quarta-feira, 2 de setembro de 2009

1246) As estrelas e a noite (11.3.2007)




(Van Gogh, Noite Estrelada)

Um dos meus passatempos é procurar pontos de contato entre coisas distantes ou pontos de semelhança entre coisas distintas. Em 1.10.2005 publiquei aqui o artigo “Borges e Asimov”, em que mostrei o quanto estes dois autores, improvavelmente, se parecem. Uma recente noite de insônia me forneceu mais um detalhe para aproximá-los. Os conhecedores da obra de Isaac Asimov sabem que um dos seus contos mais famosos é “Nightfall” (“O cair da noite”), que um crítico já descreveu como “provavelmente o conto mais famoso da ficção científica americana em todos os tempos”. Asimov, na época um jovem de 21 anos, tomou como ponto de partida uma frase de Ralph Waldo Emerson, o escritor e filósofo do século 19: “Se as estrelas aparecessem apenas uma noite durante mil anos, ah, como os homens iriam crer e reverenciar, e preservar por muitos e muitos anos a recordação da Cidade de Deus!”

Bela imagem, a de Emerson – céus noturnos perpetuamente imersos na escuridão e aí, uma noite, aparecem de súbito todas as estrelas, planetas, constelações, e a Via Látea – descrita num verso famoso de Victor Hugo (lembrado por Borges) como “a hidra-universo torcendo seu corpo incrustado de astros”. Os homens, evidentemente, cairiam de joelhos, deslumbrados e agradecidos por esta visão preternatural. Pois bem: Asimov pega esta idéia e a vira pelo avesso. Ele imagina um planeta que orbita num sistema de vários sóis, várias estrelas próximas (algo bastante comum), de tal modo que ali nunca existe noite completa, pois sempre um destes sóis está aparecendo no céu. Como os sóis e o planeta estão em perpétuo movimento, contudo, de tantos em tantos séculos acontece de todos os sóis estarem de um só lado – e metade do planeta mergulhar, pela primeira vez na memória daquela geração, na escuridão da noite, ainda que atenuada pela presença das estrelas.

O que sucede então, em vez do deslumbramento e da reverência, é o caos. A visão do céu noturno é o bastante para provocar o pânico coletivo; e é este Cair da Noite periódico que, periodicamente, causa a ruína das civilizações que se sucedem no planeta. As multidões enlouquecem à mera contemplação do negror do vácuo e do brilho das constelações.

É um belo conto e eu pensava nele, de olhos fechados na treva, quando me ocorreu a lembrança de um parágrafo de Borges. Pelejei para encontrá-lo, mas agora (à 1:45 da madrugada) ei-lo aqui, no ensaio “As Kenningar”, da Nova Antologia Pessoal: “Um epigrama da Antologia Grega declara: ‘Quisera ser a noite para olhar-te com milhares de olhos’; Chesterton define a noite como um monstro feito de olhos. Ambos os exemplos equiparam olhos e estrelas, mas o primeiro expressa a ansiedade, a ternura e a exaltação, e o segundo, o terror. Nossa imaginação aceita os dois”. Ouso dizer que os aceita porque tudo que toca o Sublime toca também o Terrível, porque ambos exprimem o que é “difícil de ser suportado” (v. “Beleza medonha”, 1.1.2004).


1245) O gene egoísta do fanatismo (10.3.2007)


(Richard Dawkins)

Têm aparecido alguns livros, nos últimos meses, que parecem indício de uma ofensiva maciça dos cientistas contra a crença religiosa em geral. O mais recente é The God Delusion (“A Ilusão de Deus”) de Richard Dawkins, o biólogo autor de livros de sucesso como O Gene Egoísta. Outros títulos que têm sido comparados ao livro de Dawkins são Breaking the Spell: Religion as a Natural Phenomenon de Daniel Dennett, e Letter to a Christian Nation de Sam Harris. Pretendo voltar a este assunto, mas de início gostaria de fazer uma colocação típica de leigo. Por que motivo os ateus se incomodam tanto com o fato de os crentes crerem, e vice-versa? Existe algo de profundamente inquietante, para algumas pessoas, no fato de alguém discordar de suas opiniões religiosas. Não tem nada a ver com gostar ou não gostar de uma obra de arte, por exemplo. O que chamamos “gosto” é a nossa identificação intelectual e afetiva com uma obra. Se alguém não se identifica na mesma medida, lamentamos, mas isso não muda nosso ponto de vista, nem nos faz sofrer.

