sexta-feira, 15 de maio de 2015

3815) "Os Outros" (16.5.2015)



Estou coordenando, para a Escola de Cinema Darcy Ribeiro (Rio de Janeiro) uma Mostra do Cinema Fantástico, com filmes todos os sábados às 14 horas, entrada franca. A escola fica na esquina da Rua 1º. de Março com Rua da Alfândega, pertinho do CCBB. (Após a sessão, neste sábado, haverá debate com o prof. Sérgio Almeida.)

Hoje, sábado 16, será exibido Os Outros(“The Others”, 2001), de Alejandro Amenábar, o mesmo diretor de outro curioso filme fantástico, Abre los Ojos (1997), depois refilmado nos EUA como Vanilla Sky (de Cameron Crowe).

As histórias de casas mal assombradas não devem ser uma exclusividade nossa. Acho que toda cultura, em geral, examina a hipótese da sobrevivência da alma humana após a morte. Uma primeira divisão, portanto, seria entre as culturas que não admitem nenhuma forma de vida após a morte (morreu, acabou) e as que a acham possível. Entre estas, haveria uma segunda divisão, entre as que acham que a alma vai embora para sempre, cumprir seu destino espiritual, e as que acham que a alma pode voltar em algumas circunstâncias, ou é por algum motivo impedida de abandonar seu ambiente físico.

É no meio desta última crença que podemos situar a origem das histórias de casas assombradas, porque na esmagadora maioria destas histórias a assombração consiste em variadas formas de resíduo espiritual de pessoas que viveram ou morreram ali, ou que de alguma forma ficaram presas àquele espaço.

Eu sou dos que não acreditam em nada disso, embora me disponha a mudar de opinião no dia em que eu vir alguma coisa convincente. (Sou um cientista. Cientista não discute com fatos. O problema é que certos tipos de fato só acontecem com quem não é cientista.) As histórias de casas assombradas são, para mim, metáforas da mente humana. Aquela casa é um crânio, um cérebro. É lá dentro que estão aparecendo coisas que se recusam a morrer, a ir embora.

Os Outros (The Others) é um filme tenso, primorosamente fotografado, e que usa os espaços internos da casa como o principal vetor de inquietação para o personagem, a câmera, o espectador; uma lição de clássicos como Os Inocentes (1961) de Jack Clayton ou Desafio ao Além (1963) de Robert Wise. A “casa nova onde a família vai morar” é um espaço hostil, misterioso, cheio de ameaças. Quando a câmera se põe em movimento por dentro dela, basta isso para produzir o aperto no peito. É um filme de suspense sobrenatural com uma reviravolta final do tipo puxada-de-tapete. Como se alguém estivesse avisando, aos céticos que duvidam dos fantasmas: “Os vivos precisam aceitar que os mortos estão entre nós, e aprender a conviver com eles”.





3814) Ser professor (15.5.2015)



Uma lojinha estreita, de uma porta só; uma tenda. Não a tenda “barraca de acampamento”, mas a tenda que é um quartinho instalado no rés-do-chão de um sobrado ou de um edifício de poucos andares sem elevador. Um pé-de-escada espaçoso e com pouca circulação de gente.  Em certa década, um rapaz de bigode preto começou a usar aquele espaço para prestar pequenos serviços de consertador de alguma coisa: sapatos, relógios, motocicletas, tudo que na vida humana precisa de manutenção e reparos. O mundo pisca um olho, e anos depois quem atende ali já é um velho de barba branca.

Ser professor é um pouco assim. (Claro que tem o outro lado, o rosto solar, a faceta operística, o viés peroratório do magistério. Quem não gosta de auditório cheio? Duzentos clientes, todos precisando de pelo menos meio ponto!) Mas tem o lado lunar do professorado, que é justamente o que na minha utopia (este é um conto de ficção especulativa) eu chamo o “professor de tenda”.

A tenda pode ser em qualquer canto. Centro da cidade, ou transversal da avenida principal do bairro. Ele está ali sentado, às três da tarde, botando meia sola num calçado qualquer, quando chega um casal de alunos, ele indica uns tamboretes, os dois sentam. Precisam fazer um trabalho, o assunto é tal e tal. O mestre escuta, a boca segurando os pregos que os dedos recolhem de um em um, enquanto ele martela a sandália feminina em decúbito. No último prego ele pigarreia, manda gravar, pronuncia meia dúzia de títulos, números especiais de revistas, edições específicas. Dá o email para acompanhamento da consulta. Erguem-se todos, ele busca a maquininha, a moça passa o cartão, guarda o recibo – hesita – sorri – tira um livro da bolsa: “O senhor podia assinar pra mim?”.  “Claro,” diz ele, abre o livro devagar, dá uma risada: “Você é como eu, não é? Lê sublinhando.”

Na parede desse professor há um quadro-negro tipo tabela, com a lista dos serviços, e a lista dos preços, que nunca sobem mais do que o necessário. Um metalinguístico calendário-de-oficina com Rose di Primo no auge. Um cartaz (original) de filme, renovado toda segunda-feira. Há um espelho com uma foto recente dele pregada bem no centro. Um alvará caligrafado por Steinberg. Um termômetro e um barômetro solidariamente lado a lado. Uma vitrine (o casal quase não se desgruda dali) com alguns manuscritos dele, e primeiras edições.  Uma telona digital, ladrilhada em quatro: noticiário via cabo, browser, canal Classimovies e uma fractal em loop, bem repousante. Um assum preto digital cantando preso noutra telinha. O diploma de professor emoldurado. A flâmula com o escudo do meu time do coração.