terça-feira, 29 de dezembro de 2020

4658) Resoluções de Ano Novo (29.12.2020)



Parar de beber todo copo de veneno que botam na minha frente.
 
Produzir protótipos dos “filtros protetores nasais” que imaginei anos atrás, num conto de FC, sem nem sequer imaginar pandemias ou coronas.
 
Livrar-me do hábito irritante de olhar o céu estrelado e imaginar que aquilo é um vitral colorido que pode ser estilhaçado por um meteorito qualquer.
 
Desistir de buscar a saída do labirinto, e me conformar com o fato de que já o sei de cor.
 
Fazer aquele curso de mordomo, por via das dúvidas.
 
Publicar um poema apaixonado com o título “Para _____”, e produzir uma planilha com os feedbacks.
 
Por via das dúvidas, deixar de me apresentar com “Agnóstico” e passar para “Quase Agnóstico”.
 
Decidir se devo apoiar os que lutam pela segurança que sempre tiveram, ou os que lutam pela liberdade que nunca experimentaram.
 
Dar uma geral na casa, juntar todas as tampas sem canetas e todas as canetas sem tampas.
 
Achar a sacola de livros que se perdeu na mudança de junho de 2019 com minhas antologias de Judith Merrill.
 
Separar as roupas que uso há 20 anos e doar ao brechó as que não uso há 20 anos.
 
Comprar um livro em mandarim e tentar lê-lo depois que tomar a vacina.
 
Arranjar um amigo imaginário, desde que esteja também confinado, num lugar distante.
 
Comprar um chapéu. Preciso impor respeito.
 
Voltar a treinar meu ping-pong da mão direita contra a mão esquerda.
 
Trocar meus óculos-para-longe, agora inúteis, por óculos-para-perto.
 
Arranjar um tigre de dentes de sabre para levar comigo quando for toda noite à padaria.
 
Quebrar minha promessa e revelar publicamente o que descobri sobre o destino da Expedição Fawcett.
 
Aprender a cozinhar, mesmo que somente eu aceite degustar os resultados.
 
Passar uma semana na Venezuela e preparar uma tabela Excel comparativa. Repetir daqui a um ano.
 
Escrever uma autobiografia imaginária, só com as coisas que não aconteceram.
 
Ganhar o meu primeiro milhão de dólares (segundo dizem, é o mais difícil de todos).
 
Descongelar aquela coisa de tonalidade violácea que está no freezer desde o ano passado e verificar do que se trata.
 
Comprar uma Bíblia em inglês para aquela pesquisa sobre os glossários de Bob Dylan e de Leonard Cohen.
 
Escrever um cordel sobre o Ninho do Urubu.
 
Trocar as cordas do violão e tentar gravar minhas músicas inéditas enquanto é tempo.
 
Continuar pagando velhas dívidas e contraindo novas dívidas, como um coração que bate.
 
Tentar lembrar o que foi mesmo aquela minha façanha da infância de que eu me orgulhava tanto.
 
Tatuar na barriga uma grade de palavras-cruzadas em branco.
 
Fazer uma “live” cantando e recitando, sem avisar a ninguém.
 
Evitar cometer tantos erros de concordância. Manter os de discordância.
 
 







sábado, 26 de dezembro de 2020

4657) "O Gambito da Dama" (26.12.2020)




Prefiro traduzir assim o título da minissérie The Queen’s Gambit, na Netflix. É a história de uma menina que descobre aos 9 anos ter uma capacidade fora-do-comum para o jogo de xadrez. Introvertida, meio selvagem, criada num orfanato, ela é vítima de uma série de acasos benignos muito comuns nos romances de Charles Dickens, e possíveis da vida real. Torna-se uma supercampeã, mas paga o preço do doping, porque ao longo da carreira se vicia em bebida e drogas.
 
Aprendi o xadrez por volta dos dez anos, com meu pai. Ainda hoje tenho aqui em casa a caixa com as mesmas peças de madeira com que jogávamos, na casa da rua Miguel Couto, 60 anos atrás.

 
Não tenho é tabuleiro. Faz trinta anos que não jogo com ninguém. Não sou bom jogador: tenho preguiça de planejar jogadas. Jogo improvisando, como quem percorre um labirinto. Não entendo de aberturas, defesas, etc. Mesmo quando pegava um livro e reproduzia uma partida clássica, só entendia uns 30% daquilo. Não é meu formato de inteligência.
 
O xadrez era para mim como a Ciência e a Música Clássica. Não entendo nada de música erudita, mas tão musicais quanto as sinfonias e as sonatas eram aqueles nomes: Rimsky-Korsakoff, Prokofiev, Scarlatti, Rossini, Stravinsky, Khachaturian...  Era como estar ouvindo falar em Heisenberg, Schrodinger, Gell-Mann, Bohr, Feynman, Freeman Dyson...
 
Do mesmo jeito existe até hoje para mim uma música misteriosa, cheia de promessas de enigmas e prodígios, por trás dos nomes dos grandes enxadristas, e com certo alívio (porque a idade avançada nos insensibiliza) descobri durante a minissérie que ainda me arrepiava ouvindo os nomes de Capablanca, Alekhine, Morphy, Philidor, Botvinnik...
 
Mesmo quando não entendemos certas “ciências exatas”, somos capazes de perceber a nuvem, o casulo de “ciências humanas” que sempre as envolve – e reagir a ele.




(Reshevsky, aos 8 anos)

Os enxadristas foram os
nerds do século 19, aquela geração de pessoas cujo gráfico mental-emocional é um horizonte liso, perturbado a certa altura por um pico descomunal numa área específica. São mentes quase autistas, introvertidas, desatentas para com as banalidades do mundo. Toda sua energia é para alimentar aqueles bilhões de neurônios em forma de quadradinhos preto-e-branco.
 
A série é muito boa ao retratar esse lado de “nerdice”, e não me surpreende que seja baseada num livro de um escritor de ficção-científica. Walter Tevis certamente conhece essa fauna desengonçada do fandom, onde as pessoas se vestem de qualquer jeito mas discutem horas sobre diferenças mínimas na capa de edições diferentes de um mesmo livro.
 
Comparei o xadrez, acima, com a música erudita e a física atômica. Não é por acaso. São domínios dos quais entendo pouquíssimo, mas entendo o bastante para saber por alto o que está se passando; é como ver um filme estrangeiro sem legendas. E um dos grandes trunfos da série é compreender isto, e ser acessível a quem não joga xadrez, porque não discute as jogadas em si, mas as reações conflitantes que essas jogadas produzem nas pessoas em redor do tabuleiro.