No caso da crença em Deus, parece que tantos os crentes quanto os ateus precisam desesperadamente cercar-se de uma unanimidade protetora. Querem que todo mundo pense como eles, para não terem de se justificar a cada passo, para não serem questionados, para não dar explicações. Tanto a existência quanto a não-existência de Deus são usados como um carimbo de “Assunto Encerrado” que lhes permite pronunciar a fórmula mágica: “Estamos conversados, e não se fala mais nisso”. A crença ou não-crença, para eles, é algo que vai além de uma preferência pessoal. Esses indivíduos não dizem que decidiram acreditar ou não-acreditar. Dizem que a Verdade se lhes impôs pelo fato de ser Verdade, e que os que pensam diferente têm que aceitá-la, mesmo que não queiram.

Dawkins é um dos mais veementes adversários da idéia de Deus. Ele diz que cabe à Ciência explicar o que acontece no mundo material – e eu assino embaixo. O problema é que ele trata a religião com uma grosseria de deixar perplexo um modesto agnóstico como eu. Resenhas de The God Delusion citam um trecho em que ele diz: “O Deus do Velho Testamento pode ser considerado o personagem mais desagradável da história da literatura. É ciumento, e orgulha-se disto. É um controlador egoísta e injusto. Um sujeito vingativo e sedento de sangue promovendo limpezas étnicas. Um valentão misoginista, homofóbico, racista, infanticida, genocida, filicida, pestilencial, megalomaníaco, sadomasoquista, caprichoso e malevolente”. Olha, meu amigo, eu até tenho alguns reparos a fazer à Divindade do Velho Testamento (o Deus do Novo Testamento me parece um grande avanço sobre o do primeiro), mas o modo como Dawkins se exprime não tem o tom do cientista que ele pretende ser, e sim o dos fundamentalistas e talibãs que ele diz que combate. Parece que o gene egoísta do fanatismo não ataca somente os crentes.

1244) Flamengo 4x2 Madureira (9.3.2007)



O Flamengo foi campeão da Taça Guanabara anteontem, derrotando o Madureira nas finais por um placar agregado de 4x2 (0x1 mais 4x1). O segundo jogo não foi tão fácil quanto o placar sugere. Foi um jogo em que o Flamengo durante os primeiros 15 minutos mostrou a raça que deveria ter mostrado durante os 180. Foi para cima, asfixiou o adversário na defesa, fez três gols, mas logo a partida voltou a ser lá-e-cá. O rubronegro cansou no segundo tempo e recuou. O tricolor suburbano foi para cima, mas faltou-lhe maior categoria (e faltaram os dois atacantes que perdeu no primeiro jogo: Marcelo por expulsão e Valdir Papel por contusão grave).

Flamengo e Madureira foram nestes dois jogos (não vi o jogo do turno, em que foi a vez do Madureira de ganhar de 4x1) duas equipes parelhas, niveladas. O que mostra uma bonita ascensão do time suburbano, mas confirma mais uma vez a decadência do futebol carioca. Futebol por futebol, o Madureira é tão bom quanto qualquer outro; tão bom quanto o Volta Redonda foi recentemente, arrancando um vice-campeonato antes de vender o time inteiro e voltar a ser pequeno. O campeonato carioca tem sido emocionante por causa deste nivelamento por baixo, que analisado friamente é uma péssima coisa. Mas se o que o torcedor quer é emoção... Cuidado, lá vem o Madureira!Pobre futebol carioca. Os quatro times grandes (Fla, Flu, Vasco, Botafogo) são todos medíocres. A gente que é torcedor se alegra porque futebol é assim mesmo, basta o time ganhar a gente ri, comemora, fica feliz. Agora, futebol que é bom não se vê aqui há bastante tempo. Nos “quatro grandes” pode haver, no máximo, meia dúzia de jogadores que mereceriam ser titulares de equipes com a tradição que eles têm. (Não me perguntem quais são, porque não consigo pensar em nenhum; só estou dizendo que existem para dar ao Acaso o benefício da dúvida.) Tirando Romário e seu lento final de carreira (ainda penso que ele vai pendurar as chuteiras jogando, merecidamente, no Botafogo), o último craque que eu vi jogar aqui no Rio foi o sérvio Petkovic.
O Flamengo é hoje um clube alquebrado e empobrecido por sucessivas administrações incompetentes ou desonestas. Nestes últimos quinze anos, os diretores rubronegros promoveram verdadeiras orgias de contratações, luvas, salários. Manejavam cifras mirabolantes para atrair as câmaras da TV, as manchetes dos jornais, as capas das revistas. Gastavam como se fossem ditadores africanos explorando minas de ouro, ou xeiques sauditas bêbados jogando em Las Vegas. No banco de reservas do Flamengo via-se uma dúzia de jogadores jovens, presunçosos, que jogavam uma bolinha completamente mais-ou-menos, ganhando salários de 40 ou 50 mil reais. A única coisa positiva que se pode dizer do Flamengo de hoje é que essa bebedeira passou. O time é ruim, é medíocre, dá pro gasto porque os outros também não estão bem, mas pelo menos parece que o endividamento parou de aumentar.

