sábado, 2 de maio de 2009

1010) A Wikipédia e a Paraíba (11.6.2006)



A Wikipédia é a enciclopédia aberta da Internet, que não apenas pode ser consultada por qualquer um, como também aceita colaborações de qualquer um. Se você conhece bem um assunto, pode entrar lá e propor um verbete sobre ele. Se o verbete já existe, você pode corrigir erros, esclarecer alguma passagem mal explicada, fornecer maiores detalhes, etc. Claro que a enciclopédia tem moderadores, como os blogs ou páginas similares. Tudo passa por um filtro, mas em princípio qualquer colaboração é bem-vinda. A página em inglês, a maior de todas, já conta com 1 milhão 170 mil verbetes. A página em português tem 143 mil; a francesa tem 295 mil, a espanhola tem 123 mil. Há links para todas elas no endereço brasileiro: http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal.

O verbete “Augusto dos Anjos”, na versão em português, é razoável, com dados que me parecem corretos. “Jackson do Pandeiro” tem apenas oito linhas e uma foto da estátua no Açude Velho. Ele é classificado como “músico de samba”, o que é aceitável, mas incompleto. O verbete “José Lins do Rego” é menor que o de Augusto, embora Zé Lins tenha uma obra muito mais volumosa, e bem que poderia haver sinopse e comentários dos seus livros mais importantes. Os de Sivuca, Ariano Suassuna, José Américo de Almeida e Pedro Américo são muito resumidos. O verbete sobre Zé Ramalho tem umas poucas linhas de comentários e uma discografia, mas o de Elba Ramalho tem apenas três linhas. Não há verbetes sobre Leandro Gomes de Barros, Paulo Pontes, Flávio Tavares, Pinto do Monteiro, José Dumont, Marinês. Há um extenso verbete sobre “O Maior São João do Mundo”.

A enciclopédia esclarece, no fim de cada página, que os verbetes curtos não passam de rascunhos; e convida os leitores a aumentá-los. Alguém poderá pensar que isto é um convite à bagunça, porque não faltam sujeitos metidos a engraçadinhos dispostos a encher os verbetes de informações falsas, piadinhas, etc. Recentemente, nos EUA, houve um ruidoso processo contra a Wikipedia em inglês porque um político foi falsamente acusado de estar envolvido no assassinato de Kennedy. (Ao que parece, o redator admitiu depois que tinha sido uma brincadeira de mau gosto, e demitiu-se) Em todo caso, tomaram-se precauções, como a de cadastrar os colaboradores, e a comunidade de redatores exerce uma vigilância cerrada sobre quem colabora. Na página principal há links esclarecedores sobre as condições impostas a quem colabora: “Princípio da Imparcialidade”, “Coisas a Não Fazer”, “Normas de Conduta”, etc..

Uma pesquisa recente concluiu que, apesar dos riscos de sua natureza “aberta e democrática” a Wikipedia tem uma percentagem de erros muito próxima da que se encontra em enciclopédias “oficiais” como a Britânica. Será que alguém se habilita a tornar a Paraíba mais visível nesse saite, que cresce mais depressa do que o PIB da China, e é fonte de consulta para o Brasil inteiro?

1009) Plágios literários (10.6.2006)



Em 2005 a editora Bloomsbury lançou o romance de estréia de Judith Kelly, Rock Me Gently, que teve uma boa aceitação do público, vendendo mais de 30 mil exemplares da edição capa-dura. A editora já fazia planos de tirar uma edição barata, de bolso, quando um leitor descobriu que havia trechos parecidíssimos com trechos de Brighton Rock de Graham Greene, e deu o alarme. Depois, foram descobertos trechos de várias outras obras, de Charlotte Brontë, Hilary Mantel e outros autores. Criou-se um impasse. A imprensa fez um carnaval. Ms. Mantel protestou, e o livro de Ms. Kelly foi recolhido.

Citarei alguns trechos. No livro Fludd, de 1989, Hilary Mantel diz: “Eu poderia beber o sono, disse ela; eu poderia comê-lo. Poderia me refestelar nos meus sonhos como um porco na lama.” No livro de Judith Kelly, lê-se: “Agora, eu poderia beber o sono. Poderia comê-lo. Poderia me refestelar em meus sonhos como um porco na lama”. Em outro livro de Mantel, King Billy is a Gentleman, lê-se: “Minha infância parecia pertencer a um mundo mais remoto e mais cinzento. Era meu território íntimo, visitado às vezes em sonho”. No livro de Judith Kelly, lê-se: “Minha infância tinha sido remetida para um mundo mais remoto e mais cinzento. Era meu território íntimo, que eu raramente visitava”.