Millôr Fernandes, o Escarninho, dizia que o jogo de xadrez ajuda muito a desenvolver a capacidade de jogar xadrez. Tem razão, por um lado. Mas podemos dizer o mesmo de mil coisas. Um detalhe comovente da série é quando ficamos sabendo que a mãe adotiva de Beth Harmon (a ótima Marielle Heller) tocava piano bastante bem, mas desanimou do instrumento devido a um casamento pavoroso. Para que serve tocar piano? Para nada, talvez. E para tudo. Ao ver o talento da filha no xadrez, ela decide investir naquilo. Para que servem o xadrez, o piano? Para aproximar duas pessoas tão diferentes.
 
Gosto muito do modo como os jovens enxadristas conversam na minissérie. Depois de meses sem se ver, eles se reencontram. “Ôi.”  “Ôi, tudo bem?”  “Tudo. Não entendi porque você não usou o bispo naquela final com Fulano, há dois meses.”  “Usei o peão, para ele pensar que eu queria proteger o cavalo.”  É assim que nerd conversa: não tem preâmbulos, não tem “chat social”, perguntar pela família, comentar que está calor... Nerd vai logo ao que interessa. É um alívio conversar com gente assim.



(Isla Johnston)
 
As atrizes que fazem Beth são excelentes. A transição entre a Beth aos 9 anos (Isla Johnston) e a Beth daí em diante (Anya Taylor-Joy) é fluida. Existe uma continuidade na expressão, concentrada e relaxada ao mesmo tempo, uma economia de gestos e expressões porque 99% da CPU está ocupada pensando. O olho que rapidamente vai de torre a torre, registrando tudo. A contração dos lábios, geralmente nos momentos em que ela reprime uma resposta problemática.
 
A economia de emoções deixa transparecer a tensão quando vemos Taylor-Joy nervosa, insegura, apanhada de surpresa por um adversário mais cheio de recursos. O olhar vagueia, o rosto enrubesce de raiva. Mas quando ela consegue compor sua armadilha, quando se sente dona-do-pedaço, assume a pose da foto do cartaz: dedos entrelaçados sob o queixo, e aquele olhar de: “Vamos, espertinho, me mostre como vai sair dessa”.
 
Em termos de narrativa, a série é totalmente convencional. Tem o famoso roteiro em forma de N maiúsculo, preconizado nos manuais de escrita. O personagem começa embaixo, sobe até conhecer o cheiro do sucesso e ser obrigado a dobrar suas apostas, sofre em seguida uma queda problemática e no trecho final decola para uma vitória consagradora.
 
É o que ocorre com Beth Harmon, cuja “jornada do herói” segue o mesmo esqueleto de tantos outros roteiros da Sessão da Tarde. Aparecem na história as previsíveis surpresas, as reviravoltas obrigatórias que a gente enxerga quilômetros antes como uma curva da estrada; quem sustenta a narrativa é o charme ingênuo dos personagens. Ajuda bastante ser uma série “de época”. Um tal argumento soaria impossível num roteiro ambientado no século 21. Mas nos anos 1960 acreditávamos que tanta coisa era possível.



(Moses Ingram e Anya Taylor-Joy)

À medida que a série avança, vai se tornando mais hollywoodianamente previsível, marchando na direção do Final Feliz, esta versão moderna da tragédia grega, daquela força superior a que ninguém (no caso, os roteiristas) pode desobedecer.
 
Em termos enxadrísticos, ela começa no estilo Beth Harmon (pessoal e ousado) e vai encaretando para um estilo Borgov (defensivo e conservador). Gostei da série toda (sou um velho espectador da Sessão da Tarde), mas como roteiro os melhores episódios são os dois primeiros, onde ainda se tem aquela sensação do tudo-pode-acontecer.
 
Comparei acima o xadrez com a Física Sub-Atômica. Não é apenas a questão da complexidade, mas o fato de que um dos méritos da série é justamente ter como tema algo que não pode ser mostrado, e que podemos conhecer apenas pela reação que produz nas pessoas envolvidas. Ninguém precisa jogar xadrez para entender a irrupção de Harmon no mundo do jogo: basta observar o impacto das jogadas dela nos rostos dos homens mais velhos que a cercam. Nesse sentido, a série vale como uma síntese entre o empoderamento dos jovens diante dos “mais velhos” (um tema dos anos 1960) e o das mulheres diante dos homens (um tema dos anos 2020).



A matemática cruel do jogo impõe uma disputa de poder escancarada, uma disputa entre ataque e defesa, uma luta de destruição recíproca. Todas as metáforas do xadrez são metáforas de guerra. The Queen’s Gambit é uma história típica da Guerra Fria, e reflete a vivência do autor do romance original, Walter Tevis (1928-1984).  Pelos comentários que li, a reconstituição dos ambientes dos torneios, bem como das partidas em si, é impecável. Acredito.
 
A certa altura, Benny Watts (Thomas Brodie-Sangster), o campeão norte-americano que se torna um dos mentores de Beth, comenta sobre os enxadristas russos: “Eles são bons porque jogam coletivamente. Todos treinam juntos e corrigem os defeitos uns dos outros. Nas partidas adiadas, analisam cada jogada, conjuntamente. Nós norte-americanos acreditamos no talento individual, que ganha tudo sem a ajuda de ninguém”. Eles adotam o sistema russo, e batem os russos. Nessa reflexão não me parece haver uma intenção de comparar o individualismo capitalista e o socialismo soviético. (Claro que quem quiser interpretar assim tem pano para as mangas.)
 
O importante, que se concretiza no capítulo final, é o fato de que na URSS o xadrez fazia parte da cultura popular, e nos EUA não. Na URSS o xadrez era jogado por centenas de velhinhos, na praça, ao ar livre, num frio de zero grau. Os campeonatos eram transmitidos e comentados pelo rádio como se fosse uma Copa do Mundo. Num ambiente assim, mais do que o nacionalismo político o que se impõe (como tantas vezes ocorre na arte e no esporte) é o amor ao talento. Depois de derrotar o campeão russo, Harmon é agarrada em delírio pela multidão de russos. Por que? Porque eles sentem ali a presença do talento, da Grande Arte.


 
É como quando vi a torcida sueca comemorar a derrota de 5x2 para o Brasil de Garrincha e Pelé, ou quando vi Lionel Messi destroçar o time do Real Madrid, no estádio Santiago Bernabeu, e sair de campo aplaudido pela torcida adversária. O amor ao jogo (a um valor abstrato, não utilitário, mas dotado de uma ética, uma estética e uma moral próprias) pode ser, em casos muito especiais, um elemento capaz de transpor fronteiras e neutralizar parcialmente os conflitos de outra natureza.
 







quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

4656) Natal 2020 (24.12.2020)





(Imagem: Rudy Rucker, The Virgin of Mandelupe)


1
... e o fio enlaça o fio e faz um nó
amarrando a si mesmo, lasso, frouxo,
e eu cá cofio o meu bigode-groucho,
penso no tempo, nos seus vais e vens.
E os anos se sucedem como trens.
Até que chegue aquele... e eu vá embora
pra conferir o enigma do Lá-Fora
pra descobrir num salto o fim do poço,
porque cada filósofo que eu ouço
é implorando que ele me desminta.
 
