terça-feira, 3 de julho de 2018

4363) Orlando Tejo 1935-2018 (3.7.2018)



Conheci Tejo em 1965, quando comecei a trabalhar na redação do “Diário da Borborema”, onde ele e Josusmá Viana se revezavam na secretaria. Era uma redação alegre pela presença dele, e onde pontificavam nomes como Fernando Lorenzo Maia na página de esportes, Paulo de Tarso na administração, William Tejo e Manoel Alexandrino Leite na página de política, Fernando Wallach na reportagem policial, Valdi Lira na fotografia, e tantos outros.

A veracidade aos fatos históricos me obriga a registrar que apesar desse panteão de nomes consagrados, o melhor momento do dia de trabalho era logo cedinho, sete da manhã, quando o jornal já estava na rua e o pessoal da oficina (Romão, Boní, etc.) começava a desmontar as páginas de ferro com as linhas de chumbo.

A redação (que ficava em cima, no primeiro andar) ainda estava vazia, e uma bola de papel-jornal fortemente amarrada com barbante servia para que eu, Mauro Ronaldo e Severino Brasil realizássemos ferozes campeonatos de barra-a-barra entre as mesas vazias e os arquivos de jornais que iam do piso ao teto.

Foi em meados dessa década que Orlando inventou de se candidatar a vereador, arranjou um jipe, e era visto chispando o dia inteiro ao volante, pelas ruas de Campina. a cabeleira ao vento. Não foi eleito, e continuou assinando ponto no Café São Braz, onde todo mundo até hoje passa o dia falando de três assuntos cruciais: política, futebol e a vida alheia.

Dessas conversas intermináveis surgiu o projeto do livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo, que lhe deu fama nacional e alçou o repentista da Serra do Teixeira ao panteão mitológico do Nordeste, ao lado de Lampião, Padre Cícero e Luiz Gonzaga.

Durante os próximos séculos nossos netos e bisnetos continuarão discutindo se a maioria dos versos que aparecem naquele livro foram mesmo criados por Zé Limeira, ou se o foram por uma plêiade de poetas e boêmios que circulavam entre os poucos metros que separavam a Rádio Borborema, o Café São Braz e a Sorveteria Flórida.

Segundo meu pai (grande amigo de Orlando) o passatempo ali era inventar versos “zelimeirianos” para provocar gargalhadas, e muitas dessas inocentes contrafações foram se agregando à lenda e acabaram entrando no livro, como imigrantes ilegais. Não importa. Às vezes, mais que a verdade histórica, o que vale é o pulsar do espírito da lenda. Publique-se a lenda.

Já tive copiados à mão sonetos fesceninos de Orlando, que não reproduzo aqui porque não sei onde estão, e talvez para não chocar o espírito politicamente correto que governa com mão de ferro os costumes de hoje.

Mas a lenda de Orlando é mais polpuda de versos do que a de Zé Limeira. Há anos digo que algumas de suas improvisações poéticas deveriam ser reunidas em livro. Estão espalhadas por aí, pela internet e pela memória alheia. Um livro não garante a imortalidade, mas um Poemas Reunidos de Orlando Tejo seria pretexto para muitas noitadas de coquetéis e lembranças boas.

Como a dos versos que ele, apologista das cantorias de viola, dedicou a Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915-1992), e a seu parceiro Severino Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990).

Os dois repentistas foram amigos de coração e antagonistas da viola por mais de meio século de embates memoráveis. No Nordeste inteiro, em bares, feiras, residências, fazendas, terraços, as pessoas se juntavam para vê-los disputando quem fazia o verso mais inspirado e quem dava alfinetadas mais agudas no outro.

No Instituto Lourival Batista, em São José do Egito (PE), há uma parede onde está imortalizado o poema de Orlando Tejo sobre essa dupla de gênio:

Grande saudade hoje sinto
das cantorias-tesouro
do gigante que foi Pinto,
do uirapuru que foi Louro.

Era uma graça, um estouro
ouvir em qualquer recinto
os trocadilhos de Louro
os desconcertos de Pinto.

