sábado, 19 de setembro de 2009

1272) Borges e “O Justiceiro” (11.4.2007)



Um dos contos mais atuais de Jorge Luís Borges é “Deutsches Requiem” (no livro O Aleph). Nele, o nazismo é mostrado pelo lado de dentro, pelo ponto de vista de um cara que acredita que aquele pesadelo é o futuro do mundo. Otto Dietrich Zur Linde, o narrador, vê com euforia a ascensão do nazismo e sua expansão devastadora pela Europa. No final, quando o resto do mundo se ergue contra Hitler e o esmaga por todos os lados, ele ainda consegue ver nisto uma vitória. Suas palavras finais são: “Ameaça o mundo agora uma época implacável. Nós a forjamos, nós que já somos sua vítima. Que importa que a Inglaterra seja o martelo e nós a bigorna? O importante é que reine a violência, e não a servil timidez cristã. Se a vitória e a injustiça e a felicidade não são para a Alemanha, que sejam para outras nações. Que o céu exista, mesmo que nosso lugar seja o inferno”.

A monstruosidade da ideologia é reforçada, por contraste, pela beleza poética desta última frase, que encerra a mais altruísta das filosofias. Zur Linde exprime aquilo que Borges mais detestava e desprezava, mas o autor cede ao personagem sua melhor inspiração literária. Para quê? Para evitar a caricatura, mostrar que o Nazismo é uma doença mental que pode acometer a qualquer um. O nazismo veio para implantar o terror, a guerra, a loucura à mão armada. Veio para ameaçar o mundo com uma monstruosidade tão absurda e desmedida que para destruí-la, para torná-la inviável, foi preciso criar “um monstro ainda maior, e ainda mais monstro”. E o reino dos monstros começou de fato a imperar sobre a Terra.

Hitler afirmou certa vez: “Quem quiser viver é constrangido a matar. Martelo ou bigorna. Minha intenção é preparar o povo alemão para ser o martelo”. Esta frase estava (me parece óbvio) na memória de Borges quando ele compôs o fecho do seu conto. Zur Linde vai além de Hitler, pois percebe que a função do nazismo era trazer para o mundo A Lei do Martelo e da Bigorna, e para que isto acontecesse era indiferente qual dos dois a Alemanha viria a ser.

Na história em quadrinhos O Justiceiro, escrita pelo irlandês Garth Ennis, na última parte do episódio “Nascido para matar”, ambientado na Guerra do Vietnam, lemos a certa altura:

“Há uma grande Besta-Fera à solta no mundo dos homens. Ela despertou em tempos sombrios para enfrentar um terrível inimigo. Percorreu a Europa e o longínquo Pacífico, esmagando o Mal que encontrou pelo caminho. No entanto, quando foi vitoriosa, quando a perversidade da Cruz Gamada e do Sol Nascente teve fim, os guardiões da Besta-Fera julgaram por bem não devolvê-la ao seu sono. A Fera tem muitas cabeças, cada qual com um nome escrito: Lockheed, Bell, Monsanto, Dow, Grumman, Colt e muitos mais. E elas são muito famintas. Por isso, a Fera deve se alimentar... e, a cada geração, nosso país vai à guerra pra garantir seu sustento”. A Fera que nos livrou de Hitler está à solta, mas quem vai nos livrar da Fera?

1271) A escada do poder (10.4.2007)



(Wilson Mizner)

Sou um grande aprendedor, ou, na feliz expressão de Jessier Quirino, um “prestador de atenção”. Dou ouvidos a todo mundo e nunca me arrependi disto. 

Uma das pessoas a quem dou ouvidos de vez em quando (vemo-nos uma ou duas vezes por ano, se tanto) é um conhecido meu a quem chamarei ficticiamente Ascenso Seguro. Conheci-o no Baixo Leblon, por entre chopes cremosos e pizzas no palito. 