Há numerosos exemplos; estes me bastam. O romance de Judith Kelly é ambientado na Inglaterra dos anos 1950, e conta os sofrimentos de uma garota criada (e maltratada) num orfanato de freiras católicas. O livro é autobiográfico. Kelly, ex-produtora de TV, que publicou este seu livro de estréia com 61 anos, foi morar num desses orfanatos aos oito anos, após a morte do pai alcoólatra; lá, foi castigada certa vez por não ter conseguido evitar que uma colega sua se afogasse na praia (episódio que reaparece no livro). A editora Bloomsbury, numa nota de desculpas dirigida a Hilary Mantel, afirmou: “Judith Kelly possui uma memória fora do comum, e, durante a década que ela levou para escrever seu livro, fragmentos de suas extensas leituras acabaram por emergir em seu próprio texto, sem que ela se desse conta”.

Os céticos exclamarão: “Ah, conta outra!” Nada disso. Acontece o tempo inteiro. Às vezes eu pego um livro que li apenas uma vez, trinta anos atrás, e em determinadas passagens sinto um frio na espinha e uma sensação de “déjà-vu”, porque começa um certo parágrafo mais marcante e aquilo brota da minha memória, eu “já sei” o que vem em seguida. Tenho de memória, até hoje, diálogos inteiros, cenas inteiras de livros que li quando garoto, e que se eu quisesse citar hoje não poderia, pois não sei mais o título do livro ou o nome do autor. Se um desses fragmentos brotasse na minha escrita num momento de tensão, de desconcentração, de instabilidade, seria bem possível que eu julgasse ser aquilo obra minha. Quem plagia com más intenções plagia de outro modo. Faz algo mais disfarçado, e mais bem feito.

1008) Ao trilar do apito (9.6.2006)


(ilustração: Paulo Jales)

Começa hoje a Copa do Mundo. A postos, povo brasileiro! Não sei qual é a pior situação, se é mandar para a Copa uma Seleção capenga, destinada a um mico histórico (como em 1966, 1974 e 1990) ou mandar uma Seleção jogando o fino, como a de agora, e correndo o risco de uma catástrofe como a de 1982. Paciência, colegas. O conselho mais sábio, em ambas as situações, é a dos velhos malandros que conhecem a imponderabilidade quântica do futebol, dão de ombros e recomendam: “Joga o jogo”.

Esta será a 18a. Copa do Mundo. Das dezessete anteriores, acompanhei doze, como torcedor (em algumas eu era muito pequeno, não era ainda portador do vírus). Ganhar as Copas de 1958-62 fez um bem enorme a este país, ajudou a diminuir o complexo (que ainda temos) de que sermos mulatos, tropicais e naturalmente alegres faz com que sejamos inferiores (economicamente, socialmente, intelectualmente) a outros povos que são brancos, vivem em países frios e encaram a vida com expressão carrancuda.

Muito brasileiro besta acha que para sermos civilizados e termos justiça social temos que nos parecer com os povos macambúzios que já governaram o mundo. É o contrário, coleguinhas. Todos os séculos de evolução deles foram impulsionados pela esperança utópica de poderem um dia libertar essa energia vital que trazem dentro de si, e que nós, bem ou mal, soubemos desenvolver. E não só: encontramos no futebol e na música popular dois canais de expressão para ela, que nos colocaram na vanguarda do Mundo.

Pois então, deixa a bola rolar. Não acho que nosso time tenha a obrigação de ser campeão; isto seria menosprezar demais os adversários. Além dos habituais suspeitos (Argentina, França, Inglaterra, Itália, Alemanha) tem umas seleções aí que jogam um bom futebol: Croácia, República Tcheca, Portugal, Espanha, a eternamente injustiçada Holanda... Um dia, uma dessas vai surpreender. É a síndrome do “terceiro lugar”, onde sempre chega uma seleção que ninguém esperava: Suécia em 94, Croácia em 98, Turquia em 2002.

Pensando bem, até o Japão de Zico pode surpreender. Esses times do Oriente quando começam a ganhar vêem-se possuídos por uma alucinação samurai que os empurra a praticar façanhas imprevisíveis. Pensando melhor ainda, times como Sérvia e Montenegro, Polônia ou Ucrânia podem surpreender também. Há décadas que produzem muitos talentos individuais, e um dia eles se combinarão para formar um time que ninguém esperava. Os times africanos são uma incógnita, porque ficaram de fora os mais conhecidos (Camarões, Nigéria) e os que chegam agora podem pagar um mico ou podem pagar pra ver. Dos nossos vizinhos acho que o México é disparado o mais perigoso, com Paraguai e Equador bem atrás. Mas... quer saber de uma coisa? Chega de prognósticos. Futebol não tem lógica. Se tivesse, nossa emoção se esgotaria na leitura da tabela do Campeonato. Relaxa, rapaziada. Espera o juiz fazer “pí”, rola a bola, e joga o jogo.