Tal qual no Bar do Faminto,
do Pátio do Matadouro,
quando Louro aceitou Pinto
e Pinto abençoou Louro.

Mas no Bar Rosa de Ouro
houve um encontro distinto
Pinto elogiando Louro,
Louro chaleirando Pinto.

Jamais ficará extinto
o meu prazer de ouvir Louro
querendo derrubar Pinto,
Pinto brincando com Louro.

No Bar Casaca-de-Couro
vi o maior labirinto:
Pinto depenando Louro
e Louro esganando Pinto. (...)

O poema inteiro, que é muito longo, pode ser lido aqui, no blog Cantigas e Cantos, de Gilberto Lopes:


Outra história orlandiana impagável é contada pelos seus amigos de Brasília, onde ele foi funcionário da Câmara Federal. Apertado de grana, precisou com urgência urgentíssima de um dinheiro emprestado. Alguém lhe disse que procurasse um tal de Canindé, que poderia adiantar-lhe os trinta mil cruzeiros de que precisava para cobrir alguns cheques.

Orlando passou o dia esperando uma resposta de Canindé, que na verdade era apenas o contato com os agiotas. Em desespero, sentou-se à mesa do seu amigo, o escritor Luiz Berto (autor do igualmente lendário Romance da Besta Fubana) e produziu oito décimas implacáveis de ofensas e doestos contra o indefeso ausente:

(...) O cabra fuma e não traga
faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
pra um sujeito de fé,
já que esse indivíduo é
um tratante e delinqüente!
Haja chumbo grosso e quente
no rabo de Canindé!

Por capricho do destino
de Satanás ou Deus Brama,
o bicho também se chama
coisa e tal e Tolentino;
doido, avarento e mofino,
não conhece a Santa Sé,
faz da cola o seu rapé,
vive da desgraça alheia,
devia estar na cadeia
esse tal de Canindé! (...)

Eis senão quando toca o telefone. É Canindé, com o dinheiro liberado, pronto para ser entregue! Comemorações, abraços efusivos, e Orlando senta-se de novo à mesa, pega pena e papel, e produz mais oito estrofes neste novo teor:

Um sujeito despeitado,
desses de baixa maré,
inventou que Canindé
é um canalha safado.
Eu fiquei preocupado
com a informação até,
porém não perdi a fé
em quem merece louvores…
E haja palmas e haja flores
na fronte de Canindé.

Tenho dito e sustentado
(todo mundo sabe disso)
que na Câmara, esse cortiço,
há um cidadão honrado,
pai de família extremado,
homem de bem e de fé!
O Papa já disse até
que há no torrão brasileiro
Padre Cícero em Juazeiro
e em Brasília, Canindé.

Sei que o Papa tem razão,
mas ninguém quer saber disto.
Se já falaram de Cristo,
que se dirá de um cristão?
Porém a fofoca não
atinge um homem de fé.
e se eu descobrir quem é,
meto a mão no pé do ouvido
do sem-vergonha enxerido
que falar de Canindé! (...)

A crônica de Luiz Berto, e o texto completo das duas séries de estrofes, estão aqui, no blog da União Brasileira de Escritores / RN:

É a poesia. Muita gente lê um poema e se pergunta: Isto é verdade? Isto é mentira? O poeta é um fingidor? O leitor é um hipócrita? Que valor pode ter um texto assim cru, direto, concreto, vazado em meras palavras?

Os dois poemas de Orlando sobre Canindé mostram a verdade do poeta, qualquer poeta, que só tem a obrigação de ser fiel àquilo que no momento da escrita lhe arrebata o espírito. O poeta olha para dentro de si ou para o mundo à sua volta e relata o que vê, o que sente, o que o encandeia com sua força. O que ele escreve não é verdadeiro nem mentiroso: é apenas real.

Era assim Orlando, boêmio que largou a bebida mas não as noitadas, poeta que nunca largou a poesia, e que dias atrás decolou para o Outro Mundo e não nos largou, não nos largará em tempo algum. Concretizou agora os versos de seu alter ego Zé Limeira:

Se um dia eu fosse chamado
pra cantar no Céu, eu ia.