2
Meu ofício é traçar fios de tinta
para entortá-los em arames-frases
e ocultar o Não-Sol; fazer as pazes
entre o sonho, o sentido, a letra, a lua,
o terror dos sem-voz que vem da rua,
o rangido do mundo aniquilado...
E o verso tem seis faces como um dado
e o dado gira até virar esfera
e o verso vira o avesso do que era
e a fala vira o fio que tudo amarra.
 
3
Na vida tudo é gato, é gambiarra,
versão-pirata de uma coisa-em-si,
sulanca a se passar por givenchy,
sarneys fazendo as vezes de tancredos;
e eu toco a vida assim, cheio de dedos,
como estátua na frente de um teclado.
Fazer o quê? Ficar aqui parado
enquanto ela se escorre como um rio?
Eu quero o vórtice, e o rodopio.
Quero a dor e a beleza, o grão e a fome.
 
4
A mão me estende algo, e me diz: Tome.
A mente fecha os olhos, diz: Esqueça.
Fico no escuro. Espero que apareça
um portento, um milagre, uma visão.
A raiz que rachou um calçadão.
A cheia que encobriu a cobertura.
O besouro que esbarra no miúra
e o revira quadrúpede no ar.
Qual a pedra que eu vim para quebrar
e revelar a drusa multicor?
 
5
Peço perdão a cada cantador
de quem furtei um símile, um refrão,
anacoluto ou aliteração,
rima, cadência, estrofe, vocativo...
Irmão, furtei de ti pra ficar vivo!
E que me furtem os vilões vindouros;
que minhas jóias brilhem nos tesouros
com que enfeitarem suas perseguidas...
Meus versos vão viver, ver novas vidas,
na fervura do século 21.
 
6
Falando nisso, lembro do cartum:
tanque de guerra, areia movediça...
Como explicar que não é só preguiça
a razão que me impede de escrever?
Falta vontade, o empuxo do querer?
Ou falta a glândula de adrenalina?
O ar frio, as calçadas de Campina?
Não importa. Por mim, não tenho mágoa;
vou molhando meu pão na minha água,
vou dizendo o que cabe em minha voz.
 
7
Nascemos sós, e morreremos sós;
por que vivermos sós na travessia?!
A vida pulsa, a veia é tão macia,
mesmo havendo milênios de distância.
A mão estende o vinho com elegância;
mais um gole na fonte da saudade.
É Natal. Na janela, uma cidade
inacessível a mim, também celebra,
e mais um ano de cristal se quebra;
e a vida é sempre nova, e uma só...
 





terça-feira, 22 de dezembro de 2020

4655) Leituras de 2020 -- parte 2 (22.12.2020)



Alguns livros de autores brasileiros eu acabei lendo quase em primeira mão, por uma questão de vizinhança. Foi o caso do romance de minha irmã Clotilde Tavares, De repente a vida acaba (Natal: M3, 2019), com quem tive o primeiro contato quando ele não passava de cadernos cheios de anotações manuscritas e laudas impressas. É a história de duas mulheres muito parecidas e muito diferentes, uma toda professoral e séria, a outra toda farrista e aprontadora. No meio das duas, um manuscrito que pode ter sido e pode não ter sido escrito por uma ou pela outra; mas o que cativa mesmo é a maneira largada de escrever, a profusão de detalhes ora hilários ora arrepiantes.
 
Nesta postagem de abril, falo mais a miúdo sobre o livro:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4571-de-repente-vida-acaba-1842020.html



Da Paraíba me chegou às mãos Os Sonhos do Cão Bravio de João Matias, que pelo que me consta ainda não chegou da gráfica. O autor já havia publicado os contos de O Vermelho das Hóstias Brancas (Campina Grande: Ed. do Autor, 2009). Esta coletânea traz contos sobre uma Campina Grande tenuemente disfarçada por trás de um pseudônimo, narrando a evolução de um centro urbano desde um povoado até um centro comercial com grande feira e grande número de trabalhadores chineses.
 
Os contos têm uma crueza realista que não os impede de triscar de vez em quando na fronteira do fantástico ou pelo menos do insólito. Há uma violência latente nessas histórias onde os conflitos, longe de serem apaziguados, são exacerbados até o fim, meio que naquela filosofia “vamos aumentar isso até explodir tudo, e pronto”.


Essa perspectiva temporal tem uma fisionomia diferente em O Espelho dos Girassóis (Uauá: JM Gráfica e Editora, 2020) de Maviael Melo, onde o poeta e compositor lança mão de uma viagem mental da protagonista ao fundo de sua memória, onde episódios do passado vão sendo reconstituídos e revividos de forma diferente a cada vez que são acessados. Nas andanças de uma mulher (simbolicamente projetadas na imagem do espelho) por sua cidade, emergem os fatos do passado, aventuras de uma infância vivida entre o medo e a violência.



Muito parecido, e muito diferente, é o Amália atrás de Amália (São Paulo: Patuá, ) de Marco Aqueiva. Conversei com o autor em São Paulo (pela primeira vez) e trocamos nossos livros, três dias antes da morte dele, o que me impressionou e certamente tingiu a leitura. É uma novela intensa, de prosa eletrificada, ambientada num futuro próximo com traços cyberpunk mas sem o arcabouço realista da FC comum. Tem uns traços absurdistas que o aproximam (sem o viés do humor satírico) de outro livro da mesma coleção “Futuro Infinito”, o Back in the USSR de Fábio Fernandes, que li e comentei ano passado. É um mergulho vertiginoso de personagens entrevistos rapidamente, por situações recorrentes e ambientes de pesadelo. A prosa de Marco Aqueiva é segura, implacável, o que reforça a melancolia da perda de uma voz nova na nossa literatura fantástica.




Essa sombra da perda pairou também durante a leitura (no mais, muito agradável) de Geneton: Viver de Ver o Verde Mar (Recife: CEPE, 2019) de Ana Farache e Paulo Cunha, a biografia do jornalista Geneton Mores Neto (1956-2016). Livro de amigos falando de um amigo falecido é sempre uma cilada para a objetividade de qualquer leitor. Conheci esse trio quando eram todos jovens jornalistas (e superoitistas) no Recife, e cheguei a eles através do idem-idem Amin Stepple, que também “já nos deixou” um ano atrás. Acompanhei seus sonhos à distância, como quem vê um filme 16 projetado numa tela 35.
 
Como diz Rômulo Azevedo, que é da mesma tribo, chega uma época na vida em que a gente encontra os amigos com mais frequência nos corredores de hospital do que nos restaurantes. É bom ligar o sinal de alerta também quando a gente começa a ler biografias póstumas de caras que eram mais novos do que a gente.
 