Ascenso tinha uma atuação incessante na área cultural, foi nomeado para um cargo qualquer do quinto escalão, projetou-se, apareceu na mídia, fez amizades, entrou na política, e hoje pontifica num escalão que aos meus olhos leigos deve ser segundo ou terceiro. 

Ascenso é solícito, é infatigável, e tem uma qualidade que o distingue em nosso ambiente cultural: está de bem com todo mundo, fala bem de todo mundo. Num meio famoso pela maledicência-pelas-costas, nunca o vi dizer que Fulano é burro ou que Fulana é feia. É o tipo do cara que ajudaria a levar o cavalo de madeira para dentro de Tróia, e que, depois de fechado o portão, contaria tudo aos troianos. 

“O segredo,” confidenciou-me ele meses atrás, numa madrugada repleta do Nova Capela, durante um cabrito-com-brócolis, “é imagem. O que você é, é problema seu, mas o que as pessoas vêem em você é problema da comunidade. É como no futebol. Quando um técnico lhe escala, não é porque gosta de você ou acha que você é um cara legal. É porque precisa de alguém para cobrir os avanços do lateral esquerdo, ou porque precisa de alguém para triangular na ponta e cruzar bolas na área”. 

“Ah, entendi,” falei eu. “A imagem da gente tem que passar duas coisas: potencial, e disponibilidade”. 

Ele retrucou: “Cara, você é muito inteligente, já podia estar em Brasília. Pois é isso mesmo. Mas tem outra coisa: você precisa olhar os dois lados da escada, o de cima e o de baixo. O grande erro dos caras é que eles só olham para cima, para os caras que estão nos degraus superiores, e que podem lhes dar uma chance. Tem que olhar para os degraus de baixo também. A humanidade se divide em dois grupos: os Figurões e os Figurantes. Não adianta de nada você estar de bem com os Figurões e ter uma multidão de Figurantes querendo botar terra no teu motor”. 

Vai daí que Ascenso Seguro tem uma atuação social irrepreensível. Todo dia no Natal e no meu aniversário recebo um cartão personalizado com abraços efusivos, e deduzo que o mesmo acontece com outras mil pessoas. 

Ascenso recorda os nomes dos meus filhos, os títulos de meus livros (pelo menos de alguns deles), e – devo ser justo – me trata com cortesia irrepreensível e uma simpatia sincera. Talvez porque tenha sido eu quem, num desses papos de mesa de bar, citou-lhe a frase de Wilson Mizner, famoso alpinista social norte-americano: “Trate bem as pessoas quando estiver subindo na vida, porque você vai encontrá-las de novo quando estiver descendo”. 

Ascenso gravou este dito a-ferro-em-brasa na memória, e desde então passou a me tratar melhor ainda.




1270) Poluição visual (8.4.2007)



Conversando com amigos paulistanos fiquei sabendo de uma façanha recente da prefeitura local. Estou vendendo pelo preço da fatura, portanto, se me equivocar em algum detalhe peço desculpas antecipadas ao burgomestre. Ao que parece, a administração municipal está trabalhando para reduzir a poluição visual na cidade. Ação que, em tese, eu subscrevo inteiramente. Hoje em dia a gente não pode andar na rua sem ser assaltado por uma profusão indescritível de placas, cartazes, displays, letreiros pintados, letreiros modelados, out-doors, o escambau. Marquises, fachadas, muros, paredes, postes, calçadas, onde quer que haja meio metro de espaço livre vai alguém e enche de “reclames”: ‘CHAVEIRO ENCANADOR ELETRICISTA 24 HS” – “ALISA-SE CABELO E FAZ ESCOVA” – ‘LANCHONETE NOSSA SENHORA APARECIDA XISBURGUER XISTUDO E PÃO NA CHAPA” – e assim por diante. Dá um livro.

