sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

1530) Will trabalha por comida (7.2.2008)



Vi num filme americano uma cena de um mendigo na rua tendo ao pescoço um letreiro escrito “Will work for food”. A legenda eletrônica traduziu: “Will trabalha por comida”. O erro é fácil de entender. Como o sujeito “I” (“eu”) foi omitido, o tradutor pensou que “will”, em vez de verbo auxiliar, era nome próprio, o apelido habitual de “William”. A tradução correta seria “Trabalharei por comida”, mas quem traduz legendas às vezes não recebe uma cópia do filme (ou não tem tempo de vê-lo), e sim uma transcrição dos diálogos e das frases escritas que surgem na tela. Sem saber o contexto, é difícil acertar.

Um amigo meu viu num filme francês um gangster tentando montar às pressas um mecanismo (uma bomba, algo assim), enquanto outro, ao seu lado, aconselhava: “Docemente... docemente...” Pode até ser que “doucement” se possa traduzir assim noutro contexto (“elle me parlait doucement”, “ela me falava com doçura”), mas dito em tom de advertência ou de orientação traduz-se melhor por “devagarinho – com cuidado—etc.” Essas pequenas expressões coloquiais são famosas pela sua falta de literalidade, ou seja, por usarem palavras que só têm uma relação distante com o que se quer exprimir. A mesma cena em inglês talvez tivesse o personagem aconselhando ao outro: “Easy... easy...”, e seria igualmente errado traduzir isto como “Fácil... fácil”. Mais uma vez o certo seria qualquer coisa como “Vai devagar... atenção... cuidado...” ou qualquer variante.

Outra cena que vi dias atrás, num filme falado em inglês, mostrava um personagem dando uma ordem a outro, e este retrucava, na legenda: “Sem saída!” Está claro que o diálogo original dizia: “No way!” O erro é compreensível, mas não tem desculpa. “No way” pode significar “sem saída” se estiver escrito numa placa ou coisa semelhante. Mas num diálogo, respondendo a um pedido ou a uma exigência, tem que ser traduzido por algo tipo “De jeito nenhum!”, “Nem pensar!”, etc.

Uma expressão que volta e meia desorienta os tradutores de legendas é numa cena em que há uma pessoa chorando (de dor, etc.) e outra tentando consolá-la e fazer com que durma – geralmente uma mãe consolando uma criança. E ela diz: “There... there...” Traduzir isto por “Ali... ali...” é uma grande mancada, mas pobre do tradutor que recebe apenas uma lista de falas por escrito e não tem noção do que está acontecendo na tela. A tradução correta nesse contexto pode ser um milhão de coisas: “Vamos, vamos... já vai passar (a dor)... está tudo bem...” Qualquer expressão reconfortante que se diz para amenizar a dor ou a tristeza de alguém. Por que motivo os que falam inglês usam o “there”, confesso que não sei.

O mercado profissional de legendagem de filmes, que antes tinha que lidar apenas com as cópias exibidas nos cinemas, teve que se ampliar para incluir milhares de títulos de DVDs por ano. O trabalho às vezes é feito às pressas, mal pago, mal revisado. Mas, fazer o quê? Will trabalha por comida.

1529) O romantismo dos outros (6.2.2008)


Uma da histórias mais cruelmente irônicas associadas à época da ditadura militar é uma que vi no jornal há vários anos. Um jornal carioca publicou uma entrevista com um brasileiro que se envolveu com grupos subversivos no tempo da ditadura. Depois de algum tempo de atividade clandestina (não lembro agora se ele chegou a ser preso), ele se exilou na Europa e lá ficou. Anos depois da queda do regime militar, a saudade bateu e ele retornou ao Rio.

Na entrevista que deu ao jornal, ele rememorou alguns episódios dos tempos da clandestinidade, entre os quais o dia em que ele e outros amigos prepararam uma bomba e a atiraram no Consulado Americano, aquele prédio alto que fica na Presidente Wilson, a cem metros da Academia Brasileira de Letras. A bomba feriu alguns transeuntes mas não produziu danos apreciáveis no prédio, que parece um bunker. E não se sabe se o abalo sísmico chegou a ser detectado em Washington, na época muito mais preocupada com as bombas vietnamitas. E o ex-terrorista encerrava o relato desse episódio dizendo algo como: “Foi um gesto de loucura, mas nós éramos jovens românticos, queríamos derrubar o regime que considerávamos injusto”.

