sexta-feira, 7 de março de 2008

0007) A música invisível (30.03.2003)




Assisti há pouco ao primeiro corte (primeira montagem, provisória) do longa-metragem A pessoa é para o que nasce, de Roberto Berliner, onde ele expande o seu curta homônimo, premiado em vários festivais. 

O filme, que acompanha os anos mais recentes na vida das três ceguinhas cantadoras de Campina Grande, tem belas imagens, e depoimentos hilários ou comoventes; mas sendo uma obra ainda em processo, não é dele que vou falar, e sim das suas personagens.

Vejo as ceguinhas cantarem nas ruas de Campina desde que me entendo por gente. Na feira, na Maciel Pinheiro, na calçada da Catedral ou da Livraria Pedrosa, ali estavam elas, desfiando suas cantigas e sacudindo seus ganzás. 

De uma hora para outra, eis que as ceguinhas são convidadas para se apresentar no PercPan, o festival internacional de música percussiva que Gilberto Gil e Naná Vasconcelos organizam em Salvador e São Paulo. Um espaço disputadíssimo, onde o Brasil inteiro gostaria de aparecer. E de repente, quem consegue entrar lá? As ceguinhas!

“Não são artistas,” dizia alguém inconformado, “são mendigas!...” Para nossas cantoras de classe média, ser artista é uma opção. Para as ceguinhas, mendigar e cantar são as duas faces de uma mesma fatalidade, que não lhes deixou escolha. 

No mundo em que cresceram, não havia “políticas governamentais para aproveitar deficientes visuais no mercado de trabalho”. Tiveram que pedir na rua, e descobriram, como outros vêm descobrindo há milênios, que pedir esmolas dá mais lucro quando quem pede consegue dar algo em troca. 

Um mendigo que arranha uma rabeca tem mais chance de ganhar uns reais do que outro que apenas exibe suas escrófulas. 

Pagando ao ceguinho que canta, recompensamos um talento que não possuímos, e uma altivez que admiramos.

As ceguinhas são um exemplo da Música Invisível Brasileira, uma música que ninguém vê na TV, nas revistas, nos jornais, no cinema, mas que se ouve sem parar, dia e noite, em nossas feiras, nossas ruas, nossas praias, nossas praças, nossas rodoviárias. 

É gente sem nome e sem rosto fazendo uma música sem dono e sem fim. São os congos, as marujadas, os emboladores, as cirandas, os forrós, os pagodes feitos por gente que ganha uma merreca pela sua arte, e muitas vezes nem isto. É um rumor surdo e profundo que pode se ouvir a qualquer hora, em qualquer parte do Brasil.

Com alguns desses artistas ocorre o que ocorreu com Maroca (ou "Lia"), Poroca e Indaiá: são descobertos por alguém, conhecem um breve período de visibilidade à luz dos holofotes e das câmeras, e depois retornam para o oceano primordial de onde emergiram. 

A arte que produzem é aprendida, recomposta e refinada por artistas de têmpera mais rija, mais preparados para a guerra sem quartel que é o show business. E se perpetua. 

Quando Gil e Naná prestam homenagem às ceguinhas no palco do PercPan, o que temos ali é a gasolina-de-avião pedindo a bênção ao petróleo bruto de onde foi extraída.










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