sexta-feira, 30 de abril de 2010

1981) Fantasia Cartesiana (15.7.2009)




(René Descartes)
 

A abreviatura tradicional para “science fiction” é SF. Indico de saída o termo inglês porque foi nos EUA que essa literatura, antes dispersa em obras individuais, transformou-se, por força do ímpeto comercializador dos norte-americanos, em gênero literário. 

É bem verdade que na Grã-Bretanha usava-se o termo “scientific romance” para designar obras como as de Julio Verne, H. G. Wells e outros. Mas o que colou, pra variar, foi o termo norte-americano, que aqui em português acabamos traduzindo como “ficção científica”. 

Este termo, aliás, traduz a rigor a expressão parecida “scientific fiction”. “Ficção ciência” seria a tradução mais ao pé da letra. Uma palavra bem mais rica de conotações seria a designação italiana para o gênero: “fantascienza”, que em português daria “fantasciência”, fazendo uma correta alusão ao elemento de fantástico ou de fantasia que permeia o gênero. 

Em alemão existe um termo igualmente adequado do ponto de vista semântico: “Wissenschaftlich-phantastische Erzählung”, ou “narrativa científico-fantástica”. Mas quem seria capaz de utilizar um semelhante escolopendro na linguagem cotidiana? Usa-se a siglazinha FC, e estamos conversados. 

Assim como serve para designar “ficção científica”, FC serviria também para indicar um outro rótulo igualmente aplicável ao gênero: Fantasia Cartesiana. Não imagino que este termo venha a suplantar o já consagrado, mas como alusão à ciência moderna ele me parece insuperável. 

Poderíamos dizer, para justificá-lo, que o lema da Fantasia Cartesiana é: “Penso, logo existe”. Se eu penso em alguma coisa, ela torna-se real no plano do pensamento. Os pensamentos que ocorrem numa mente humana são tão reais quando os objetos físicos – eis um postulado capaz de ser aprovado tanto pelos Materialistas Empedernidos quando pelos Idealistas Radicais. 

Tudo que se passa em nossa mente atinge um nível inicial de realidade; se é registrado por algum meio de expressão (fala, escrita, representação visual), sobe a um patamar mais alto de realidade; se é captado por outras consciências e se propaga, atinge um patamar mais alto ainda. Torna-se mais real. Existe com mais intensidade. 

Além do mais, lembremo-nos de que foi Descartes quem concebeu a arte de, com um eixo de coordenadas numéricas (as famosas “ordenadas” e “abscissas”), criar uma equivalência entre grandezas aritméticas e formas geométricas – entre o digital e o analógico, portanto. (Ver artigo “A cruz de Descartes”, 5.11.2003.) 

Uma equação do 1o. grau é uma linha reta; uma de 2o. grau é uma parábola. Cada intersecção entre um “x” e uma “função de x” determina um ponto que se torna um átomo de uma imagem. Podemos gerar imagens a partir de dados numéricos, e vice-versa. 

A Fantasia Cartesiana homenageia aquele que, sem o prever, criou a base para a Computação Gráfica, os efeitos especiais e a arte eletrônica. Ele pensou. E agora, algo existe.







1980) A praga do PPS (14.7.2009)



Não se passa um dia sem que eu receba um spam em forma de arquivo PPS (que imagino significar Power Point System ou coisa parecida). O Power Point é um programa do Windows que produz aquilo que antigamente chamávamos de “projeção de slides” – uma sucessão de imagens fixas e de textos, com ou sem acompanhamento de áudio. Um recurso que o programa torna facílimo produzir. Daí que nossas caixas de mensagens amanheçam todos os dias entupidas por PPSs de todos os tipos.

Não vou dizer que não olho. Olho de vez em quando, e com proveito. PPSs com fotos da natureza, de paisagens, de arquitetura e imagens deste ou daquele país, etc., costumam ser de uma beleza surpreendente. Imagino que o pessoal captura isso de saites como National Geographic. Prefiro aqueles que vêm sem trilha sonora, a qual costuma ser com melosos violinos, pianos dietéticos ou gravações padronizadas de folclores locais. Os PPSs de mensagem cristã eu pulo por cima; afinal já li e assimilei a Bíblia (embora ainda esteja atrasado nos Apócrifos). Os PPSs de mulheres peladas têm qualidade variável, mas se existe uma coisa fácil de obter hoje em dia na Internet é foto de mulher pelada. É mais rápido do que ver que horas são.