1007) Roberto Moura e Tia Ciata (8.6.2006)


(Tia Ciata)

Alguns meses atrás comentei o falecimento do jornalista Roberto Moura, vítima da febre maculosa que atacou algumas pessoas aqui no Estado do Rio, e me referi a ele como autor de dois livros sobre história do samba: No princípio era a roda (que comentei) e Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro. Cometi um erro. Este último livro tem como autor um outro Roberto Moura, cineasta e professor da Universidade Federal Fluminense. O falecido, aliás, assinava-se “Roberto M. Moura” para evitar confusões como esta. Já me desculpei junto aos envolvidos, e agora peço desculpas aos leitores que porventura acreditavam na minha infalibilidade. Caveat lector! Também cochilava o bom Homero.

Pra não perder a viagem, quero comentar o excelente livro do cineasta Moura sobre Tia Ciata. Publicado pela Funarte em 1983, o livro é resultado de uma pesquisa para a realização de filmes sobre a história do samba. Moura descreve com riqueza de detalhes a vida das comunidades negras na virada do século passado, principalmente nos antigos bairros do centro da cidade, que depois foram “passados no rodo” para a construção das modernas avenidas. Ali era, entre outras coisas, onde se instalavam os migrantes vindos da Bahia, do mesmo modo como décadas mais tarde São Cristóvão virou o polo atrator dos nordestinos.

A intensa vida social e cultural desses bairros do Centro do Rio tem uma história fascinante, e é bem oportuna a observação de que o samba, ou pelo menos a variante carioca que se consagrou, não nasceu no morro: nasceu no asfalto, na Pequena África, e foram as reformas urbanistas que expulsaram dali os seus criadores, levando-os a ir morar nos morros em volta.

Tia Ciata, nascida em Salvador em 1854, chegou com 22 anos no Rio de Janeiro e tornou-se uma espécie de primeira dama das comunidades negras da Pequena África. Enquanto no alto da pirâmide social sucediam-se Império e República, e as elites do Rio e de Salvador dedicavam-se à ópera, aos salões de valsas e às modinhas, nas profundezas subterrâneas das comunidades negras fermentava aquilo que viria a ser o samba do século 20. A ligação profunda entre negros baianos e negros cariocas (da qual um resquício evidente é a obrigatoriedade da “ala das baianas” nas Escolas de Samba de hoje) era alimentada através de idas e vindas, migrações, viagens, um intenso troca-troca de informações, ajudas, solidariedades profissionais e econômicas que não deixa de me lembrar muito o processo parecido que se deu com os nordestinos do Campo de São Cristóvão. Desconheço se o livro de Roberto Moura foi reeditado; se não foi, merece uma reedição urgente, ainda mais agora que têm surgido livros reveladores sobre a história do Samba e teses que merecem atenção, como as de Hermano Vianna (O Mistério do Samba), Alejandro Ulloa (Pagode – A festa do samba no Rio de Janeiro e nas Américas), e Partido Alto – Samba de Bamba de Nei Lopes.

1006) Duchamp e o trocadilho (7.6.2006)



Marcel Duchamp passou para a História da Arte como um brincalhão, um irreverente, que se divertia em interferir nas obras... Não, espera aí, está tudo errado. A História da Arte fez justiça a Duchamp, sim, inclusive ao questionar a influência desproporcional que algumas atitudes suas tiveram nos descaminhos de uma certa Arte Conceitual de hoje, para quem “Arte é qualquer coisa que a gente diga que é Arte”. A visão simplista da obra de Duchamp não se deve aos historiadores de Arte, mas a nós que fazemos jornalismo cultural, e que pela própria natureza do meio que utilizamos temos que ser rápidos, superficiais, incompletos. Paciência. Eu bem gostaria de poder escrever um livro de duzentas páginas sobre cada um dos assuntos que abordo aqui nesta coluna, mas não tenho tempo.

Há um aspecto importante na personalidade de Duchamp: ele era um grande trocadilhista. Os surrealistas dos anos 1920, que eram fervorosos leitores de Freud, erigiram o trocadilho como uma das formas de revelação do Inconsciente, e como um dos processos capazes de produzir fagulhas poéticas instantâneas pelo choque entre duas idéias dissímiles. Para isto contribuiu sem dúvida a obra clássica de Freud “O Trocadilho e Suas Relações com o Inconsciente”. Uso o termo “trocadilho” que me parece mais exato, embora algumas traduções do livro usem o termo “chiste”, e em inglês seja preferido “joke” (piada) em vez do “pun” (trocadilho). O trocadilho é a interferência de duas das séries de sinais que formam a linguagem: o Som e o Sentido. (Há outras séries: o sinal gráfico, o comentário facial ou gestual, etc.) Quando dizemos de uma determinada pessoa que ela “nem Freud nem sai de cima”, estamos multiplicando as possibilidades de leitura e interpretação da frase.