Geneton teve, no meio de toda aquela geração talentosa (à qual associo também Marcos Cirano, Juliana Coentro, Beth Salgueiro, Ricardo Carvalho, Lula Falcão, tantos e tantos outros), a chance de adquirir um poder que jamais imaginaríamos naqueles anos distantes. Foi editor do Fantástico, da GloboNews, entrevistou celebridades internacionais e presidentes da República. Tinha o dom da pergunta direta, incômoda, feita de cara limpa, objetivamente, e que sempre extraía do entrevistado, fosse quem fosse, uma tentativa de responder no mesmo tom. (E muitas vezes, boto minha mão no fogo, era a primeira vez que alguém fazia aquela pergunta ao figurão diante de uma câmera ligada.)
 
O livro de Ana e Paulo reconstitui a vida pessoal de um amigo, os sonhos em comum, as dúvidas profissionais, a ralação incansável de quem sobe a ladeira da primeira metade da vida. Registra os baques, celebra as pequenas vitórias, as preciosas alegrias.



Também do Recife, mas em outra frequência modulada da memória, vem Meu Peito é Feito de Festa (Recife: Zoludesign, 2019) de Paulo Braz, um campinense adotivo que ao se radicar no Recife virou promotor de festas, o que de repente é muito mais interessante do que ser promotor de justiça. Dono de bar e restaurante, organizador de carnavais, reveillons e festas temáticas, Paulo Braz é um dos muitos que fizeram de Recife uma cidade cheia de música e alegria. Como nunca morei lá, coube ao Acaso me pegar nas pontas dos dedos e de vez em quando me depositar no meio de alguma das suas “Noites Olindenses” ou madrugadas do Calypso Club.
 
Pensando naqueles tempos de vinte ou trinta anos atrás, sinto a tentação pueril e pouco generosa de afirmar que nenhuma geração foi mais alegre do que a nossa. É mentira. Alegria é como água corrente, sempre encontrará caminho; ela sempre se infiltra, sempre brota e fertiliza. Mas talvez poucas gerações tenham confiado, tanto quanto a nossa, que o futuro viria espontaneamente. O resto é História.


 
(continua nos próximos dias)
 
 
 
 
 
 







domingo, 20 de dezembro de 2020

4654) Leituras de 2020 -- parte 1 (20.12.2020)



Não vou comentar aqui tudo quanto li este ano, até porque alguns desses livros foram comentados mais extensamente na época da leitura. Darei o link abaixo, quando for o caso.
 
Vou começar com autores brasileiros, dos quais li relativamente pouca coisa este ano. Tenho uma certa dificuldade em “ficar em dia” com os lançamentos. Conheço gente que lê 50 livros lançados durante o ano.
 
Como conseguem? Não sei. Sou um leitor pedestre, e eles devem ser leitores ciclistas. O que não significa que eu um dia não chegue ao mesmo destino. E que quando eu chegar eles já estejam lá adiante, respirando outras paisagens.
 
Até pouco tempo atrás eu estava numa de preencher as lacunas nas obras de alguns autores clássicos. Este ano dei com os burros nágua, mas consegui, felizmente, ler um livro que me despertava a curiosidade há muito tempo: A Casca da Serpente (1989), de José J. Veiga.


O pessoal o considera uma espécie de romance de “Realidade Alternativa”, porque o enredo postula que Antonio Conselheiro sobreviveu ao massacre de Canudos, tendo sido retirado do arraial por um grupinho de seguidores, antes da derrocada final. Longe dali, eles começam a fundar um outro arraial fundado no trabalho coletivo. O mais interessante é a transformação que o Conselheiro sofre. Depois de se recuperar da doença, ele corta a barba, o cabelo, para de rezar o tempo todo, pede conselhos aos seguidores, enfim – transforma-se num líder de perfil mais moderno e menos fanatizado.
 
Veiga o mistura no final com outras figuras históricas da época que por motivos variados estão de passagem pelo sertão da Bahia. Entre elas estão a compositora Chiquinha Gonzaga e o anarquista russo Piotr Kropotkin.  Veiga escreve de maneira simples, compacta, sem encher muita linguiça, defeito que prejudicou um pouco outro livro interessante dele, O Relógio Belisário. Aqui, o melhor mesmo é sua tentativa de imaginar um “Canudos passado a limpo”, pequeno, discreto, sem fanatismo, sem guerra, um Canudos mil vezes mais utópico do que o Canudos real.


Li pela primeira vez uma coletânea de Moacyr Scliar, O Olho Enigmático (1986), com muitos contos curtos, alguns sem muito impacto, outros criando bem aquele clima em que Scliar era muito bom – histórias cotidianas de gente comum que pouco a pouco resvalam para um absurdo meio kafkeano. Era um tipo de história que teve grande força aqui, nas décadas de 197-80. Foi substituída talvez pelas histórias de crueldade urbana na linha de Rubem Fonseca.
 
São contos curtos, a maioria tendo saído em revistas. Como também pratico esse tipo de publicação, me arrisco a dizer que em muitos casos o conto curto é um fim em sim, uma pequena história contada num pequeno texto, definitivo, irretocável. E em outros casos é uma espécie de grão de areia que ao autor joga pra ver se depois cresce alguma pérola em torno dele. Um conto curto que a gente escreve para segurar a idéia, para não esquecer, para guardar o lugar e depois, se o vento soprar favoravelmente, tentar uma ampliação que está sempre possível no horizonte. Tenho muitos contos de vinte páginas cuja primeira versão tinha uma página e meia.



Comentei aqui no blog há alguns dias a Viagem a Altemburgo (1990) de Guilherme Figueiredo, cuja primeira versão é de 1955. É um romance utópico seguindo o modelo tradicional onde um sujeito vai parar, inadvertidamente, numa sociedade oculta e aparentemente perfeita, dirigida pela razão, pela lógica, pelo espírito coletivo, etc. O que difere o livro de Figueiredo dos outros dessa linha é que ele se diverte escrevendo. Em geral o romance utópico brasileiro é muito pedante, muito professoral, muito politicamente correto, e a primeira reação que produz no leitor é de “eu detestaria morar numa sociedade assim”. O Altemburgo imaginado por ele é uma cidade olímpica, perfeccionista, “do bem”, “de bem”, meio pretensiosa. Tem alguns detalhes meio surpreendentes – quando alguém é eleito prefeito, por exemplo, é obrigado a tomar um preparado que vai matá-lo no fim do mandato de cinco anos. Enfim – de idéias utópicas está pavimentado o caminho do inferno.
Bartolomeu Campos de Queirós é um autor que vim a conhecer através do grupo teatral Ponto de Partida, de Barbacena (MG). Vermelho Amargo (Cosac Naify, 2011) é uma noveleta de recordações de infância numa prosa intensamente poética, elíptica, concentrada, e cheia de flashes muito perceptivos sobre vida cotidiana.
 
