No Romance da Pedra do Reino, Ariano Suassuna faz um dos seus personagens referir-se aos povos nórdicos e anglo-saxônicos em geral como “a Besta Loura Calibã”, a civilização puritana e mercantilista que tudo quantifica e tudo controla, e que pretende estender seu modo de ver o mundo sobre “os povos morenos, criados ao Sol”. Esta visão, que Suassuna retomou e atualizou em textos mais recentes (a “Pedra do Reino” é de 1971), contrapõe o capitalismo financeiro, industrial e bélico da América do Norte e da Europa às culturas consideradas mais primitivas da África, da Ásia e da América Latina.
Os acontecimentos dos últimos anos, contudo, me levam a imaginar uma contrapartida para essa criatura mítica. A Besta Loura Calibã está disposta, a julgar pelos seus rugidos mais recentes, a estender seu domínio sobre o mapa-mundi inteiro, mas agora tem que se defrontar com um clone de si própria, se não em poderio e em fisionomia, pelo menos em espírito. Há trocadilhos que a mente humana se recusa a evitar; eu chamaria a esta segunda criatura “a Besta Moura Talibã”.
Ela é o oposto simétrico, no mundo árabe, do Puritano nórdico. É o Fundamentalista oriental, que mata e morre para propagar seu credo. Devemos temer esta criatura tanto quanto tememos os Falcões de Washington – Bush, Rumsfeld, Paul Wolfowitz, Dick Cheney. Ou até mais, porque são também líderes espirituais, e no mundo existe muito mais gente interessada em religião do que em política.
Puritanismo Louro e Fundamentalismo Mouro são diferentes em suas origens, mas partilham a mesma neurose, o mesmo núcleo de fanatismo, de rigidez mental, de recusa a imaginar o Outro, o Diferente. Observar os dois me lembra uma frase do General Golbery, de agourenta memória. Dizia ele que a linha da política tradicional, Esquerda-Centro-Direita, não se assemelha a uma reta, e sim a uma ferradura: a extrema esquerda e a extrema direita estão mais próximas uma da outra do que do centro. Faz sentido, no presente caso, quando vemos a Al-Qaeda derrubando as torres gêmeas de Nova York, e o exército norte-americano devastando o Afeganistão e o Iraque.
Saddam Hussein, contudo, não é um representante da Besta Moura Talibã. Apesar de árabe, não é um fundamentalista religioso, pelo contrário. Está muito mais próximo do perfil dos ditadores soviéticos e latino-americanos (palácios, orgias, sadismo, expurgos partidários), e neste sentido é um sub-produto do capitalismo ocidental. É, como dizemos na Paraíba, um capanga que enricou e quis se meter a cavalo-do-cão. Os verdadeiros representantes da Besta fundamentalista são os aiatolás que ordenaram a morte do escritor Salman Rushdie por ter criado um personagem que disse frases ofensivas ao Profeta. São os Talibãs que impuseram ao Afeganistão uma tirania medieval. São os fanáticos sinceros como Bin Laden ou o mulá Omar – os mais perigosos, porque se acham moralmente superiores, e acreditam que o que querem impor ao mundo é o Bem.
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