terça-feira, 30 de janeiro de 2024

5027) O Sol por Testemunha (30.1.2024)



 
Há filmes que eram muito famosos no tempo em que eu era cineclubista, em Campina Grande, mas tinha menos de 18 anos e não conseguia vê-los. Claro que de vez em quando dava um drible-de-corpo nos fiscais do Juizado de Menores, e foi assim que vi minha inesquecível Viridiana. Outras vezes, era vergonhosamente interpelado e mandado de volta para a Praça da Bandeira, onde ficava esperando a sessão terminar e os colegas mais velhos (ou mais sortudos) saírem pra contar o filme. 
 
Compus uma lista, com o título “Fichas Que Não Caíram”, e olhe, passou-se meio século e tem vários que ainda não assisti. 
 
Uma dessas fichas caiu agora, porque acabei vendo O Sol Por Testemunha (“Plein Soleil”, 1960), de René Clément. É de um romance de Patricia Highsmith, filmado mais de uma vez, a mais recente com Matt Damon e Jude Law nos papéis principais. São dois rapazes norte-americanos passeando pela Europa.  Jovens, bonitões, da mesma idade, do mesmo tipo físico, amigões de farras e de estrepolias – só que um é milionário, e o outro é pobre. 



(Maurice Ronet e Alain Delon)


A certa altura, o pobre mata o milionário, durante um passeio de barco, e passa a usar as roupas dele, ocupar os apartamentos dele, assinar os cheques dele, num jogo interessante de dupla identidade, porque a toda hora ele está cruzando com pessoas que conheciam os dois, e troca de identidade num piscar de olhos, conforme a necessidade do momento. 
 
Esse pobretão é Tom Ripley, que depois voltaria a ser protagonista de outras histórias de Patricia Highsmith. É um assassino frio e charmoso, um cara “com papo de derrubar avião”, pragmático, ligadíssimo, sedutor, e totalmente sem escrúpulos. 
 
Foi este papel que projetou Alain Delon como ator, porque ele parece ser exatamente isso que Tom Ripley é. Luchino Visconti, que nesse mesmo ano o colocou como personagem central em Rocco e Seus Irmãos (1960), dizia: “Esse rapaz é bonito demais para ser honesto”. E prova do talento de Delon é que seu personagem Rocco é ingênuo, bom filho, bom irmão, rapaz-de-bem, e chega a ser irritantemente altruísta. 
 
O maior spoiler com relação a O Sol Por Testemunha é a piada antiquíssima a respeito do título que o filme teria recebido em Portugal: O Cadáver Estava Embaixo do Barco. 



 
Em todo caso, um dos aspectos fascinantes do filme é o modo como ele faz o paralelismo entre dois caras que são praticamente a mesma pessoa, só que um tem muito dinheiro, e o outro não tem nenhum. O rapaz rico é Philippe Greenleaf (Maurice Ronet), e é um desses rapazes que nasceram nadando num mar de dinheiro, e cuja vida adulta é uma diversão permanente, porque o dinheiro abre todas as portas e fecha todas as bocas. 
 
Tom Ripley é aquele personagem tão conhecido aqui no Brasil: o rico que nasceu, por azar, no corpo de um pobre. É aquele cara que tem gosto e apetite para as boas coisas da vida (bons hotéis, boas mesas, bons vinhos, boas camas) mas não tem um centavo. Tanto não tem que o pai de Philippe lhe oferece 5 mil dólares para ir buscar o filho na Europa e trazê-lo de volta aos Estados Unidos, para assumir nos negócios da família. 


 
A dinâmica entre os dois personagens me lembrou muito outro filme que vi há pouco tempo: Aquele Que Sabe Viver (1962, de Dino Risi), com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, nos papéis do rico e do pobre, respectivamente. Neste caso, são dois rapazes que se conhecem por acaso e o rico (que vive numa atividade febril de festas, passeios, jantares, namoros, etc.) convida o pobre para curtir a vida durante um fim de semana. 
 
É um desses enganosos “filmes onde nada acontece” e onde coisas acontecem o tempo todo. Não há uma trama, não há isto que hoje chamam um “arco narrativo”. É uma espécie de road-movie, dois rapazes num carro esporte vagando pelas rodovias – indo visitar um amigo, uma turma, curtir uma festa, curtir uma praia. Um roteiro que hoje seria reprovado porque “falta conflito”, “falta jornada do herói”, “falta a pinça narrativa do segundo ato” ou coisa parecida. 
 
É interessante ver O Sol Por Testemunha e Aquele Que Sabe Viver lado a lado, pelas semelhanças e diferenças entre as duas duplas de amigos. Em Il Sorpasso, não existe o mesmo equilíbrio de personalidades em confronto. Bruno (Vittorio Gassman) não só é rico como é calejado, arguto, tem malícia. Roberto (Jean-Louis Trintignant) é tímido, livresco, ingênuo, e desde o primeiro momento deixa-se fascinar pelo outro, por sua esperteza, por sua alegria fácil, sua disposição para curtir a boa vida. 