Esses pequenos livros (às vezes chamados meio impropriamente de romances, porque na verdade são muito maiores do que um simples conto) costumam surgir obscuramente, revelar-se aos poucos, provocar impressões profundas nos leitores e com isso se perpetuar. É a intensidade de sua linguagem que os preserva, o seu impacto exigente sobre os leitores. Este pequeno livro poderá ser tão duradouro (expandindo-se tanto na memória coletiva) quanto Um Copo de Cólera (1978) de Raduan Nassar, A Casa da Paixão (1977) de Nélida Piñon e outras pequenas jóias compactas.
 
 
(continua nos próximos dias)
 
 
 
 
 
 






quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

4653) A arte de criar um mundo (17.12.2020)



(foto: Evgeny Kornienko)

Um dos conselhos mais úteis que já ouvi em oficinas de Como Escrever Prosa de Ficção foi: “Imagine tudo, de forma sólida e coerente, e conte apenas a parte que interessa à sua história”.
 
É o famoso “contar em 360 graus”. Isso não se refere à temperatura, mas ao raio de visão do autor, que descreve um círculo completo em volta da cena que está narrando, visualiza (=inventa) o que pode estar acontecendo em volta naquele instante, e, quando é o caso, inclui isso na descrição da cena.
 
Digamos que o autor quer contar uma discussão conjugal entre marido e esposa. Geralmente o autor coloca os dois a sós, na sala de casa. Melhor ainda: no quarto de dormir. Nada acontece em volta, e pronto, ele pode se concentrar somente no que o marido diz, a mulher rebate, o marido ironiza, a mulher reclama, o marido negaceia, a mulher acusa... Como dizia o outro: “e não se avista o fim”.
 
Cenas assim são excelentes para o teatro (peças para um casal de atores costumam dar lucro), que é A Arte Do Mundo Subentendido. No teatro, o ator pára no centro do palco vazio, faz um gesto largo e diz para a platéia: “Eis o centro de Babilônia, a maior metrópole do mundo!”  E a platéia aceita que tem uma babilônia qualquer ali.
 
Na literatura poderia ser a mesma coisa, mas não custa nada – por exemplo – botar o casal tendo a mesmíssima discussão numa praça onde crianças brincam. Ou na praça de alimentação de um shopping. Ou no escritório onde ambos trabalham. Ou na festa de aniversário da mãe/sogra. Ou num avião durante o voo.
 
Isso quer dizer que quando escolhemos um desses ambientes somos obrigados a imaginá-lo por inteiro. Aliás, não gostei desse “somos obrigados”, porque na literatura ninguém nos obriga a nada, escrevemos o que quisermos, e só quem nos obriga a fazer algo são nossas idéias preconcebidas, tipo “assim o livro não vai vender”, “isso aqui está profundo demais e os leitores são rasos”, etc.
 
Digamos então: quando escolhemos um desse ambientes temos a magnífica oportunidade de imaginá-lo por inteiro. De pensar quem são as pessoas que estão ali em volta. (Não é preciso criar uma biografia para cada uma; podem ser personagens de papelão, contando que suas intervenções pareçam ter naturalidade, que suas ações pareçam brotar de dentro delas e não de uma conveniência do autor para poupar-se maior trabalho.)
 
E assim a discussão do casal parece mais real, porque está tocando outros filamentos do “mundo real”, fazendo-os estremecer. Estão na praça? Aparece uma criancinha inocente: “Por que a senhora está chorando?”, etc. Estão no voo? Um sujeito bonitão se vira no banco da frente: “Ô companheiro, não quero me meter, mas não é assim que se fala com uma mulher.”  Estão no escritório? O patrão surge do nada, os dois dão pausa, zeram tudo, sorriem com servilismo, e voltam a se pegar quando ele dá as costas. Estão na festa de aniversário da sogra dela? Ela diz: “Olha, vamos maneirar, sua mãe não tira os olhos da gente”.


A cena dos dois se relaciona com aquela faixazinha do mundo em volta. Isto serve inclusive para quando você não sabe mais o que fazer com a cena: você faz com que alguém venha de fora e os interrompa, trazendo um mote novo. É o velho conselho de Raymond Chandler: “Quando não souber mais pra onde levar a cena, faça alguém entrar pela janela de revólver em punho”. Ele falava metaforicamente, claro. Queria dizer: “Faça a cena ser interrompida por algo que tenha a ver com a história”.
 
Chandler tinha outra maneira de descrever isso. No ensaio “The Simple Art of Murder” (1944), ele elogia o romance policial inglês, comparando-o com o norte-americano, por ser mais bem escrito, no sentido de imaginar com mais solidez o ambiente onde ocorre. Ele fala:
 
“Há uma sensação mais forte de ambiente, como se a mansão de Cheesecake Manor existisse de fato, e não apenas a parte mostrada pela câmara.” 
 
Por que essa comparação? Porque nas cenografias do cinema costuma-se construir apenas a parte que vai ser mostrada pela câmera (ficaria caro demais construir tudo).
 
John Jeremy Sullivan conta um episódio curioso sobre isso (“Peyton’s Place”, Pulphead, 2011). Durante algum tempo ele cedeu o casarão “de época” onde morava para uma equipe de TV gravar cenas de uma série. De vez em quando, no dia combinado, ele subia com a família para o andar de cima, a equipe ocupava o vestíbulo e a sala de visitas, gravavam as cenas o dia inteiro, depois desarmavam tudo e iam embora. (E pagavam principescamente.)


Sullivan observa que em certa época percebeu que eles tinha coberto com um papel de parede diferente toda a parede do vestíbulo bem como da escada que levava ao 1º. andar, e apenas uma parte da parede do corredor de cima. O papel de parede se interrompia bruscamente a certa altura.
 
Ele foi perguntar por quê, uma vez que ficava estranho, metade da parede com papel, a outra com a pintura. E o cara explicou que eles só precisavam botar papel até o ponto que a câmera mostrava. Mas (reconhece ele) “quando mostramos a anomalia eles a corrigiram instantaneamente”.
 
Não se trata de incompetência nem de excesso de competência. É que quem está filmando pensa apenas no resultado que vai ser apresentado na tela. O resto não existe. (Isso pode ser bom, e pode ser ruim.)
 
Sullivan conta no mesmo artigo outro episódio. A casa dele servia (na série) como residência de uma moça, Peyton; a série contava a vida dela. Houve um dia em que vieram filmar e toda a filmagem consistia numa cena da moça com o pai dela, uma breve discussão e ela dizendo: “Não era isso que eu queria!”.
 
Fizeram infinitos takes, com infinitas ênfases. “Não era ISSO que eu queria!”. “Não era isso que EU QUERIA!” E por aí vai. Sullivan descreve a chegada da equipe de filmagem como a chegada de uma pequena cidade que ocupa sua sala de visitas. E comenta: “Não teve outra cena. Quando acabaram, foram embora. Por volta da meia-noite, as barreiras que interditavam o trânsito na rua foram desmanchadas. A cidade foi embora. Existiu apenas para garantir aqueles vinte segundos de cena.”
 