A história acabaria aí, como tantas outras, se dias depois o mesmo jornal não publicasse outra entrevista, desta vez com um sujeito que leu a anterior. Dizia ele que era um dos transeuntes que, anos atrás, estavam passando em frente ao Consulado Americano, quando uma bomba explodiu. Teve a perna ferida por estilhaços, passou dias entre a vida e a morte, acabou perdendo a perna. Prejudicou-se no trabalho, por invalidez; a família entrou em crise, etc. Todas as consequências previsíveis numa tal situação. E o cidadão anunciava que iria entrar com um processo de perdas e danos contra o ex-guerrilheiro, dizendo: “O romantismo dele acabou com a minha vida”.

Este é um dos muitos episódios que mostram o quanto o terrorismo tem de absurdo, e não só absurdo—o quanto tem de ridículo, pelo que tem de gratuito. Para derrubar um regime cujos cabeças estão a milhares de quilômetros, matamos um guarda que está ali doido para que seu turno acabe e ele possa ir para casa, comer seu feijão e brincar com os filhos. O regime continua impertérrito, e o ditador nem bate a pestana. O terrorismo é a guerra em micro-escala, a guerra vista por um telescópio invertido, reduzida aos menores números, mas mantendo intacta sua estrutura absurda de destruição inútil.

O terror motivado pelo romantismo é tão absurdo quanto os demais. O romantismo nosso acaba sempre entrando em colisão com o realismo alheio. No caso aqui relatado, o que nos impressiona não é apenas a insensibilidade do indivíduo ao jogar a bomba, mas a sua insensibilidade em relatar o fato anos depois, minimizando sua importância, ou reduzindo-a a um gesto de romantismo, ainda sem perceber que seu gesto de rebeldia juvenil destruiu vidas alheias.

1528) O cinema do efêmero (5.2.2008)


(O fim do sem fim)

Um dos melhores documentários que vi este ano, já comentado nesta coluna (23.10.2007), foi O fim do sem fim, filme de Lucas Bambozzi, Beto Magalhães e Cao Guimarães. É um filme sobre profissões em declínio: lanterninha de cinema, calígrafo, fotógrafo lambe-lambe, etc. Com ótimas entrevistas, bem editadas, o filme tem uma fotografia e uma edição que tiram a secura jornalística da abordagem, criando uma atmosfera narrativa em que chegamos a pensar ser aquilo um filme de ficção com personagens aleatórios e que não se relacionam uns com os outros.

Por mais que o filme seja satisfatório (para mim é plenamente) ele reforça uma idéia preconcebida que continua vigorando sobre o documentário, a de que ele existe para preservar, “resgatar”, registrar coisas antigas e em via de desaparecimento. Basta ver a idéia que o chamado “público em geral” tem sobre documentário. Já vi alguém responder à pergunta “O que é um documentário?” dizendo: “Documentário é um filme nacional curto, entrevistando gente velha e pobre”. É um daqueles casos de uma resposta totalmente errada e totalmente correta.

O filme dos três cineastas paulistas me sugeriu a possibilidade de fazer o seu contrário. Um filme talvez intitulado “O começo do sem começo”, registrando profissões que não existiam há alguns anos e que agora existem; profissões que surgiram de repente e que a gente ainda não sabe no que vão resultar. Alguém sabia o que era um webmaster em 1990? Outros exemplos: acupunturista, “personal trainer”, atividades que entraram na moda de alguns anos para cá. Temos casos mais extravagantes, como “psiquiatra de cães” e outras profissões que gravitam em torno dos muito ricos. Na verdade, basta circular no meio dos muito ricos para descobrir inúmeras profissões novas, pois onde quer que o dinheiro se acumule a sua força gravitacional irá atrair gente esperta, interessada em transferi-lo para os seus próprios bolsos. E também circular entre gente pobre. Se nossa criatividade é estimulada pela perspectiva de ganhar um milhão de reais, o mesmo ocorre com quem precisa descolar cem reais no fim do mês, senão morre.

O cinema documental serve para captar essas transformações no momento em que estão acontecendo. São atividades humanas que surgem de maneira inesperada, fixam-se na vida de alguns grupos durante alguns anos, e depois desaparecem quando as condições econômicas ou os modismos sociais voltam a mudar. Documentá-las enquanto existem é tão legítimo e importante quanto documentar o mico-leão dourado, o boto cor-de-rosa e outras espécies ameaçadas de extinção. Em síntese, o documentário não é apenas arqueologia, não serve apenas para resgatar o passado ou nos trazer informação sobre atividades que deixaram de existir. Ele faz o mesmo com o presente, ele capta essas camadas passageiras de que o presente é feito, e que nós imaginamos que serão eternas, porque temos a mania de imaginar que tudo que existe agora existe para sempre.