(Jean-Louis Trintignant e Vittorio Gassman) 

 
O filme de Dino Risi tem o título italiano de Il Sorpasso, e o título é uma das melhores coisas do filme. “A Ultrapassagem”: algo que o personagem de Vittorio Gassman faz o tempo todo com seu carrinho sem capota, acelerando ao máximo, fazendo manobras arriscadas, colando no parachoque traseiro dos outros carros, infernizando seu juízo. “Quem está aqui sou EU!... Deixem-me passar!...” 



 
Hoje em dia, no submundo das celebridades eletrônicas, vemos uma versão radical disso. Pessoas que abrem caminho a poder de dinheiro e de desespero desejante. É o pessoal que “não pode perder” a festa que vai ter no dia 10 na Bahia, nem o jantar que vai ter no dia 12 em Paris, nem o aniversário de um amigão no dia 14 em Roma, e depois o show que vai fazer dia 17 no Rio, seguido pela gravação do clip dia 18 em Manaus. E depois tem o II Fyre Festival, numa ilha do Caribe... E por aí vai. 
 
Os que são artistas precisam enfiar suas datas de trabalho no meio dessa programação social intensa. Há outros que nem artistas são – apenas têm dinheiro, e sentem a angústia de saber que quando morrerem, mesmo aos 100 anos de idade, ainda deixarão algum dinheiro que não conseguiram gastar. 
 
Como o nosso “pleiba” mais emblemático, o autor-narrador das Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), que gasta dinheiro, gasta mocidade, namora, desnamora, borboleteia de projeto inacabado em projeto inacabado, e morre sozinho, certamente ainda com algum dinheiro que não gastou. Também Brás Cubas sentia em si o fogo ambicioso da juventude, como lembra de si mesmo no pós-morte: 
 
Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas. (Cap. XIV) 
 
Também Brás Cubas nasceu tendo à mão a varinha mágica do dinheiro de família, aparentemente inesgotável, como as bolsas de moedas das Mil e Uma Noites: 
 
Era meu o universo; mas, ai triste! Não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repreensão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também. Mas a tal extremo chegou o abuso, que ele restringiu um pouco as franquezas, depois mais, depois mais. Então recorri a minha mãe, e induzi-a a desviar alguma cousa, que me dava às escondidas. Era pouco; lancei mão de um recurso último: entrei a sacar sobre a herança de meu pai, a assinar obrigações, que devia resgatar um dia com usura. (Cap. XV) 
 
A ultrapassagem é a imagem típica desse tipo de rapaz que sempre consegue o que quer, e acha que basta querer uma coisa para ter direito a ela. Seu movimento instintivo é mesmo o de ultrapassar, de não deixar que os retardatários-sem-chance atrapalhem sua disparada rumo à vitória. Ele quer chegar primeiro, ou no mínimo chegar logo. É aquele sujeito que “não aceita um não como resposta”, que fura filas, que distribui “agrados” (gorjetas, propinas). Ele acha que o mundo lhe deve tudo que ele resolveu desejar. 




É curioso que este sentimento não seja exclusivo dos ricos. O Cobrador, de Rubem Fonseca, é o pé-rapado que, de arma em punho, resolve tomar na-marra tudo a que tem direito. Tudo que a “sociedade de consumo” lhe oferece via propaganda, e lhe nega via exclusão de classe. 
 
Esse impulso de velocidade, de impaciência social, faz desses jovens tanto as futuras lideranças, quando têm pedigree (têm “berço”), quanto os futuros exércitos de profissionais obcecados, quando (como Tom Ripley) são classe média e percebem diante de si um longo caminho a percorrer. 
 
Esse jogo febril de jovens se ultrapassando uns aos outros está presente também num dos meus contos preferidos de James Joyce, “After the Race” (Dublinenses, 1914), sobre uma turma de quatro ou cinco rapazes (uns de família muito rica, outros nem tanto) divertindo-se ao longo de um dia e uma noite, por ocasião de uma corrida de automóveis. Diz Joyce: “O movimento veloz pelo espaço produz uma sensação de euforia. O mesmo se dá com a celebridade; o mesmo se dá com a posse de muito dinheiro”. 
 
Nas últimas cenas de O Sol Por Testemunha, Tom Ripley está na praia, curtindo a fortuna recém-conquistada, e curtindo o suspense de se saber a um fio de linha do desmascaramento. A mulher do restaurante praieiro se aproxima, pergunta se quer uma comida, uma bebida... E ele, olhos semicerrados diante do sol: 
 
-- Me sirva o melhor. O melhor.