1243) Asa Branca é plágio? (8.3.2007)



O ”Jornal da Paraíba” publicou há alguns dias uma matéria sobre a autoria da canção “Asa Branca”, que Ivanildo Vila Nova já propôs como futuro hino do Nordeste Independente. O Dicionário Gonzagueano, de Assis Ângelo, recorda o boato, criado pelo compositor Carlos Imperial, de que os Beatles iriam gravar “Asa Branca”, e fala das preocupações de Gonzaga quanto à atribuição de autoria da música: “Desde que me conheço por gente... já cantava Asa Branca. Naquele tempo, lá no Nordeste, ninguém se preocupava em saber quem tinha uma música, nem sabia o que era folclore. Eu cantava a música dos outros e outros cantavam minhas músicas, sem preocupações com direitos autorais”. Gonzaga teria afirmado depois ao próprio Assis Ângelo, sobre a canção: “É do folclore, que adaptei com Humberto (Teixeira) e assinamos. Se a gente não fizesse isso, outros fariam”.

Já conversei com sujeitos mais velhos, entre eles alguns repentistas, que diziam: “Antes de Luiz Gonzaga gravar já se cantava aquela música... Cresci ouvindo.” Pelo que me toca, acho que “Asa Branca” tem um perfil típico de canção folclórica: uma melodiazinha de poucas notas (é a canção preferida de quem começa a aprender flauta doce), rima repetitiva em “ão”... O que Gonzaga e Humberto Teixeira devem ter feito é aumentar o número de estrofes. Versos como “Quando o verde dos teus olhos / se espalhar na plantação” são a cara das letras de Humberto Teixeira, aquele lirismo alencarino, visual, alegórico.

Gonzaga e Teixeira, talvez até para mostrar que poderiam ter composto “Asa Branca”, fizeram uma canção simétrica a ela, “Assum Preto”. São as mesmas estrofes, com outra letra e outra melodia (desta vez em tom menor). Já me diverti muito tocando violão em mesa de bar e cantando a melodia de “Asa Branca” com a letra de “Assum Preto” e vice-versa. Dá certinho, inclusive aquele interlúdio que faz “larará-larálará...” E a melodia de “Assum Preto” é muito mais bonita. Talvez para reafirmar mais ainda sua condição de autor que sabe criar, e que não se limita a colher algo que ouviu na infância, Gonzaga veio a compor depois, desta vez em parceria com Zé Dantas, “A Volta da Asa Branca”, que em termos de melodia e letra é muitíssimo superior às outras duas: “Já faz três noites que pro Norte relampeia / e a Asa Branca ouvindo o ronco do trovão...”

O uso de canções folclóricas anônimas como ponto de partida para uma canção reelaborada (com mais letra, mais música, mais formato) não é plágio, é um recurso vital da música popular. “Pelo Telefone”, o famoso “primeiro samba gravado”, é uma coletânea de versos-de-batucada que Donga recolheu, costurou e formatou. Bob Dylan usou como ponto de partida para suas melhores canções as baladas inglesas antigas: “A Hard Rain’s a-Gonna Fall”, por exemplo, tem sua estrutura de perguntas e respostas copiada da canção “Lord Randall”. A única obrigação de quem usa é transcender o material usado, escrever algo que lhe seja superior.

1242) Veneza Submersa (7.3.2007)



O Aquecimento Global criará ainda neste século uma nova modalidade de turismo, o turismo histórico de mergulho submarino. 

A Ciência adverte que, pelo andar da carruagem, nossas cidades litorâneas serão mais cedo ou mais tarde invadidas pelo mar. Imensos tesouros históricos serão submersos – pense Rio de Janeiro, Salvador, Recife. As gerações futuras ouvirão falar nessas cidades míticas que encerram tantas belezas e tantas histórias do passado. 