1527) Deixa as águas rolar (3.2.2008)




(o Petit Trianon, no Rio de Janeiro)

Tenho a incômoda consciência de que há pelo menos uma dúzia de professores de Português que lêem regularmente esta coluna. Talvez sejam mais, mas estou pensando apenas naqueles que conheço em pessoa. 

De vez em quando puxam-me as orelhas por causa dos meus erros de ortografia e concordância, barbarismos, cruezas de estilo. 

Isto me lembra uma notinha que o pessoal do Pasquim publicou, no auge do jornal: 

“Alguns leitores reclamam dos erros de gramática do Pasquim. Queremos informar que todos os nossos redatores se exprimem num Português impecável, mas, depois do jornal pronto, pagamos um funcionário para inserir aleatoriamente os erros de gramática que contribuem para o perfil descontraído deste hebdomadário”.

Eu poderia alegar o mesmo mas, pior que mentira, seria piada de segunda mão. Prefiro lançar aqui uma teoria herética que talvez incomode a muita gente, porque a mim me incomoda há décadas. É a noção de que a língua é mais forjada pelos ignorantes do que pelos estudiosos. 

A convivência social das massas lhe dá formas novas, e estas costumam passar o rodo por cima das convenções e das regras. Como dizia um poeta marginal: 

“Nossos vícios de linguagem são vícios porque somos minoria. No dia em que nossa bandeira tremular no Petit Trianon, serão virtudes”

(“Petit Trianon” é o palacete que abriga a Academia Brasileira de Letras, que já conta em seus quadros com alguns notórios traficantes de linguagem coloquial, como João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna.)

Escrevo estas linhas enquanto lá embaixo passa um carro-de-som carnavalesco bradando: “As águas vão rolar, garrafa cheia eu não quero ver sobrar...” É uma das mais queridas e ingênuas marchinhas de nosso carnaval (mesmo sendo uma apologia à droga). E quando ela toca, todo mundo ergue os braços e brada, na hora do refrão: “Deixa as águas rolar!” 

Isto é certo, é errado? Deveríamos organizar (com verbas federais) uma força-tarefa de gramáticos para percorrerem os bailes de carnaval Brasil afora, Bechara em punho, mandando parar a orquestra no momento exato da transgressão?

O gramaticalmente errado se infiltra na nossa fala por mais de uma razão. 

A primeira é que as pessoas desconhecem as regras da gramática, porque não foram à escola, ou então foram, mas foram mal (como eu). 

A segunda é que as pessoas dão à linguagem uma função pragmática (“se entenderem o que eu quero dizer, isto me basta”) ou estética (“fica mais bonito falar assim”), e pouco estão ligando para a função que podemos chamar de científica – a coerência interna da Língua, a sua evolução ao longo do que consideramos seus caminhos naturais. 

A terceira é que (ao contrário do que muita gente pensa) a gramática é um apêndice da língua viva, e não o contrário. Os grandes gramáticos sabem disso. O povo planta o que lhe dá na telha, e os gramáticos colhem o que lhes apraz – mas o plantio é desmesuradamente, inconcebivelmente mais veloz do que a colheita.





1526) Anomalias e preconceitos (2.2.2008)



Todo mundo é preconceituoso, a começar por mim. Gostamos de umas coisas, detestamos outras, e estamos conversados. Diante de um fenômeno qualquer, recorremos a uma explicação que nos deram aos dez anos de idade, e recusamo-nos a reexaminar o assunto. Reexaminar para quê, se já temos uma resposta? É curioso notar que a palavra “pré + conceito” tem formação semelhante à de “pré + juízo”. A conotação atual de prejuízo como “perda, dano” vem de sua associação anterior à idéia de “decisão errônea, baseada em julgamentos precipitados”.

No seu clássico A Estrutura das Revoluções Científicas, Thomas S. Kuhn refere um curioso experimento levado a cabo por J. S. Bruner e Leo Postman. Eles testaram a rapidez de percepção visual dos indivíduos através da projeção de imagens de cartas de baralho, em frações infinitesimais de segundo. A intenção era medir quanto tempo era necessário para que uma imagem (um seis de copas, um valete de espadas, etc.) fosse identificada corretamente pela pessoa. Alguns indivíduos, claro, precisavam de exposições mais demoradas para identificar corretamente as cartas.

Acontece que no meio do experimento os cientistas começaram a incluir anomalias – um seis de espadas vermelho, ou um quatro de copas preto. Com imagens de duração muito rápida, essas cartas anômalas eram vistas pelas cobaias como cartas normais. O quatro de copas preto, por exemplo, era visto como um quatro de copas normal, ou como um quatro de espadas. A mente recusava-se a perceber a imagem que considerava “errada” e fazia uma adaptação, assimilando-a ao que já lhe era familiar.