Por que tanta propaganda? Principalmente pelo fato de que o brasileiro vive do pequeno comércio, dos pequenos serviços. Com o quê, aliás, eu simpatizo, porque detesto mercados monopolizados por meia-dúzia de companhias gigantescas. Já pensou se somente o MacDonald’s e o Bob’s tivessem licença para vender xistudo? O brasileiro é descolado, ativo, tem iniciativa, adora não ter patrão e fazer as coisas por si próprio. Vai daí, surge essa proliferação da mini-economia. O problema é que, quanto menor a bodega, maior a placa que ela precisa afixar para mostrar que existe. E não só maior, como pintada em tinta acrílica, com letras vermelhas e azuis sobre fundo amarelo berrante.

Proibir? Nem pensar. Padronizar tudo num só tipo de placa? Errado: parece coisa stalinista para facilitar a vida dos burocratas e deixar os usuários unanimemente invisíveis naquela mar de monotonia. Estabelecer critérios máximos de tamanho, colocação, etc.? Talvez, porque Dona Fulana tem direito de avisar aos passantes que faz bolos e tortas por encomenda, mas não precisa de seis metros de muro para dizer isto.

Enfim – soluções existem, basta haver inteligência, bom senso e boa vontade de parte a parte. (Por outro lado, pense em três coisas difíceis de se encontrar hoje em dia!) Mas o prefeito paulistano inventou uma solução radical: mandou proibir placas de qualquer natureza, inclusive as placas e cartazes nas portas do teatro. E a classe teatral está se insurgindo contra esta medida estapafúrdia. Porque uma coisa é a Pirelli ou a Ambev ocupar 150 outdoors pela cidade afora anunciando seus produtos, e outra coisa é um teatro, que só funciona ali naquele ponto, colocar em sua própria porta os cartazes das peças que estão ou estarão sendo em breve oferecidas ao público. A coisa mais difícil do mundo é administrar interesses conflitantes. Ser síndico é mais difícil do que reger uma ópera. Tiro meu chapéu para quem encara uma tarefa tão difícil, mas será que não dá para resolver essas coisas sem recorrer à Solução Herodes?

1269) Estatização vs. Privatização (7.4.2007)



Não vou entrar no mérito desta questão, porque não é muito a minha praia, assim como não é a praia de 99% dos brasileiros. Ouço o barulho da briga, mas como ocorre no andar de cima fica difícil de escolher por quem torcer, até porque tudo que a gente escuta são os insultos que cada um dispara na direção do outro. Já percebi que em questões altamente polêmicas cada um dos oponentes não está discutindo com o outro, mas com a Caricatura do Outro. Está olhando para o outro e enxergando apenas aquela meia-dúzia de traços característicos do outro, exagerados desproporcionalmente, inchados, deformados, criando uma figura ao mesmo tempo muito parecida e muito diferente da verdadeira fisionomia do Outro.

É isso que acontece, por causa de nosso arrebatamento emocional e de nossa formação intelectual precária, quando vamos discutir qualquer questão um pouco mais complexa. Evolucionismo vc. Criacionismo. Brecht vs. Stanislawski. Poesia Praxis vs. Poesia Concreta. Armorialismo vs. Tropicalismo. Estou colocando apenas algumas polêmicas famosas que ocorreram ou ainda ocorrem em diversos campos, e, mais uma vez, não entro do mérito de quem está certo ou quem está errado. O que percebo é a retórica que acompanha todas as discussões.

Para os partidários da Privatização, o Estado é um polvo gigante e obeso que oprime o cidadão, tiraniza seu cotidiano, restringe sua liberdade, impõe-lhe produtos padronizados e de má qualidade, é incapaz de gerir com competência os milhares de negócios que arrebatou às mãos indefesas da iniciativa privada, gasta tudo que tem para sustentar uma burocracia proliferante e ociosa, abre mil canais clandestinos para corrupção, desvio de verbas e suborno, aumenta impostos sem dar nada em troca, suga todas as riquezas do País como um sumidouro sem fundo.