E tentarão recuperá-las, assim como os cientistas e exploradores de hoje conseguiram localizar o “Titanic”, penetrar dentro dele, filmar seus salões revestidos de lama e coral, seus corredores habitados por peixes cegos, suas suítes de luxo onde hoje dormem os polvos e as medusas.

A civilização terá se refugiado na Serra de Petrópolis. Equipes coordenadas pelos “James Cameron” futuros virão de barco até o litoral, colocarão seus trajes de mergulho e seus balões de oxigênio. Talvez o seu atracadouro fique nas proximidades do Cristo Redentor, que estará então com água pela cintura, e será a única coisa feita pela mão do homem a emergir das águas. E os turistas futuros mergulharão para explorar o Maracanã (já quase transbordando de plancto), para nadar no interior da abóbada da Candelária.

Esta idéia me veio à mente desde que li pela primeira vez o conto de Kim Stanley Robinson “Venice drowned” (1981) em que turistas do futuro mergulham nas águas do Mediterrâneo para contemplar, com possantes lanternas subaquáticas, os tesouros arquitetônicos e pictóricos da antiga capital dos Doges. 

As imagens do conto são arrepiantes quando nos evocam essas Atlântidas do futuro, essas cidades míticas que nossos tatatara-netos conhecerão apenas através de álbuns holográficos e de turnês de realidade virtual. Ouvirão falar do Mercado Modelo de Salvador, do Marco Zero de Recife, e sentirão o impulso de envergar seus aqualungs e disputar espaço com peixes mutantes pelo privilégio de entrar nadando por aquelas janelas, percorrer os corredores.

O próprio Chico Buarque já previu, em “Futuros Amantes” (1993): 

“E quem sabe, então 
o Rio será alguma cidade submersa. 
Os escafandristas virão explorar sua casa, 
seu quarto, suas coisas, 
sua alma, desvãos. 

Sábios em vão tentarão decifrar 
o eco de antigas palavras, 
fragmentos de cartas, poemas 
mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização." 

É claro que papéis, telas, quadros, tudo isso será irremediavelmente comprometido. Sobreviverão as obras de arte feitas em matéria mais resistente: escultura, arquitetura. Sobreviverão edifícios cobertos pela hera do lodo, e só em casos raros será possível resgatar e trazer à superfície algum cofre hermeticamente fechado onde acharemos notas de dólar e euro que não valem mais nada, e cartas de amor que valerão uma fortuna.

Pois é, os praieiros de toda parte que se cuidem, porque, como diz aquela música, “o chão do Recife afunda um centímetro a cada gole”.




1241) O cilício (6.3.2007)


(Paola Binetti)

Repercutiu na imprensa européia a notícia de que uma senadora italiana faz uso do cilício, um instrumento antigo de mortificação corporal que muita gente supunha desaparecido, mas que voltou à evidência há pouco tempo através de um personagem de O Código Da Vinci, um monge fanático pertencente à Opus Dei que também emprega esse objeto. O cilício pode assumir várias formas, mas geralmente é um cinturão com pregos, agulhas, cacos de vidro ou outros objetos pontiagudos que causam dor. O penitente o usa durante o sono ou durante suas atividades diárias. O objetivo é mortificar a carne, cumprir penitência, fazer recordar a todo instante a idéia de pecado e punição. A senadora Paola Binetti, de 63 anos também pertence à Opus Dei (uma organização cristã ultraconservadora), e usa o cilício sob a forma de uma liga presa à perna.

Disse ela: "A mortificação é um exercício de vontade. Há pessoas que fazem votos, outras passam horas na academia para ficar em forma. E ainda há mulheres que vivem com saltos altíssimos e incômodos". Muitos italianos devem ter se escandalizado diante da revelação da senadora, mas eu não. Qual é o problema? Fé religiosa e sofrimento físico sempre estiveram associados. A dor é uma das muitas maneiras de produzir adrenalina, de provocar uma tensão física e mental que leva o indivíduo a um alto grau de concentração. Os místicos medievais rezavam nus na neve, passavam dias inteiros em posições incômodas, praticavam o jejum, faziam-se chicotear. Os muçulmanos têm ainda hoje cerimônias em que chicoteiam ritmicamente as próprias costas. Romeiros nordestinos carregam pedras na cabeça, sobem de joelhos a escadaria da Penha ou do Horto do Juazeiro. Qual é o problema de amarrar um cilício na coxa?

