomavam tempo para se ajuntar, e a fratura exposta criara bicheira.”

E essa reconstrução íntima, essa antítese, se dá após uma depressão profunda em que Nhô Augusto chora, lamenta, se abate, se envergonha de tudo que fez. E volta a rezar. Volta, porque, como dizia um tio velho de sua esposa, “quem criou Nhô Augusto foi  a avó... Queria o menino pra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha”.

Nhô Augusto, já sarado, resolve pegar o casal de pretos velhos e ir morar com eles num ranchozinho que tinha num lugar distante, onde ninguém o conhecia.

E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.
(...)
E, pois, foi por aí, dias depois, que aconteceu uma coisa até então jamais vista, e até hoje mui lembrada pelo povinho do Tombador.

Este trecho é outra virada-de-esquina decisiva no conto, e o autor a anuncia com a devida pompa. Porque nos parágrafos seguintes ele descreve como aquele vilarejozinho esquecido onde Nhô Augusto vivia encafuado chega de passagem um bando de jagunços armados, tendo à frente

...o arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.

O encontro com esse chefe jagunço (que tem algo do encontro entre Riobaldo e Zé Bebelo no Grande Sertão) vai soprar na alma de Nhô Augusto as brasas dormidas do fogo guerreiro. Ele convida os jagunços à casa modesta onde vive com os pretos velhos, serve comida, obsequia, e entre uma conversa e outro Joãozinho Bem-Bem descobre só de olhar que quem está ali na frente é um dos seus.


É nesse trecho da história que surge a famosa “Cantiga Brava”, musicada por Geraldo Vandré:

O terreiro lá de casa
não se varre com vassoura:
varre com ponta de sabre
bala de metralhadora...

Despedem-se, e partem.

E com isto começa a surgir das ruínas de Nhô Augusto Esteves o novo Augusto Matraga. Este sobrenome, aliás, abre e fecha o conto como um par de parênteses: só aparece na primeira frase do conto, e depois no final.

O nome matraga é geralmente comparado com o substantivo matraca, que é aquela peça de madeira ruidosa e sacolejante com que se faz barulho em certas procissões; é também um pássaro. Como pássaro, acaba me lembrando as maitacas, ave migratória e barulhenta que, revoando por cima da cabeça de Nhô Augusto numa manhã linda, anos depois de sua provação e ordálio, parecem dizer-lhe: “Isto aqui terminou, agora é preciso partir”.


É um momento de epifania do conto, um momento de anunciação e ruptura.

Mas afinal as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá embaixo – a manhã mais bonita que ele já pudera ver.

Ele sente o chamado do mundo, despede-se do casal de velhos, prepara um jumentinho e se faz na estrada. Como em tantas histórias de Rosa, seguem-se encontros rápidos, passageiros, pitorescos. Até que Nhô Augusto chega ao arraial do Rala-Coco, e descobre que quem está arranchado ali é Joãozinho Bem-Bem com seu bando.

Acontece o reencontro, amistoso, respeitoso. E mais na frente, minutos depois, o confronto, quando Joãozinho Bem-Bem, para vingar a morte de um dos seus homens, autoriza morte e estupro contra uma família local. E Nhô Augusto:

 — Pois então, meu amigo seu Joãozinho Bem-Bem, é fácil... Mas tem que passar primeiro por riba de eu defunto...

Este conto é um dos grandes momentos épicos da obra de Guimarães Rosa, pela simplicidade de meios e pela vagarosa maturação do caráter do personagem principal. Um processo de superposição de camadas de experiências, de pensamentos, de situações, que somente o formato da noveleta proporciona. Não se conta uma história como esta no formato que o autor viria a usar depois em Tutaméia.



(As imagens são do filme A hora e vez de Augusto Matraga, Roberto Santos, 1966)