quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

3408) Auerbach em Istambul (29.1.2014)



Mimesis de Eric Auerbach (a edição brasileira é da Perspectiva, São Paulo, tradução de George Bernard Sperber) é um clássico dos estudos literários. Sua leitura equivale a um curso de literatura completo.  

Foi escrito quando o autor, durante a II Guerra, estava refugiado em Istambul. Já o comentei aqui (http://bit.ly/L9LZwE); é uma leitura atenta e detalhada de textos clássicos (Montaigne, Shakespeare, Homero, a Bíblia, Virginia Woolf, etc.) onde Auerbach vai de frase em frase desmontando e revelando as intenções, as técnicas e os efeitos obtidos pelo autor, além do “espírito da época”, o caldo cultural em que cada um estava mergulhado.

Um artigo de Kaya Genç na L. A. Review of Books (http://bit.ly/1aAC5Qz) mostra que Auerbach teve acesso à biblioteca de um mosteiro, em Istambul, graças a uma carta de recomendação do Cardeal Angelo Roncalli, o futuro Papa João XXIII. E ela comenta que os artigos acadêmicos publicados em turco por Auerbach no pré-guerra precisam ser retraduzidos hoje, porque o turco dos anos 1930 é ilegível para a população moderna. (E a gente preocupado com o português!)

A façanha intelectual de Auerbach foi produzir uma obra erudita, de literatura comparada e análise textual minuciosa, num livro de 500 páginas sem notas de rodapé, sem bibliografia. Ele próprio admitiu, no Epílogo, que se tivesse podido pesquisar à vontade todas as referências necessárias, talvez nunca tivesse chegado a escrever o livro.

Vejo amigos e colegas arrancando os cabelos porque a bendita Tese ou a famosa Dissertação estão empancadas enquanto eles “releem Barthes completo”, ou sei lá quem.  Nada contra ler Barthes; mas a produção intelectual acadêmica é de um imenso defensivismo, auto-protecionismo. O autor está se calçando de argumentos alheios para se defender, preemptivamente, das críticas dos seus pares: “faltou isso, ignorou aquilo...”  E as notas avalizadoras estão para o texto como os volantes estão para um time de futebol.

Eu sempre digo (a eles e a mim): dê uma de Auerbach em Istambul. Não precisa fazer uma varredura (ainda mais agora, de Google em punho!) em tudo que se publicou sobre o tema. Escreva com o que você sabe, escreva com o que você é.  Melhor do que se proteger contra as críticas é entrar de idéias novas em punho e fazer os críticos recuarem, e são eles que ficarão na defensiva. Uma afirmação intelectual sem fundamento é condenável; pelos mesmos motivos é condenável o acúmulo indefinido de fundamentos sem a coragem de fazer afirmações.  Teorizar é afirmar. Se o que você acha que conhece é insuficiente para embasar suas afirmações, não seja acadêmico.  Venha ser ficcionista.