Um recurso que me irrita sempre é o fato de que o programa dá ao usuário diversas opções sobre a maneira como o texto vai ser adicionado. Em vez de simplesmente aparecer a foto e depois, sobre ela ou ao lado dela, aparecer o texto correspondente, criou-se um mecanismo teratológico que trata o texto como se as linhas fossem serpentinas e as letras confetes. Aparece uma foto interessante, mas o texto que a explica surge como se o computador estivesse bêbado. Uma linha desliza horizontalmente da direita para a esquerda, a linha seguinte faz o mesmo da esquerda para a direita... Ler uma coisa assim é um suplício.

Pior ainda é quando o engraçadinho faz com que as letras venham caindo de uma em uma do alto e se encaixando em suas posições. Quem faz isso lê pouco, ou lê “assoletrando”. Não perceberam que ninguém lê palavras letra-a-letra. Reconhecemos a forma inteira da palavra, quando já a conhecemos, sem atentar para os detalhes. É por isto que cometemos tantos erros ortográficos, porque não damos atenção ao detalhe, e sim ao conjunto. É por isto que também circulam por aí outras mensagens provando que podemos ler um texto em que as palavras estão escritas com erros, desde que se mantenham iguais a primeira e a última letra. Difereçnas peqeunas são ignroadas durnate a leitrua; as palarvas são reconecihdas pelo seu fomrato e pela probablidade estatítica de frequêcnia das letars.

Meu conselho à galera do PPS: deixem o leitor ler em paz. Não obriguem as letras a fazerem rodopios, piruetas, cambalhotas. Isto incomoda a vista, atrapalha a concentração... Equivale a telefonar para alguém junto de um liquidificador ligado. A menos que seja PPS de mulher pelada. Nesse caso, tanto faz, ninguém vai ler mesmo.

1979) O país dos espiões (12.7.2009)



(William Gibson)

Em seu recente Spook Country, William Gibson produz um curioso romance de espionagem que “The New York Times Book Review” chamou de “o primeiro exemplo do romance pós-11 de setembro, cujos personagens estão cansados de serem empurrados para lá e para cá por forças maiores do que eles – a Burocracia, a História, e, sempre, a Tecnologia – e finalmente decidiram-se a enfrentá-las”. Chamar o livro de Gibson de “thriller” seria forçar um pouco a barra, porque um thriller é por definição um livro que visa produzir emoções fortes, e Gibson afasta-se mais disso a cada livro que publica. Seu estilo é lúcido, contemplativo, e mesmo quando descreve intensa ação física, como uma perseguição, uma tentativa de atropelamento, uma briga, ele verbaliza as coisas de tal modo que o leitor sente estar tendo acesso a uma descrição analítica de um fato, e não à ilusão do fato propriamente dito.

Spook Country conta a minuciosa preparação de algo que imaginamos ser um atentado terrorista, ou um assalto de grande porte, ou um crime político... Vemos os preparativos, mas os vemos através dos olhos de personagens que no livro são protagonistas, mas não passam de meros figurantes no fato. Eles entendem as coisas fragmentadamente, com avanços e recuos, dúvidas e surpresas... Aos poucos vão montando o quebra-cabeças; e nós também.

A certa altura, um dos personagens de Gibson diz: “Uma nação consiste em suas leis. Uma nação não consiste em sua situação num dado momento. Se a moral de um indivíduo é uma moral situacional, este indivíduo não possui uma moral. Se as leis de uma nação são leis situacionais, essa nação não possui leis, e dentro em pouco deixará de ser uma nação. (...) Será que vocês estão tão apavorados com os terroristas que estão dispostos a destruir as estruturas que fizeram da América o que ela é? (...) Se for assim, estarão permitindo que os terroristas vençam. Porque esse é exatamente o seu objetivo, seu único e específico objetivo: amedrontar vocês até fazê-los abrir mão de suas leis. É por isto que são chamados terroristas. Eles usam ameaças aterrorizantes para fazer com que vocês degradem sua própria sociedade. (...) E tudo se baseia no mesmo defeito da psicologia humana que faz as pessoas acreditarem que podem ganhar na loteria. Estatisticamente, quase ninguém ganha na loteria. Estatisticamente, ataques terroristas quase nunca acontecem”.

Desde que Gibson inventou o conceito literário de ciberespaço e fundou o movimento “cyberpunk” sua literatura mudou enormemente, embora em essência permaneça a mesma. Seu estilo tornou-se mais límpido; perto de Spook Country, um livro como Neuromancer é um delírio surreal. Seu tema básico – humanismo vs. alta tecnologia – continua a perpassar tudo que escreve. Vinte e cinco anos após sua estréia em livro, o humanismo está descendo aos Infernos, e a tecnologia subindo ao Paraíso. Gibson tem a ubiquidade de espírito necessária para documentar os dois.