Os cientistas foram aumentando cada vez mais o tempo de exposição dessas cartas, dando tempo às cobaias para que percebessem o erro. Alguns começaram a dizer, diante do seis de espadas vermelho: “Isto é um seis de espadas, mas há algo de errado nele, ele parece que está com um contorno vermelho”. Havia hesitação, confusão, mas a partir de um certo ponto o indivíduo finalmente percebia a verdade. Algumas pessoas, no entanto, não admitiram o erro.

Diz Kuhn: “Mesmo com um tempo médio de exposição quarenta vezes superior ao que era necessário para reconhecer as cartas normais com exatidão, mais de dez por cento das cartas anômalas não foram identificadas corretamente. Os entrevistados que fracassaram nessas condições experimentavam muitas vezes uma grande aflição. Um deles exclamou: ‘Não posso fazer a distinção, seja lá qual for. Desta vez nem parecia ser uma carta. Já não sei sua cor, nem se é de espadas ou copas. Não estou seguro nem mesmo a respeito do que é uma carta de copas. Meu Deus!”

Essa aflição é a que sentimos quando nossos preconceitos são questionados, quando vemos algo que não se encaixa em nossas categorias de classificação. É algo que vai fundo no nosso software mental. O computador trava. Dá um branco no juízo. O coração palpita, as mãos suam frio, e a triste verdade é que muita gente acaba saindo na porrada.





1525) Anatoly (1.2.2008)


Anatoly é um russo de quarenta e poucos anos, cabelo grisalho cortado à escovinha, rosto queimado, olhos azuis. Conheci-o numa livraria de Copacabana onde vi que ele estava tendo algum problema com o cartão de crédito. Resolvi interceder como intérprete quando vi que ele estava comprando um pocket-book de Bruce Sterling. Os leitores de ficção científica são uma comunidade solidária, e dez minutos depois estávamos tomando um chope no bar da esquina e fazendo comparações mercadológicas entre a FC brasileira e a russa. Ele falava um inglês melhor que o meu, carregado de sotaque. Às vezes fazia circunlóquios por não lhe ocorrer uma palavra. Para descrever o formato de uma península que visitou, dizia: “Ela tem a forma daquela coisa que a gente aperta com o dedo (fazia o gesto) num revólver...” E eu: “Ah, yes. Trigger. In Portuguese, gatilho”. Ele riu, ficou repetindo e saboreando a palavra: “Ga-ti-lho...”

Anatoly trabalhou com um grupo de Médicos Sem Fronteiras em vários países. “Somos invasores”, disse ele. “Em tal ou tal país, há dois ou mais grupos se matando uns aos outros. Nós invadimos a guerra deles para salvar vidas e remendar os mutilados. Não podemos acabar a guerra, e a todo instante corremos o risco de levar um tiro, porque numa guerra a gente cruza o tempo todo com homens de arma em punho que estão furiosos, ou apavorados, ou paranóicos, ou estão há dias sem dormir e não conseguem pensar direito. Um amigo meu foi morto por um soldado que depois não soube explicar por quê atirara e teve uma crise de choro. Temos uniformes, insígnias, bandeiras e tudo o mais, mas se nos defrontarmos com um cara armado não temos a opção de matá-lo antes que ele nos mate”.

Nossas narrativas heróicas acontecem sempre em torno de um herói armado. O que nosso cinema, nossa literatura, nossa poesia épica teriam a dizer sobre um sujeito que vai para a guerra contando apenas com anestésicos, bisturis e suturas? Médicos de guerra são como jornalistas de guerra: um bando de malucos que tentam praticar profissões civilizadas no próprio epicentro da ferocidade sem estribeiras, da carnificina pela carnificina. Se soldados são heróis, o que dizer de soldados desarmados?

Anatoly mostrou-me a foto da mulher, dos filhos; mostrei-lhe as minhas também. Ele disse que estava no Rio pela primeira vez e que depois de uma semana, inclusive com incursões pela Zona Norte e visita a uma Escola de Samba, não tinha visto violência alguma na cidade. Dei-lhe os conselhos que todo carioca (mesmo adotivo) dá aos visitantes: por onde não andar, como se vestir, o que não usar. Por alguma razão, não temi pela vida de um cara que já levou um total de seis tiros e escapou de todos, foi ferido por granada na Bósnia (mostrou a cicatriz no ombro), e esteve para ser fuzilado como espião por um grupo de guerrilheiros palestinos. “Good night,” disse eu, quando nos despedimos, “and be careful!” Ele riu, fez o gesto com o dedo: “Ga-ti-lho!”