domingo, 23 de outubro de 2011

2695) O pintor de portas (23.10.2011)




Surgiu em nossa cidade um pintor especializado em portas. Cobrava muito caro, mas mesmo assim os candidatos a cliente faziam fila. Deixavam no escritório do “marchand” um documento contendo descrição e foto dos membros da família, e um texto de vinte linhas dizendo por que motivo queriam o quadro. Quando o artista escolhia a família, ela tinha que hospedá-lo durante o tempo necessário para que ele se familiarizasse com a casa, escolhesse o aposento e a parede, e pintasse ali a porta. 

Na casa do advogado Hrabel ele pintou no corredor uma porta feita de água verde do mar, um retângulo trêmulo e salgado onde se via às vezes passar como uma flecha um peixe arisco, ou flutuar uma água-viva. 

Na casa da família Yssahid, pintou na sala de jantar uma porta de carvalho maciço, coberto de musgo, com uma pesada aldraba de metal; mas suspensa a um palmo acima do piso, e numa inclinação de 30 graus. Era possível cerrar os dedos em torno da aldraba. 

No apartamento da viúva Tenmory, ele demorou quase dez dias para encontrar o lugar adequado, e foi preciso desmontar um armário para que naquela parede descolorida e arranhada ele produzisse uma porta esférica, que preenchia totalmente a abertura onde estava encaixada. Era possível usar as mãos para fazê-la girar, e cada movimento revelava formas e cores diferentes, distribuídas na superfície daquele globo de madeira; até mesmo palavras.

Seus sucessos se acumulavam. A porta vazia que pintou para a família Blinemuth; a porta narrativa que até hoje desconcerta os visitantes do mosteiro copta; as duas portas gêmeas e reversas no banheiro do usineiro Fargas. Para ter em casas essas obras merecedoras de contemplação e hipóteses valia a pena (segundo os clientes) suportar a presença do artista, cujas venetas pareciam mudar de acordo com a moradia onde se instalava. Soturno e arredio numa, impudente e ofensivo em outra; nesta, passava o dia deitado no tapete, bebendo vinho em silêncio e coçando os pés; naquela, devorava a biblioteca do dono, enquanto os pincéis e as tintas secavam, inúteis, sobre uma mesa de jantar de onde ninguém ousava aproximar-se. (Na minha casa, estranhamente, não demorou mais que meia hora, para executar às pressas uma porta no muro de pedra que dá para a rua, uma porta que só pode ser vista pelo lado de dentro.) 

Partiu um dia, após embolsar seu último pagamento. Deixou atrás de si polêmicas, contradições acaloradas, residências a cuja entrada se formam, ainda hoje, filas de turistas empunhando guias explicativos e câmaras de filmar; e essa coleção de passagens que não levam a lugar nenhum.