Para os partidários da Estatização, a iniciativa privada, ou o Mercado, é uma selva sem lei, onde só vence o mais forte, mais rico ou mais desonesto, um cassino desenfreado de enriquecimento às custas do consumidor, uma luta desleal em que as grandes redes e os monopólios esmagam as pequenas iniciativas individuais, um jogo de cartas marcadas em que o país é loteado entre meia dúzia de tubarões insaciáveis, uma disputa feroz que, sem a mediação do Estado, nada mais é do que uma guerra de gangues para ver quem enriquece mais rapidamente e sai correndo para os paraísos fiscais, deixando a conta para ser paga por quem vier depois.

Isto é o que cada um diz do outro. Isto é o que escuto nos balões de diálogo no andar de cima, por entre trompaços, pescoções, derrubada de mobília, quebra-quebra de pratos. Qual dos dois tem razão? Qual dos dois tem razão em qualquer briga, em qualquer polêmica? Difícil de dizer, porque eles mesmos não sabem. Não estão brigando com o Outro. Estão brigando com a Caricatura do Outro, como o Monstro do Outro, com o medo que sentem do Outro.

1268) “Fernando e Isaura” (6.4.2007)



O primeiro romance de Ariano Suassuna, de 1956, só foi publicado 38 anos depois. O autor o considerou um “exercício de juventude”, um afiar de lâminas para a batalha mais séria que viria a seguir, o Romance d’A Pedra do Reino, elaborado entre 1958 e 1970. Comparado a este, Fernando e Isaura é um trabalho menor, uma noveleta sem a profundidade ou a amplitude do outro livro, o qual, escrito depois, foi publicado primeiro, e tornou-se o termo de comparação para tudo que o autor viesse a publicar em seguida.

Fernando e Isaura é um conto de amor impossível, amor fadado à tragédia desde o começo. A ação se passa entre Alagoas e Pernambuco. Fernando é um rapaz órfão, criado pelo tio, Marcos, um fazendeiro viúvo. Um dia, numa viagem, ele se mete numa briga, é ferido e passa dois dias com febre, delirando. Quem ajuda a cuidar dele é uma moça dessa cidade, Isaura. Algum tempo depois, é justamente esta Isaura que Marcos pede em casamento, e como não pode ir pessoalmente, encarrega o sobrinho, que ele ama como um filho, de fazer o casamento em seu lugar, por procuração. Dias antes da data do casamento, Marcos encontra por acaso Isaura, numa cidade próxima. Ele não sabe que ela é a noiva do tio, e apaixona-se por ela. Ela não sabe quem é ele, apenas reconhece o rapaz de quem tratara, e por quem se apaixonara desde então. Os dois são fulminados por uma fatídica paixão à primeira vista. Só depois que passam uma noite juntos descobrem suas verdadeiras identidades, e se desesperam.

Seguem-se outras peripécias, que não revelarei para não estragar a leitura (o livro foi publicado pelas Edições Bagaço, de Recife). Como as histórias baseadas nas lendas medievais, o Acaso e o Destino têm um papel importante na ação. As coincidências e os equívocos de identidade acontecem de maneira tão inesperada que aquilo, pensa o leitor, não pode deixar de ser manobrado por alguma Força Cósmica. Estamos aqui diante de um dos principais mecanismos do melodrama, um mecanismo tão poderoso que é usado, nem sempre de maneira sábia, há trezentos anos.

Na “Advertência” escrita para publicação, em 1994, o Autor confessa-se meio constrangido por oferecer ao público de hoje, principalmente aos jovens, uma história “tão fora de moda”. Ele não diz isto por achar que os sentimentos expressos no livro estão superados, mas por considerar que “os conflitos que, por causa da paixão, atormentam, aqui, os personagens, provavelmente não serão nem sequer entendidos pela geração formada por educadores que procuram fechar os olhos até para a realidade monstruosa do crime, contanto que não sejam forçados a admitir a verdade de qualquer norma moral.” E acha também que uma história tão apaixonada será esnobada “neste tempo de autores frios, lúcidos e impiedosos”. O autor é pessimista demais; “Fernando e Isaura” tem o carisma das grandes tragédias, e, com meia dúzia de bons atores, daria um excelente média-metragem.