segunda-feira, 30 de maio de 2022

4828) "Night Sky": a FC da terceira idade (30.5.2022)


 

Na ficção científica tudo se cria, na medida em que tudo se transforma. E toda vez que utilizamos a tradição – temas que já existem, situações já exploradas, ambientes já descritos – nosso dever e nosso desafio é fazer com que essa parte da nossa história, a parte tradicional, familiar, já-conhecida, seja a parte menos relevante. A parte mais interessante tem que ser o que o autor traz de novo, de seu, de único, de peculiar – mesmo que seja apenas a receita na recombinação dos elementos antigos, como faz um chef de cozinha.
 
Na culinária, como na arte da narrativa, é meio raro alguém inventar um ingrediente. Tudo está na recombinação, naquela mistura única entre uma dúzia de ingredientes, entre um milhão de combinações possíveis. E no estilo de cada um, a “mão” da cozinheira.
 
O seriado Anos Luz (“Night Sky”, 2021) está com sua primeira temporada em streaming no Amazon Prime. Concebida e coordenada por Holden Miller, a série é uma agradável recombinação de temas antigos e recentes. Vou citar os que me vieram à mente enquanto assistia; outros espectadores, claro, terão lembrado de outras referências.
 
Way Station (1963) é um romance de Clifford D. Simak, um dos clássicos da FC de sua época. Nele, um fazendeiro solitário e discreto mantém num subsolo em sua fazenda um portal que dá acesso a outros planetas. Por esse portal trafegam criaturas de espécies diferentes, para as quais ele trabalha, servindo como uma espécie de hoteleiro, guia, quebrador-de-galhos. É uma “estação de trânsito”, como diz o título que o livro teve em português, para quem viaja pelo espaço.
 
Dark (2017-2020) é uma série de TV alemã, criada por Baran bo Odar e Jantje Friese. Numa cidadezinha alemã algumas pessoas descobrem portais subterrâneos que dão acesso a outras épocas, recentes ou remotas. Isso desencadeia fugas, crimes, tragédias, desaparecimentos, etc., e revela a existência de uma sociedade secreta de “guardiões” do segredo da viagem no tempo. Uma gente bastante implacável.
 
The Lost Room (2006, Canal Syfy), série de TV criada por Christopher Leone. Um quarto de motel, vítima de um evento físico inexplicável, é transportado para outro plano do espaço-tempo. Objetos associados a ele passam a produzir efeitos sobrenaturais e são buscados com avidez por colecionadores, pesquisadores e gangsters, que não hesitam diante de nada para obtê-los.
 
Elementos cruciais dessas três narrativas estão misturados em Night Sky, cuja história é centrada num casal setentão, J. K. Simmons (“Juno”, “Whiplash”) e Sissy Spacek (“Carrie, a Estranha”, “Missing”, “Coal Miner’s Daughter”), numa cidadezinha de Illinois. Os dois estão casados há uns 50 anos, perderam um filho único, têm uma neta. No primeiro episódio da série acompanhamos seu dia-a-dia carinhoso e às vezes áspero (por causa dele, principalmente), onde o maior medo parece ser a invalidez, ou o Alzheimer.


Num barracão nos fundos da casa ele encontraram anos atrás um bunker subterrâneo de onde é possível acessar uma espécie de mirante que dá para um planeta desconhecido. É o segredo deles. O “segredo”, como se vê, é de domínio público, no que diz respeito aos roteiristas e dramaturgos. Portais subterrâneos que proporcionam viagens no espaço ou no tempo não são mais propriedade intelectual de ninguém. E justamente por não sê-lo, não é neles que a história precisa se concentrar, a menos que disponha de uma super-idéia inovadora – o que é raro. O que interessa a quem escreve e a quem assiste é o reflexo daquilo na vida das pessoas ao redor.
 
