sábado, 1 de maio de 2021

4699) A arte de adorar o vazio (1.5.2021)


 
Franz Kafka conta em seus diários que durante uma viagem a passeio pela Europa, com seu amigo Max Brod, os dois foram a Paris e visitaram o Museu do Louvre. Essa visita ocorreu em setembro de 1911, e em agosto havia sido roubada do próprio Louvre a Mona Lisa de Leonardo da Vinci. O roubo estava em todos os jornais, todas as revistas, nas conversas de todos os cafés.
 
Em seu livro Kafka vai ao Cinema (Jorge Zahar Editor, 2005, trad. Vera Ribeiro), o ator e escritor Hans Zischler comenta:
 
Durante o passeio noturno por Munique, Kafka havia anotado a expressão dos “monumentos invisíveis” dos quais os mais significativos e de maior atualidade seriam agora objeto de “inspeção” em Paris. Como um panfleto de propaganda, o roubo da Mona Lisa, multiplamente refratado em imagens e notícias, já os tinha precedido. Uma vez em Paris, eles não perderam tempo em procurar o local do crime, para fitar, na companhia de muitos outros visitantes curiosos, o lugar vazio na parede do Louvre em que a celebridade estivera pendurada até 21 de agosto de 1911. Como o acontecimento sensacional era obviamente maior que o vexame, os diretores do Louvre exibiram aos visitantes, durante várias semanas, o “estigma infame” – a parede vazia. (p. 63-64).
 
Exibir num museu a parede onde um quadro não está mais pendurado é exibir um não-fato, uma não-obra, é explorar algo cuja presença seria tão significativa que sua mera ausência fica contaminada desse significado.
 
“Não está aqui, mas este é o lugar onde ela habitualmente fica,” parece desculpar-se o Museu. O espaço vazio também parece corresponder a uma atitude de esperança, de confiança em que a preciosidade será trazida de volta para casa. Colocar ali outro quadro pareceria uma confissão antecipada de derrota.



Mesmo se viesse a se confirmar (o que não aconteceu) que o quadro fora destruído, eu, se fosse diretor do Museu, deixaria o espaço em branco, para sempre. Não colocaria ali outro quadro, por mais ilustre que fosse. Aquele espaço era de “alguém” que não existe mais. “Alguém” único, insubstituível. E durante anos as pessoas parariam por um minuto diante daquele trecho de parede, e comentariam: “Era aqui que ela ficava”.
 
Times de futebol, basquete etc. fazem algo parecido, quando “aposentam” um número de camisa que foi durante anos usado por um jogador importante, com grande identificação com um clube. Aquele número deixa de existir. Sua ausência conta uma história.



(Malevitch, "White on white")
 
A ausência da Mona Lisa no museu é uma ausência radical. Não deve ser confundida com ausências-presentes como o quadro de Malevitch Branco Sobre Branco (1918), a série de White Paintings e Black Paintings de Robert Rauschenberg nos anos 1950, ou com a peça de John Cage 4’33”, que consiste em quatro minutos e 33 segundos de silêncio. Em tais peças (que escandalizaram muitos críticos), existe a superposição de camadas de tinta, de um lado, e no caso da música a peça consiste, na verdade, em todos os sons produzidos na sala de concerto com a mera presença imóvel dos músicos e dos espectadores.
 
Se admiramos o local de onde um objeto ilustre foi retirado, por que não admiraríamos um objeto onde uma falsa-ausência (a cor branca) foi deliberadamente aplicada? E não o foi por acaso ou desfastio, mas para chancelar uma intenção artística.


(Museu da Cidade de Brasilia)
 
Uma ausência pode ser significativa. O escritor de ficção científica Frederik Pohl veio ao Brasil em 1969 participar de um simpósio de FC, e aproveitou para conhecer Brasília, que era então uma menininha-de-tranças. Diz ele, em suas memórias (The Way the Future Was, 1978):
 
Brasília é uma estranha cidade futurista no planalto. É o único lugar onde já fui em que os guias turísticos apontam um cruzamento e lhe dizem, não o que aconteceu ali em 1066, mas o que vai acontecer no próximo ano. Existe lá um impressionante edifício chamado Museu da História de Brasília. Está vazio.
 
É uma ausência presente, “prenhe” de intenções, de significados.


 
Um dos episódios mais interessantes e mais citados nas aventuras de Sherlock Holmes ocorre no conto “The Adventure of the Silver Blaze” (1892), sobre o desaparecimento de um cavalo campeão das corridas de turfe. Holmes e Watson vão ao local, um haras numa região afastada e meio deserta, interrogam o dono, os funcionários do estábulo, alguns moradores da região.
 
O inspetor Gregory, da Scotland Yard, encarregado do caso, vai trocar idéias com o detetive, e ao final lhe pergunta:
 
– Existe algum outro ponto para o qual o sr. queira chamar minha atenção?
 
– O curioso incidente do cão, durante a noite.
 
– O cão não fez nada durante a noite.
 
– É este o curioso incidente.
 
É um não-fato que está ali como um indício de outro fato, do que realmente aconteceu. Por que o cão não latiu durante a noite? Ora, porque a pessoa que tirou o cavalo do estábulo era uma pessoa conhecida, a cuja presença o cão estava acostumado. Pela ausência do latido, Holmes interpretou corretamente o “curioso incidente”.
 
Muitas figuras de linguagem, como a elipse e o anacoluto, dependem da ausência de algo, uma ausência que num primeiro momento cria um vazio, mas esse vazio é preenchido pelo leitor. O autor deixa um espaço aberto para que o leitor coloque por sua conta a peça que está faltando, ou mude a direção de seu pensamento. É um vazio significativo.


Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Blixen) tem um conto intitulado “The Blank Page” (Last Tales, 1957). Nele, fala-se de um convento de monjas carmelitas, em Portugal, onde elas cultivam, fiam e tecem o linho, e com ele produzem lençóis muito valorizados. Quando acontecem núpcias entre as casas da nobreza daquela região, é um lençol de linho das monjas que forra a cama dos nubentes. Na manhã seguinte à noite de núpcias, um quadrado de linho do lençol, com a respectiva mancha ensanguentada, é recortado pela família, posto numa moldura e enviado ao convento, para ser exposto numa longa galeria de quadros semelhantes.
 
Cada moldura é identificada por um cartão contendo nomes e datas: "Donna Christina, Donna Ines, Donna Jacintha Lenora, Donna Maria..." 

E bem no meio da galeria vê-se uma moldura igual a todas, contendo um quadrado de linho igual a todos. Mas o cartão com o nome da princesa está em branco, e no linho não existe mancha alguma.
 
Uma página em branco também pode estar contando uma história, diz a narradora.