Duchamp usou trocadilhos em muitos títulos de suas obras, e podemos dizer que vários trabalhos seus são trocadilhos materiais em vez de verbais. Seu famoso quadro da Mona Lisa com bigodes tem como título “L. H. O. O. Q.”. Pronunciando essas letras em voz alta em francês soa como “Elle a chaud au cul”, que não me arrisco a traduzir aqui, mas é algo equivalente a “Taco cru pegando fogo”. Uma de suas obras mais curiosas intitula-se “Traveler’s Folding Item” (Objeto Dobrável de Viajante, 1916). Trata-se da capa plástica de uma máquina de escrever, com o nome da marca, “Underwood” gravado na parte da frente. A capa é daquele tipo de plástico um tanto rígido, que tanto pode ser dobrada quanto pode ficar de pé sozinha, sem a máquina por baixo. Colocada assim, ela se assemelha a uma saia, deixando clara a intenção do trocadilho: “Underwood” significa “Embaixo de Wood”, e é uma alusão a Beatrice Wood, namorada de Duchamp na época. Um objeto e uma palavra dão a idéia de que embaixo da saia de Beatrice existe algo que serve para escrever poemas. (As possibilidade de interpretação, como sempre, são infinitas)

1005) “Rock in Rio em Lisboa” (6.6.2006)



Eu não tenho nada contra o rock-and-roll, que bem ou mal é a trilha sonora da minha adolescência. Tenho que carregá-lo vida afora, como uma tatuagem que a gente mandou fazer aos quinze anos e aos cinqüenta continua dando explicações. Em termos da Cultura Ocidental é mais um exemplo de rebeldia individual transformada em culto-ao-Ego, e de contestação política transformada em consumo-de-massa. Nada tenho também contra Lisboa, cidade onde fui muito bem recebido e onde reencontrei uma parte essencial da minha brasilidade. Mas... vocês não acham que esse negócio de “Rock in Rio em Lisboa” soa um pouco esquisito?!

Não é o que acha seu promotor, o publicitário Roberto Medina, que criou o Rock in Rio em 1985 e recentemente transferiu o evento para a capital portuguesa, onde decerto encontra facilidades e isenções fiscais (não sei, estou imaginando) que não encontraria aqui. Diz Medina sobre este hibridismo municipal: “O Rock in Rio deixou de ser uma marca de uma cidade. Ele passou a ser uma marca própria. Por isso, mesmo estando em outra cidade, não mudo o nome do festival. Se Woodstock saísse do Estados Unidos e viesse para Portugal, manteria o mesmo nome”.

Muito bem; o assunto rock morreu por aqui. O que eu quero falar mesmo é sobre o conceito de “marca”. Quando alguém cria um produto e impõe um padrão de qualidade (ou pelo menos um certo perfil de produto que agrada a um certo perfil de público) nada mais justo que a marca desse produto (nome, logotipo, razão jurídica, etc.) pertença ao sujeito que o criou. Um problema que se cria às vezes é quando a marca foi criada por um grupo de pessoas, como ocorre com freqüência com grupos musicais. Quando o grupo racha ao meio, qual das duas metades tem mais direito ao nome?

Outra questão cada vez mais freqüente é a abertura indiscriminadas de auto-franquias. O melhor exemplo é a banda Mastruz com Leite (também conhecida como Avestruz com Leite), que na verdade não é uma banda, é uma marca criada por um empresário, que contrata instrumentistas e os remete para diferentes cidades no mesmo dia, onde todas se apresentam com o nome Mastruz Com Leite.

Profetizo agora (lápis e papel na mão, por favor) que o conceito de marca irá se sobrepor ao conceito de artista, de tal forma que daqui a alguns anos o cantor de maior sucesso no Brasil será um “José da Silva” qualquer, que venderá milhões de discos e terá uma agenda tão apertada que um dia alguém dirá: “Ô Zé, está cheio de imitadores teus por aí, alguns até cantando melhor do que você... Vamos abrir franquias! Vamos expandir a marca!” E esses clones serão atraídos, contratados, ensaiados e despachados para diferentes cidades, de tal modo que “José da Silva” fará show no mesmo fim-de-semana no Rio, em Campina Grande, em Corumbá, em Vitória... Ninguém perceberá, e mesmo que perceba não irá se queixar, porque o show, a iluminação, os arranjos, as bailarinas e os fogos de artifício serão rigorosamente os mesmos.