Quando escrevemos, estamos nos concentrando tanto nos vinte segundos de cena, ou vinte minutos (=a discussão do casal) que é mais fácil fingir que não existe mundo em volta deles. Mas não custa nada parar de escrever por vinte minutos, fechar os olhos, imaginar aquele ambiente (o avião lotado, a praça-de-alimentação quase vazia mas os balcões com garçonetes espreitando à distância, etc.) e, sem tirar o foco de cena, enriquecê-la com alguns contatos com o mundo de fora.
 
Exemplos? A cena memorável de Harry e Sally: Feitos um Para o Outro em que Billy Crystal e Meg Ryan estão num restaurante, ela finge um orgasmo em voz alta e uma mulher numa mesa próxima chama o garçom e diz: “Eu quero o que ela está comendo”. Sem essa fala, não haveria cena.   
 


 
 
 
 
 
 
 




segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

4652) Zé Calixto e o fole de 8 baixos (14.12.2020)


(foto: Antonio David Diniz)

Por uma dessas simetrias irônicas da vida, neste domingo dia 13, aniversário de Luiz Gonzaga, nossa música perdeu o grande Zé Calixto, 87 anos, um dos mestres do fole-de-8-baixos do forró nordestino.
 
Os Calixto (Zé, Luizinho, Bastinho) são uma linhagem de músicos talentosos e populares. Conhecendo a eles e à sua obra não é difícil entender o "caldo cultural" de onde emergiram figuras hoje internacionalmente famosas como Sivuca e Hermeto Paschoal.
 
Uma vez, nos anos 1990, fui convidado para cantar meus martelos numa coletiva de músicos nordestinos no Circo Voador do Rio. Estava nos bastidores, no meio de dezenas de figuras, conversando com Zé Calixto, quando se aproxima uma figura leonina de cabelos e barbas quase brancos: "Você é Zé Calixto? Meu nome é Hermeto Paschoal, e sou seu maior fã.”
 
Presenciei assim o que imagino ter sido o primeiro papo pra-valer entre esses dois reis do teclado.
 
Teclado é um modo de dizer, porque o fole de oito baixos usa botões, como as “gaitas” gaúchas. E tem como principal característica técnica o fato de que, quando se aperta um botão, “abrir o fole” produz uma nota musical, enquanto que “fechar o fole”, apertando o mesmo botão, produz outra. Na sanfona convencional, o acordeom, tudo é muito mais simples – a nota musical é a mesma, não importa em que direção a gente puxe ou empurre o fole.



O fole-de-8-baixos é um instrumentozinho invocado, pequeno, difícil, rico de recursos. Como dizia Dominguinhos, com uma gargalhada: “A vantagem dele é que é mais leve...”
 
Era o instrumento do velho Januário, o pai de Gonzagão. E o próprio Gonzagão juntou-se a Humberto Teixeira para produzir a canção “Respeita Januário”, onde Luiz conta como voltou para Pernambuco no auge do sucesso, para rever os pais. O velho Januário torceu o nariz diante do sucesso do filho, nesse monólogo criado e falado com a genialidade de Gonzaga:
 
“O nêgo agora tá gordo que parece um major... É uma casemira lascada, um dinheiro danado... Enricou!... Tá rico!... Pelos cálculos que eu fiz, ele deve possuir pra mais de dez contos de réis. Sanfonona grande danada... 120 baixos. É muito baixo. Eu nem sei pra que tanto baixo, porque arreparando bem ele só toca em dois! Januário não. O fole de Januário tem 8 baixos, mas ele toca em todos oito.”
 
Esse detalhe do número de baixos é um tratado completo sobre estética e tecnologia. A rigor, os 120 baixos da sanfona de Luiz Gonzaga são tão supérfluos quando os 18 milhões de cores do PhotoShop. Pra que isso tudo? Com 10 por cento disso, e talento, qualquer artista se vira muito bem.
 
O fole não precisa ter necessariamente oito. No começo (dizem) tinha dois, e aqueles dois botõezinhos à disposição da mão esquerda do tocador lembravam o casco bífido de um caprino, daí (segundo algumas interpretações) o nome “pé de bode” atribuído ao instrumento. Há foles de 12 baixos ou mais, e cada instrumentista usa o que lhe convém.



Quem quiser se aprofundar no estudo dele não tem porta de entrada melhor do que o livro de Léo Rugero, Com Respeito aos oito baixos – Um estudo etnomusicológico sobre o estilo nordestino da sanfona de oito baixos (“Prêmio Produção Crítica em Música”, Funarte, 2012 / Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 2013). 

Léo Rugero, paulista criado no Rio de Janeiro, pesquisador musical da UFRJ, mergulhou nessa colônia nordestina de sanfoneiros e puxadores de fole, produzindo este livro repleto de informações preciosas, e um documentário homônimo que pode ser visto na web.
 
A pesquisa de Rugero centrou-se várias vezes na pessoa de Zé Calixto, como representante mais velho de um clã que, ao contrário do pai deles todos, Seu João de Deus, transferiu-se para o Rio de Janeiro, teve acesso aos estúdios de gravação, e dos anos 1960 em diante deu uma sobrevida de meio século a essas formas musicais.
 
O blog de Rugero, Sanfona de 8 Baixos, pode ser acessado aqui:
 
Zé Calixto teve mais de duzentas composições gravadas. É interessante notar, para quem se interessa por esse tipo de música, que apesar de ser tradicionalmente identificado com o forró nordestino o fole de 8 baixos presta-se muito bem ao samba, ao choro, ao frevo e outros estilos musicais. O choro, principalmente, pelo seu perfil marcadamente instrumental e pela perícia que normalmente exige dos executantes, é um estilo de música que tem tudo a ver com os 8 baixos.
 
Aqui, por exemplo, podemos ouvir seu disco de 1961, onde ele interpreta clássicos instrumentais como o frevo “Vassourinhas” (Matias da Rocha-Joana Batista Ramos) e o samba “Escadaria” (Pedro Raimundo).
 
“A volta do sanfoneiro” (Philips, 1961)


Nascido em 1933 em Lagoa Seca, na época pertencente ao município de Campina Grande, Zé Calixto foi filho de tocador, tal como aconteceu com Luiz Gonzaga, e desde pequeno acompanhava o pai nos bailes rurais onde este tocava. Mudou-se para o Rio em 1960 e conseguiu sua primeira gravação intermediado pelo compositor Antonio Barros, outro recém-chegado naquela imensa leva pós-Gonzaga, pós-Jackson do Pandeiro, quando os estúdios cariocas ficaram repletos de tocadores, cantores e ritmistas gravando discos modestos que vendiam como água.
 