1978) Os jogos simétricos (11.7.2009)



Não deve ter escapado à maioria dos torcedores a curiosa simetria de resultados nos dois jogos da semana passada, realizados em Porto Alegre. Na quarta-feira, o Internacional recebeu o Corinthians para decidir o título da Copa do Brasil. Na quinta, o Grêmio recebeu o Cruzeiro, na decisão da semifinal da Copa Libertadores da América. Os dois times gaúchos estavam em desvantagem, pois ambos tinham perdido o primeiro jogo para seus adversários por dois gols de diferença: o Corinthians vencera em São Paulo por 2x0, e o Cruzeiro vencera o jogo de Belo Horizonte por 3x1. Mesmo assim, tanto os colorados quanto os gremistas tinham esperanças justificadas, pois bastaria vencerem por 2x0 (no caso do Grêmio) ou por 3x1 (no caso do Inter) para ganharem a disputa. Resultado normais em jogos entre equipes equivalentes.

Na quarta-feira, no entanto, o Corinthians desmantelou as esperanças do Inter logo no primeiro tempo, quando marcou dois gols e aumentou sua vantagem acumulada nos dois jogos para 5x1. Mesmo sendo um dos melhores times brasileiros do momento (na minha opinião), o Inter não tinha como tirar uma diferença tão grande em 45 minutos, enfrentando um time tão bom quanto o seu. Ainda assim, conseguiu fazer dois gols no segundo tempo. O jogo acabou 2x2, e o Corinthians foi campeão com o placar acumulado de 5x3.

Imagino as gozações que os torcedores do Grêmio fizeram durante o dia seguinte, zoando dos derrotados e esperando a noite, quando teriam a chance de ganhar do Cruzeiro e completar a festa. Quando a bola rolou, parecia um VT do jogo da véspera. O time visitante, que já entrara em campo com vantagem de dois gols, fez mais dois no primeiro tempo e foi para o intervalo com vantagem de quatro. O Grêmio, abatido, jogou no segundo tempo sem muita esperança de vitória, apenas para honrar a camisa. Fez dois gols; empatou o jogo em 2x2, mas saiu tão derrotado quanto saíra o Inter na véspera.

É muito raro que duas partidas importantes, na mesma cidade, em dias consecutivos, envolvendo dois times rivais, tenham uma marcha do placar absolutamente idêntica. Até mesmo no detalhe de que o último gol de cada jogo foi marcado aos 30 minutos, o que daria tempo, teoricamente, para que o time em desvantagem fizesse, nos quinze minutos que restavam, os 3 gols de que precisava para vencer a disputa. Não aconteceu, claro. Os visitantes souberam administrar a vantagem que tinham. Corinthians e Cruzeiro ganharam com méritos, principalmente o primeiro, considerando-se que o time do Inter é muito superior ao do Grêmio.

Jung falava em sincronicidades – coincidências significativas e inexplicáveis. Mais do que isso, no entanto, às vezes me parece que a vida é um poema rimado. Simetrias improváveis aparecem quando menos se espera, e nos dão a impressão de que vimos a repetição de um padrão, de um ornato, a justaposição de duas coisas que alguém tornou iguais porque isso lhe dava algum tipo de prazer estético.

1977) Michael Jackson (10.7.2009)



Me deixem correr aqui o restinho de tinta que sobrou para falar desse personagem. MJ surgiu para mim como um neguinho de cabelo bombril, cantando, no Jackson Five, uma açucarada canção de amor, “Ben”, que fez sucesso enorme nos anos 1970 e foi sua primeira música a atingir o #1 da “Billboard”. O que ninguém sabe é quem era Ben. Não, não era um menininho impúbere. Ben era um rato inteligente. Ele se comunicava meio telepaticamente com Willard, um garoto esquisitão cuja mãe viúva era maltratada pelo dono da casa onde viviam, a tal ponto que o garoto e o rato, agora comandando um exército deles, desencadeiam uma horripilante vingança sobre o vilão, interpretado por Ernest Borgnine.

Willard (1971), dirigido por Daniel Mann, foi um sucesso de bilheteria tão estrondoso que logo veio uma continuação, Ben (1972), dirigido por Phil Karlson. Este segundo filme lançou a canção interpretada por Jackson (composta por Walter Scharf e Don Black). Vejam só: um menino antissocial e vingativo, cujo melhor amigo (ousarei dizer “cujo único amor”?) é um rato assassino, a quem ele dedica essa canção... Fico imaginando as dezenas de vezes em que Jackson, com 14 anos, viu e reviu os filmes que lhe deram seu primeiro grande sucesso, e as cenas em que os ratos, comandados por Willard & Ben, devoravam vivo o adulto cruel que os perseguia.

