quinta-feira, 12 de agosto de 2021

4733) Tarcísio Meira x Paulo José (12.8.2021)



O cinema brasileiro perdeu de ontem para hoje dois arquétipos masculinos que ajudaram a dar-lhe forma. Não me refiro ao teatro porque nunca vi nenhum dos dois no palco, e não me refiro à televisão por considerá-la (de forma injusta, certamente) um mero arremedo do cinema.
 
Paulo José pertence longamente à minha memória de espectador, e lamento não poder dizer o mesmo de Tarcísio Meira, para o qual (também de forma injusta) sempre torci o nariz. Paulo foi para mim um grande ator, e mais do que isso: me dava a impressão de ser um cara real, um cara com quem você podia sentar numa mesa, ficar olhando o mar, tomando um chope e jogando conversa fora durante uma tarde inteira.
 
Tarcísio era essa coisa terrível, um galã, e em vista disso nunca me passava a sensação de que pudesse haver um cara de verdade dentro dele, como de um boneco de Olinda.
 
Para ser justo com o Tarcísio hoje falecido, registro que ele próprio afirmou, em entrevistas, que não aguentava mais ser um galã, que isso o incomodava. Acredito piamente. Nas raras vezes em que o vi ao natural, num talk-show ou numa entrevista jornalística, tive vislumbres do cara boa-praça que ele provavelmente foi.
 
Mas o galã o engolia, como já engoliu outros tão bons quanto ele. E como a “estrela” já engoliu tantas mulheres que queriam ser atrizes e até poderiam sê-lo, se o star-system tivesse deixado.
 
O que é um galã? É um boneco, um truçulho de papel machê com três metros de altura e sorriso congelado na carantonha de traços impecáveis, uma promessa de masculinidade indestrutível que nunca precisa ser realizada. As mulheres que sonham com ele não querem homens problemáticos, querem promessas tranquilizadoras.
 
Triste do galã, esse espantalho devorado por mil platéias de lâmias inocentes.
 
Tarcísio, coitado, foi obrigado pelo contracheque a carregar essa tralha nas costas a vida inteira, submetendo-se até a coisas constrangedoras como afirmar em plena tela que o Brasil iria morrer se não ficasse independente: deu nisto aqui.
 
As mulheres se apaixonavam por ele como quem se inscreve previamente num serviço de voluntariado qualquer. Poderia ter sido um ator muito melhor, e talvez até tenha sido, à revelia da minha indiferença. Em minha defesa, invoco aquele sorriso odontológico com que ele brindava as companheiras de close e de beijo técnico.
 
Só o enxerguei de verdade quando ele fez o Grande Sertão: Veredas  (1985) de Walter Avancini.
 
Torci o nariz mais uma vez ao ouvir falar que ele estava escalado para fazer o vilão Hermógenes. Quando o vi, a tela ficou do tamanho de uma tela de cinema. O seu Hermógenes fazia o chão ceder. Foi a coisa bronca. A parte com o cramulhão. Aquele ronco de caverna brotando dos gorgomilos, pulsando uma macheza raiada de maldade. Fez as mulheres fugirem, e nessa hora foi ator até a meia-lua da unha.
 
Fiz as pazes com ele, por fim, e debitei o resto na conta impagável do Mercado. E depois pude reencontrar um pouco desse seu lado verdadeiro, barbazul, soturno, no fidalgo sombrio que ele veio a encarnar em A Muralha (2000) de Maria Adelaide Amaral. Parece até que lhe fez bem a obrigação frívola de ser bonito e ter sorriso colgate nas novelas. Ele acumulava as pressões ctônicas que todo ator de verdade contém. Os carrêgos do mal-ser. E quando alguém lhe jogava em cima capote, chapelão e a memória genética de seus avatares escravizadores, ele fazia brotar dali o petróleo cru que já incendiou tantas feiticeiras, fazendo-nos lembrar de quem viemos.
 
Paulo José, coitado, surgiu no mundo como o contrário disso. Era o cara boa pinta de Ipanema, camisa banlon, sandália japonesa, rapaz de apartamento, carro esporte, calçadão ensolarado. Em Todas as Mulheres do Mundo foi o alter-ego de tudo que sonhávamos ser, alegre, despreocupado, fofoqueiro, conquistador desajeitado e irresistível.
 
Nem boto Leila Diniz na negociação, porque seria covardia, mas o cordão-encarnado de beldades que ele ia traçando nos reconciliou com nossa própria masculinidade adolescente e tateante, com mais jeito para a comédia zona-sul do que para a tragédia shakespeariana.
 
“Paulo” era alegre, mentiroso, contraditório, ora galinha, ora Romeu, tinha lá seus momentos poéticos, mas para nós, em quem a masculinidade se agigantava rodeada de tabus e deveres e terrores, parecia cochichar: “relaxa, trepar com uma garota também pode ser uma coisa divertida”.
 
Foi portanto com um terreno já aplainado que ele em seguida revelou seu lado sombrio; que nos acomodou à sombra de suas próprias angústias, em O Padre e a Moça. Todos nós, celibatários involuntários, entendíamos pra valer as angústias de um celibatário compulsório. Todos nós sabíamos o que era fantasiar em vão com Helena Ignez.
 
Paulo José foi se ampliando e se enriquecendo como ator, aos nossos olhos, e no Macunaíma era possível perceber, por dentro do personagem indigeníssimo e paulistíssimo, uma carioquice que não pareceu deslocada, porque o mito macunaímico nunca pretendeu ser municipal. E mais tarde, na alegoria da masculinidade frágil que foi O Homem Nu, ele conseguia passar para o público não apenas o aperreio sem limites de quem se sente perseguido por uma cidade inteira, mas também a malandragem de quem o tempo todo está pensando “quando eu contar essa, a turma não vai acreditar...”.
 
Esse rapaz atrapalhado mas leve foi uma herança que ele deixou para toda uma geração de rapazes que eram atrapalhados mas pesadíssimos, traziam às costas o peso da responsabilidade patriarcal, depois o peso da angústia existencial, depois o peso da revolução social, depois o peso do desempenho sexual... Com tantos bonecos de papel machê para carregar, era bem vindo o exemplo de um meio-malandro que nos tocava com o cotovelo, largava os bonecos todos e saía correndo. Mesmo nu e perseguido pela polícia.
 
Vi Paulo José em pessoa apenas duas vezes, em tantos anos de Rio. Uma vez, num lançamento de livro, ele subiu no palco e tocou algumas cançonetas num teclado, explicou que era um dos exercícios que fazia para combater o Mal de Parkinson, e que com isso estava virando pianista.
 
A vez seguinte foi numa festa, na casa de amigos, eu já estava na sala, de long-neck em punho, numa roda de papo, quando alguém apontou lá longe e disse: “Você viu quem está ali? Paulo José.” Ele estava num sofá, rodeado de amigos, numa conversa tranquila. Criei coragem, fui até lá, falei que era fã dele, trocamos algumas frases cordiais; ele apertou minha mão e sorriu como se me reconhecesse depois de tantos anos.