Há pessoas que acham esquisita esta autoflagelação e a consideram sinal de um distúrbio mental. Essas mesmas pessoas, por outro lado, acham normais certas brincadeiras eróticas de natureza sadomasoquista que antigamente eram tabu mas agora, em nossa época permissiva, aparecem o tempo inteiro no cinema, na TV, nas revistas. Pessoas fazem-se amarrar, algemar, amordaçar; pedem para levar palmadas ou chicotadas... Por que? Ora, pelo mesmo motivo acima. A dor, quando mantida sob controle e em condições de estrita confiança mútua, produz uma adrenalina que intensifica as sensações de prazer. Satisfaz uma necessidade de mortificação física e emocional, e isto produz em algumas pessoas (por motivos que Freud explica) um prazer mais intenso. Elas não o fazem para se agredir mutuamente, mas para dar-se mutuamente uma forma diferente de carinho físico e de satisfação emocional. Pode-se achar que é uma forma meio troncha, mas, e daí? Se eles gostam, é um direito deles. O cilício, para mim, tem seu uso justificado pelas mesmas razões. Se aceitamos que “qualquer maneira de amar vale a pena”, por que não podemos incluir nisto qualquer maneira de amar a Deus?

1240) O Hipo-realismo (4.3.2007)




(Arte maoísta chinesa)

Umberto Eco discute em seu ensaio “A Ilusão Realística” (em Sobre os Espelhos, Ed. Nova Fronteira) o conceito de Hipo-realismo. Seria o contrário de Hiper-realismo. Hipo quer dizer “pouco, abaixo de”: hipotermia, etc. (Não tem nada a ver com um prefixo idêntico que significa “cavalo”, de onde temos hipódromo, hípico, etc.) 

“Hipo-realismo” é o contrário do Hiper-Realismo, aquela escola pictórica norte-americana em que imagens banais do cotidiano são retratadas com incômoda nitidez, cores fortes, contornos cortantes. 

Uma diferença entre os dois, diz Eco, é que o Hiper-realismo não nos quer se fazer passar pelas coisas: ele proclama ser “uma fotografia das coisas”. Os americanos que o praticam não querem criar imagens iguais à realidade, e sim imagens super-ultra-hiper mais reais do que o Real. Artificialidade pura.

Já o Hipo-realismo envolve aquelas obras ingênuas, meio kitsch, meio acadêmicas, em que um artista semi-educado que conhece uma dúzia de técnicas retratistas produz quadros destinados a agradar um público semi-informado que conhece meia dúzia destas técnicas. 

Vem daí, por exemplo, a enxurrada gigantesca de quadros do Realismo Socialista, mostrando operários musculosos manipulando turbinas e tornos mecânicos, camponeses altivos ceifando o trigo. 

Para Eco, esses quadros não são objetos de arte: são instrumentos de persuasão de massa. Destinam-se a ser assimilados por públicos que encontram ali, com alívio, uma identificação que a arte moderna – problemática, questionadora, iconoclasta, contraditória – lhes nega. 

É uma estética do lugar-comum que dá a essas platéias a ilusão de que são capazes de dialogar com a Arte de igual para igual; a ilusão de que “entendem”.

Este conceito pode ser estendido para outras formas de expressão, como o cinema, o teatro, a literatura. No momento em que um beabá de linguagem é assimilado pelo público, os artistas começam a questionar e romper os limites desta linguagem, enquanto os adeptos do que ele chama “Pictoricismo de Estado” apropriam-se dessa linguagem já codificada para fornecer às massas mais conformistas uma ração estável de conformismo, e fornecer àquelas com meias veleidades intelectuais a sensação de que participam do diálogo estético e ideológico.

Tal arte corresponde ao Kitut enlatado (comparado a um bife de verdade) e ao refresco sintético tipo Tang (comparado ao suco de fruta extraído na hora). Uma coisa que não é carne mas parece carne, que não contém uva mas lembra o gosto de suco de uva. 

É uma arte sintética, produzida a partir de uma técnica rapidamente disseminada através de escolas de Belas Artes e similares. É destino das vanguardas passar por este tipo de assimilação; o Hipo-realismo se expandiu a tal ponto que arrebanhou para si técnicas do Impressionismo, do Surrealismo, do Cubismo. Tudo que é novo hoje parece destinado a passar por dentro desse moedor-de-carne que a tudo nivela e a tudo neutraliza.