A vida de Jackson foi uma mistura de tudo isso: filme B de terror, palco de megashow, barraco-de-família-pobre. Ele era frágil, temperamental e histérico, como aqueles “castrati” de ópera do século 18, produzidos pela indústria do sucesso a qualquer custo. Virou um perverso polimorfo, que menos explorou do que foi explorado. Era tão pouco pedófilo quanto Lewis Carroll.

Sentia-se um Deus e um Monstro. A imprensa diz que ele comprou o esqueleto de J. Merrick, o “Homem Elefante”, por um milhão de dólares. Jackson negava, mas dizia: “Eu gosto da história do Homem Elefante. Ele parece muito comigo, e eu consigo entendê-lo. Essa história me fez chorar, porque eu me vi refletido nela, mas não, nunca tentei comprar nada... Onde iria pôr aqueles ossos? E para quê iria querer ossos?”.

Jackson tentou fazer em seu próprio rosto aquele “morph” que transformava umas pessoas em outras no seu clip “Black and White”. Foi um dos primeiros a tentar manipular a própria carne e o próprio osso como se fossem pixels, grãos de luz digital. Devia considerar sua imagem mais real do que seu corpo. Era um ser artificial num corpo biológico, algo que os EUA têm produzido em série, como seu contemporâneo Ronald Reagan, um canastrão obtuso que exerceu a Presidência dos EUA como se interpretasse um papel a mais em mais um filme, decorando textos e obedecendo instruções da equipe. Jackson fazia o mesmo, só que era um menino violentado, ressentido, afetado e talentoso, capaz de se apaixonar por um rato. Parecia-se mais com sua estátua no Museu de Cera de Madame Tussaud do que com uma pessoa.

1976) Literatura online (9.7.2009)



Num artigo recente, Steve Johnson imagina que a evolução da literatura online não vai mexer apenas com os modos de comercialização, mas principalmente com o que poderíamos chamar de “nuvem de leitura” em torno de um livro. Chamo de nuvem de leitura aquele agregado difuso de leitores, críticos, estudiosos, etc., que se aglomeram em torno de uma obra, produzindo desdobramentos dela sob formas, que vão desde as mais sofisticadas, como os ensaios acadêmicos, até as mais superficiais, como os comentários de mesa de bar ou de festas (“estou lendo um livro muito interessante, fala de tal ou tal coisa...”) Esse agregado de informações cerca qualquer livro. A nuvem de leitura em torno de best-sellers como Código da Vinci ou de clássicos como Dom Quixote seria, se transformada em texto, algo da ordem de alguns gigabytes. É nesse sentido que Osman Lins afirmava que a Divina Comédia consistia nos três livros escritos por Dante Alighieri e em todos os textos decorrentes deles: todas as análises, traduções, interpretações, etc.

Johnson acha que a fartura de informação e a velocidade de acesso contribuem para dispersar nossa atenção. “Iremos ler os livros”, supõe ele, “cada vez mais do modo como lemos jornais e revistas: um pedacinho aqui, outro pedacinho ali”. Concordo, porque minha apreciação do cinema tem sofrido, por causa da TV a cabo, esse mesmo tipo de mutação. Antigamente, para mim era ponto de honra ver um filme do começo ao fim. Nunca saí no meio de uma sessão, por pior que fosse o filme. Hoje em dia, isso foi para o espaço. Vejo filmes assim, um pedaço hoje, outro pedaço daqui a um mês. Os filmes se repetem muito na TV a cabo. Há filmes dos quais já vi 3 ou 4 vezes as partes do meio, sem nunca ter visto o começo ou o fim. E acho isso normal.

O mesmo deve se dar com as pessoas que não têm muita paciência para ler um livro inteiro. Lêem qualquer livro como eu li o Ulisses: somente as partes que me despertaram a atenção. O resto eu pulei. Uma tendência assim, quando se generaliza, acaba produzindo uma cultura fragmentária, em que todo mundo entende um pouquinho de tudo mas não conhece nada a fundo. Pode ser uma desvantagem, pois estará se criando uma população de cultura superficial. Por outro lado, isto abre a possibilidade de existência de um ambiente de gente mais ou menos bem informada, no qual os especialistas podem vir a ser vistos com respeito: primeiro, porque serão raros; segundo, porque haverá (mais do que hoje) um grande número de pessoas parcialmente informadas e capazes de constituir um público leitor para ele.

Essa democratização superficial da cultura pode ser benéfica. Não no sentido de produzir mais escritores, e sim mais leitores; não de mais conferencistas especializados, mas de maiores platéias em condições de ouvi-los. Intelectuais precisam de pessoas que, sem deter a mesma massa de conhecimentos, sejam capazes de se interessar pelos conhecimentos que eles detêm.