Farnsworth, a cidadezinha onde tudo acontece, é um ambiente ideal para os autores desenrolarem sua trama, que tem de tudo: problemas conjugais de casal velho, problemas conjugais de casal jovem, relação entre filhos e pais, entre avós e netos, entre mãe solteira e filha única, entre ex-professores e ex-alunos... No meio da dinâmica inesgotável de tais situações, Night Sky constrói uma narrativa que avança a passos lentos.
 
Muitos críticos se queixaram do ritmo arrastado da série: eu achei uma bênção. As séries de FC atuais têm mais “Ação & Aventura” do que FC, e querem ganhar o público pelo excesso de efeitos, velocidade da narrativa, brutalidade das situações, espetacularidade dos desfechos. No primeiro episódio já ocorrem cinco assassinatos, quatro explosões, dois estupros, três perseguições de carro e uma sessão de tortura.
 
Night Sky não tem nada disso – nos oito episódios da primeira temporada, lembro de ter visto um assassinato e alguns tiroteios apenas. Há violência, tensão e ameaça, contudo: no avançar da história tomamos conhecimento de que, tal como em Dark, existe uma irmandade secreta, cruel, autoritária e impiedosa, monitorando quem viaja (e quem foge) através daqueles portais. Esses fugitivos são os “apóstatas”, que mesmo escapando para o outro lado do mundo sabem que podem ser alcançados cedo ou tarde por agentes vingadores – tal como ocorreu com Trotsky no México, Somoza no Paraguai ou Orlando Letelier nos EUA.  



 
A série tem o suspense necessário para atrair a atenção dos que gostam do melodrama de perseguição, mas é no troco miúdo dos desencontros cotidianos que ela ganha densidade e o ritmo arrastado fica imperceptível. Já observei que uma cena longa, parada, onde “nada acontece”, onde um personagem está apenas fumando um cigarro e olhando pela janela, ou duas pessoas estão em silêncio numa mesa de restaurante, ganha densidade se àquela altura a gente sabe quem são elas, o que sentem, o que pensam, e o que deve estar acontecendo na cabeça delas naquele instante. Quando o espectador não se interessa por isso, ou não desenvolveu esse tipo de “psicografia” (ficar adivinhando o que o personagem pensa), a cena não tem graça nenhuma. Cabe ao escritor/diretor evitar que isto aconteça.
 
Night Sky – que tem no Brasil o título de Anos Luz – deixou mais perguntas do que respostas no fim desta primeira temporada, o que é uma boa coisa. A base do seu “visgo” é sem dúvida o casal idoso de protagonistas, suas gentilezas, suas distâncias, seus carinhos, suas amarguras, suas cumplicidades ritualizadas ao longo dos anos e, ao longo dos episódios, as mentiras, os segredos, os fatos escondidos “para não magoar o outro”, “para não assustar o outro”.
 
Este último aspecto se reflete com mais força em um dos núcleos narrativos secundários, o das duas mulheres argentinas que cuidam de um dos portais secretos: a mãe, que sabe de tudo, e a filha de 15 anos, protegida do segredo, uma garota esperta, inquieta, revoltada com a solidão em que vive (a mãe a proíbe de ter amigos), revoltada com a quantidade de vezes em que ouve variantes de “você ainda não está pronta para saber a resposta”.  
 
Tal como em outra série que comentei aqui recentemente, Severance, a narrativa desta primeira temporada começa lenta, expositiva, desvelando pouco a pouco as complicações do enredo, e ganha uma acelerada nos três últimos episódios.
 
Dark, a série alemã, esticou-se demais, foi vítima do próprio sucesso e acabou emaranhando em excesso a própria narrativa (mesmo assim, merece ser vista). Já The Lost Room  tinha uma premissa e uma execução tão “davidlynchianas”, tão cheias de elementos surrealistas e bizarros, que nunca teve a chance de uma “temporada 2”, e parece que seus mistérios ficarão mistérios para sempre.
 
Resta torcer para que Anos Luz possa prosseguir em paz.