Aqui, um programa da TV Paraíba, em duas partes, criação de Rômulo Azevedo, onde Zé Calixto conta com o bom humor de sempre a sua odisséia nordestina:
 
“A Paraíba e Seus Artistas” (Rômulo Azevedo)
Parte 1:
Parte 2:
 
E aqui, números musicais entre Dominguinhos e Luizinho Calixto, um dos irmãos do mestre falecido – professor, compositor, instrumentista e continuador da Grande Arte.
 
Dominguinhos + Luizinho Calixto:
 
 







domingo, 13 de dezembro de 2020

4651) Entrevistas Transcendentais: Julio Cortázar (13.12.2020)




Paris no outono. A surpresa de uma rajada de vento frio no dobrar de uma esquina. Um dia branco de luminosidade onipresente, algumas folhas arrastadas no chão. O ameaço de chuva me fez calçar o par de botas usadas que comprei num mercado perto da Porte de Clignancourt, e botar o casaco impermeável. Neurótico com horários, cheguei ao endereço com quarenta minutos de antecedência, mas me dominei e fui tomar um café na esquina, olhando de longe o portão de ferro que dava acesso ao pátio.
 
Um minuto após a hora aprazada toquei a campainha e ele me recebeu, trajando pulôver cinza claro, calça escura, sapatos silenciosos. O olhar era cansado e franco; o sorriso mostrava dentes precários, e a barba e o bigode lhe davam o aspecto de um Lon Chaney de bom coração. Meio encurvado, meio cerimonioso, desculpou-se por não falar português, o que não o impediu de, ao longo da conversa, citar versos inteiros e usar expressões brasileiras, sempre com propriedade. 

Falou no seu castelhano pausado, e algumas vezes, meio que por distração, num francês de tradutor. (Já observei, não sei se por auto-sugestão, que os tradutores profissionais falam as línguas que lhes são estrangeiras com um certo apuro, um certo respeito a cada palavra, como se “ser compreendido” fosse a prioridade absoluta.)
 
Sentamo-nos na sala onde duas portas lado a lado conduziam a uma varanda ampla com gradil. Deduzi que o pátio interno do prédio ficava do lado do quarto; ali, o balcão dava para a rua dos fundos que ele me mostrou com gestos largos, apontando a direção do bulevar principal, da estação de metrô onde saltei, mostrando o prédiozinho antigo onde moravam amigos, e o toldo do buquinista que costumava visitar.


(Paris)

Serviu um vinho, perguntou de onde eu era, onde morava, como era minha cidade, mostrou interesse real; conversamos sobre juventude, leituras de juventude, comparamos décadas. Perguntei-lhe sobre ficção científica, ele balançou a cabeça, sorrindo.
 
JC – Eu poderia lhe falar de Verne e Wells, principalmente o primeiro, que como deve saber é uma referência constante no que escrevo. Mas creio que a “ciencia-ficción” moderna me atraiu menos. Há talvez um excesso de detalhismo científico, do qual Verne já bastou para me cansar. Gosto dele pelo lado imaginativo, pois nos mostra mil planetas, todos aqui na Terra. 

Aqui na França, curiosamente, tem se escrito muito sobre certos aspectos iniciáticos, ocultistas, de sua obra; seu interesse por antiguidades, ruínas, lugares secretos, sua paixão pelos criptogramas... Verne começou como um divulgador científico, um arauto da Era da Razão, mas de certa forma a Ciência o ultrapassou, o deixou para trás. Creio que hoje ele está mais próximo de um Lezama Lima, do que de um Arthur C. Clarke ou outros cientistas que escrevem.
 
BT – Sim, sempre imaginei que a ficção científica norte-americana não lhe interessaria muito...
 
JC – Mas veja, nada há de preconceito nacionalista quanto a isto, porque como sabes uma das minhas grandes influências é Edgar Poe, que li muito cedo, e cuja obra em prosa traduzi. Poe tinha seu lado científico, sem dúvida, seus interesses astronômicos, mas se há uma ciência que lhe deve muito, em nosso século – refiro-me ao século 20, claro – é a Psicologia. Existe uma ciência da mente, e estamos mais atrasados nela do que na ciência das viagens espaciais. O próprio Freud afirmou que quem descobriu o Inconsciente não foi ele, e sim escritores como Hoffmann, o próprio Poe... 

Veja, não estou aqui defendendo a idéia de que a ciência deve invadir, catalogar e legislar esses domínios. Creio que sempre existirá um “mais além” onde nós, escritores, avançaremos com mais leveza e mais desassombro do que os cientistas. Mas se me identifico pouco com o termo ficção científica é justamente por isso, porque o que me interessa não é o que já foi definido pela ciência, o que já foi experimentado, catalogado, e sim o que está “do lado de lá”, o que nós outros apenas pressentimos, como quem ouve um ruído profundo e não sabe de onde vem.
 
BT – Em seu famoso paralelo entre a literatura e o boxe, o conto precisa ganhar por nocaute, mas o romance pode se dar o luxo de vencer por pontos. Tenho amigos e amigas a quem o boxe não agrada, provoca-lhes até uma certa repulsa. Como poderia traduzir isto para essas pessoas?
 
JC – É claro que me ocorreu falar do boxe porque faz parte de minha história pessoal, da história dos homens de minha geração, e mesmo reconhecendo ser um esporte muitas vezes brutal consigo ver nele um sistema que contém valores positivos. Além disso, tem uma dinâmica própria; uma relação entre tempo e energia, que foi o que tentei exprimir nessa comparação. 

Mas podemos dizer tudo isso de outra forma. Posso dizer, por exemplo, que vejo o conto como uma casa, um lar, um espaço fechado e intenso, que não necessita de alargamento, mas onde tudo converge para si mesmo, cada objeto que está ali se relaciona a todos os outros, pertence ao mesmo espírito, o espírito das pessoas que ali habitam. E uma cidade é um organismo imenso, aberto, que se espalha em direções muitas vezes imprevisíveis: é assim também o romance, uma forma de escrita aberta, expansiva, cujo crescimento se dá de maneira mais lenta e por isso mesmo responde às variações do tempo, responde às mudanças na alma de quem o escreve. Poderia dizer também, para que digas a alguma de tuas amigas, que um conto é como uma noite juntos para um casal que acabou de se encontrar, e o romance é como um casamento.  

BT – O conto é sempre um vislumbre, não?
 
JC – Sim, e volto a usar aqui uma de minhas imagens favoritas, a imagem da constelação, da junção de elementos díspares que às vezes nos é dado entrever. O conto curto, como eu o entendo, é algo como a fotografia, que às vezes registra de forma instantânea uma harmonia, uma simetria, uma relação entre elementos, algo que existiu naquele segundo e um segundo depois de ser fotografado não existia mais.


(Bruxelas)

BT –Um dos seus livros de juventude, Divertimento, tornou mais clara para mim uma imagem: seus romances são escritos sobre o que chamamos “uma turma de amigos”. Mesmo quando há um protagonista solitário, ou quando há casais amorosos em primeiro plano, a ação é ocupada por uma turma que convive intelectualmente.
 
JC – Sim, sempre dei importância às amizades pessoais e não apenas no sentido, digamos, das lealdades afetivas, mas da convivência crítica, do aprendizado conjunto da arte, da literatura, da vida enfim. Não sou um grande extrovertido, sou mais o tipo solitário. Não me agradam as festas ruidosas com multidões de pessoas, mas passei belos momentos na companhia de homens e mulheres cujo espírito tinha afinidade com o meu. Pessoas com quem eu me sentia capaz de dizer os mais terríveis gracejos, fazer confissões, compartilhar sentimentos profundos.



(Paris)

BT – Vemos isso, mais famosamente, no Jogo da Amarelinha, mas também em O Livro de Manuel, 62: Modelo para Armar, no próprio Divertimento... Talvez em Os Prêmios...
 
JC – Não, creio que Os Prêmios ocorre num outro plano, de pessoas aleatoriamente convocadas pelo Acaso para conviver no ambiente fechado de um navio. É outro tipo de dinâmica, com algo de confronto entre estranhos. Mas você tem razão no que se refere a esses pequenos grupos. Em muitos casos trata-se de exilados noutro país, uma condição que por si mesma os aproxima, os enclausura num relacionamento mais intenso, os força ao questionamento político, ao questionamento estético, existencial e tudo o mais.
 
BT – Com relação ao exílio, ele sempre envolve uma ruptura, mas em alguns casos, pode ser também um acesso a outras formas de evolução, de crescimento pessoal...
 
JC – Sem dúvida, porque, e isto se aplica a qualquer um, procuramos sempre tirar das novas circunstâncias o que têm de positivo. Em meu caso, o exílio inicial foi voluntário, ninguém me expulsou da Argentina, vim morar em Paris por vontade própria.
 
BT – Sua literatura tanto tem de parisiense quanto de portenha, não?
 
JC – Paris foi a cidade que escolhi para trabalhar e viver, e uma cidade que sempre me deu muito, e que se tornou o meu ponto de vista para observar o mundo, sem que com isso Buenos Aires tenha deixado de sê-lo também. Assim, se pode dizer que ganhei dois pontos de vista, mas sempre insisto em lembrar que toda minha literatura é feita no meu idioma natal. É com ele que me expresso, e que dialogo.
 
BT – Quando se tem duas cidades – a cidade de origem e a cidade onde se mora atualmente  – é forçoso ter esse ponto-de-vista duplo. Muitos, no entanto, devem tê-lo criticado por ter adquirido esse lado francês.
 
JC – Sim. Quando se tem duas cidades, é um pouco como quando se tem duas mulheres diferentes, duas amantes. Por mais que tu faças por uma, ela sempre vai imaginar que fazes muito mais pela outra. Cidades são como mulheres, e às vezes são ciumentas.
 
BT – Por que escolheu Paris? Alguma razão especial?
 
JC – Não uma “especial”, mas várias pequenas razões que se foram superpondo. A familiaridade com o idioma, que eu já lia e falava, inclusive pela influência materna, pois minha mãe apesar de argentina de nascimento era filha de franceses, poderia inclusive ter sido uma tradutora, se tivesse vivido num ambiente menos machista e menos patriarcal.




(Banfield, Buenos Aires)

BT – Pergunto isto porque li alguns depoimentos seus, ou correspondências, falando de suas primeiras vindas à Europa, idas aos museus, etc. Lembrou-me um escritor brasileiro, Osman Lins, que quando viajou pela primeira vez para a Europa estabeleceu para si mesmo um roteiro muito rigoroso de estudo de Arte, obrigou-se a visitar tais e tais igrejas, tais e tais capelas, museus, galerias, às vezes indo a uma pequena cidade italiana ou francesa para admirar uma única obra, um mural... É uma dedicação metódica à arte que minha geração, pelo menos, não chegou a ter.
 
JC – Sim, esse tipo de dedicação era algo muito importante para mim naquela época. A apreciação da arte européia era o outro lado, por assim dizer, do nosso movimento de independência, de tentar nos libertar da mentalidade européia, do impulso tão argentino de negar a América e fingir que éramos europeus exilados. 

Paradoxalmente, a arte européia, a arte renascentista, a música sinfônica, a pintura, a grande poesia, a grande novela, nos libertavam desses laços puramente políticos, econômicos e militares que desenharam a colonização do Cone Sul. Há na grande arte européia – e em toda a grande arte, por suposto – um espírito universalizante que nos acolhe, a nós latino-americanos, e que diluindo essas fronteiras artificiais nos mostra que nossa arte portenha pode também empolgar o espírito de um rapaz na Espanha, de uma moça em Paris, de jovens na Inglaterra ou na Alemanha... Além da experiência estética em si, creio que era isto que eu procurava, e não só eu. 

É curioso que você cite o exemplo de Osman Lins, um escritor cujo Avalovara é um livro que muito admiro, porque sinto nele essa mesma pulsação universal e sem dúvida brasileira, porque o Brasil que ele descreve é um Brasil que, sem conhecer em primeira mão, aceito como verdadeiro, até quando não o entendo por completo.


(Paris)

O tempo melhora um pouco e Julio sugere que vamos até a rua ao lado tomar um café com croissants; dá a entender que é um pequeno ritual seu no dia a dia. Descemos juntos e cruzamos uma praça, enquanto tento sincronizar meu passo com o das suas pernas enormes. Na praça uma garotada na faixa de dez anos está brincando. Alguns correm na direção dele, gritando seu nome; entendo que são filhos de vizinhos seus. Estão jogando pião, e um deles pede a Julio que mostre algo.
 
Ele recolhe o pião, prende o cordão no alto, desce-o perpendicularmente e com habilidade vai enrolando em torno do corpo. Vira-se para mim.
 
JC – Conheces o jogo, certamente.
 
BT – Sim, joguei muito na minha infância, em Campina Grande.
 
JC (sorrindo, forçando o sotaque) – “Campiña Grande”... (Atira o pião, dá um puxão brusco, o pião gira repicando poeira no chão batido. Ele mostra o cordão, que agora pende, frouxo, de sua mão:) Alguém precisa escrever, um dia, “A arte de agarrar o pião pela ponta do fio”.

Devolve o brinquedo aos garotos, vamos tomar em paz nosso café, num pequeno bistrô onde ele é saudado com simpatia pelo casal idoso atrás do balcão. Despedimo-nos com um abraço pouco simétrico. Ele volta com seu andar compassado, cruzando as ruas de uma Paris que não existe mais, ou que existe menos do que as linhas com que foi contada.
 
 


 
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.) 

Augusto dos Anjos:

Philip K. Dick:

Agatha Christie: