sexta-feira, 29 de julho de 2016

4140) Deleuze e a ficção científica (29.7.2016)



Ernesto Sábato, em seu livro de ensaios O Escritor e seus Fantasmas, dizia (cito de memória): “Enquanto o mundo for mundo, existirá um homem que se preocupa com o Universo enquanto sua casa pega fogo, e existirá uma mulher que se preocupa com sua casa enquanto o Universo pega fogo”.

A divisão por gênero é meio injusta, como sempre. Nem todo homem é todo homem, nem toda mulher é toda mulher.  Mas não se pode negar que (independente de sexo, cor, classe, nação, etc.)  essas duas mentalidades existem, essa diferença de foco sobre a vida. Todo mundo conhece alguém que é de um jeito, e alguém que é do outro. Eu próprio pertenço a um dos dois grupos: considero-me o síndico do Universo, enquanto a casa vive à matroca.

Existe no YouTube um clip do filósofo Gilles Deleuze (aqui: https://www.youtube.com/watch?v=_Wer1VGBZi8) explicando a uma jornalista, ou a uma aluna, como ele encara os conceitos de esquerda e de direita. Esta discussão, apesar de importante, é uma das mais sujeitas a equívocos do nosso século, porque a esmagadora maioria das pessoas se informou sobre o assunto através de panfletos partidários de um lado ou do outro.

E também porque (atentem para este sintoma!) a maioria dessas pessoas, de ambos os lados, é incapaz de conversar descontraidamente sobre este tema, prestando atenção ao que o interlocutor diz, tentando entender. É algo traumático. Na terceira frase todo mundo já começa a erguer a voz, arquejar, gesticular agressivamente, insultar alguém e a se considerar pessoalmente ofendido por algo que o interlocutor não disse.

Deleuze (de quem nunca li livro nenhum, mas sei que é um filósofo conceituado, que meus amigos citam com frequência), em vez de recorrer a memes partidários, compara as duas mentalidades contrapondo suas diferentes percepções do mundo.

Quem é de direita, diz ele, tem uma percepção do mundo que é como o endereçamento de um envelope. Primeiro vem a pessoa, o indivíduo, que é o centro de tudo. Depois a rua onde ele mora, depois a cidade, depois o país, os demais países...  Ou seja: do particular para o geral, de dentro para fora.

Essa condição (diz ele) faz com que pessoas privilegiadas como os europeus vejam o mundo sempre a partir de si mesmos, tentem fazer o possível para que aquela sua condição de privilégio dure o maior tempo possível.

Por outro lado, quem é de esquerda pensa (ele ressalva que os japoneses pensam assim também), ao considerar um fato importante qualquer, primeiro no “contorno geral”, na humanidade, depois no seu país, depois na cidade onde vive, depois na casa onde mora com sua família. Do geral para o particular, de fora para dentro.

O filósofo parece sugerir que num trajeto ideológico como este, quando o sujeito finalmente começa a pensar em si, nos seus interesses imediatos e específicos, ele já está consciente da existência de todo o resto. Já está imbuído, impregnado, do mundo a que pertence. Ele tem um Himalaia de premissas coletivas. Tem material até demais para comparar e decidir. É alguém que começa a considerar os problemas não pelos seus interesses pessoais e imediatos, mas pela ponta, pela extremidade mais afastada de si. Ser de esquerda (diz ele) é saber que os problemas do 3º. mundo estão mais próximos de nós do que os problemas do nosso bairro.

A mentalidade de direita, segundo esse raciocínio, seria a de quem parte de si e se considera o modelo para todos os outros. O cara escreve um romance interplanetário, mas os seus Zorgwangs de Betelgueuse-18 se comportam exatamente como escritores novaiorquinos bêbados ou como fuzileiros navais em missão. Como diz o jargão da FC:  “É igual ao Kansas, mas com duas luas no céu.” O Eu como medida-padrão do Universo.

O que me chamou a atenção na frase de Deleuze foi porque eu mais de uma vez, sem nem pensar em esquerda ou direita,  comparei a literatura mainstream e a ficção científica exatamente dessa forma.

A FC, para mim, é uma literatura que começa a pensar pelo Universo, depois considera a Terra e a Humanidade como um todo, e percebe a História, os povos, os países, e chega por fim ao aqui e agora de alguém.  Já o mainstream, o romance realista moderno, começa nos neurônios do protagonista, ou no labirinto do seu ego, depois se expande pela sua memória, considera seu corpo, passa daí para a família, a rua, a cidade, etc.

Ver em primeiro lugar o mundo (ou o Sistema Solar) parece normal a quem pensa em termos de FC, mesmo que não a escreva. Ver o mundo à distância, no tempo e no espaço, nos ajuda a ver que a humanidade está durando no planeta o tempo de uma foto, e vai passar.

Esse é o verdadeiro espírito da ficção científica, mesmo que muitos dos seus leitores não pensem assim (pensam na aventura, ou nas maravilhas tecnológicas, ou em outros aspectos secundários). É “científica”, não por exigir conhecimentos matemáticos ou de laboratório, mas porque sua ótica é a da ciência: a tentativa de entender o fenômeno humano no quadro geral do Universo.

Uma comprovação da existência dessas duas mentalidades pode ser feita perguntando a alguém: “O que é mais importante, você ou a Humanidade?” Muitas vezes teremos uma gargalhada de incredulidade diante de uma pergunta com uma resposta tão óbvia, tão única. “Claro que sou eu, ora!...”. “Claro que é a Humanidade, é evidente!...”

Quem pensa em primeiro lugar no Universo, diz: Eu não sou o centro do mundo. Tudo pode ser diferente de mim, ser diferente é normal. O personagem de direita, herdeiro das mitologias monoteístas, da ética monárquica e da mentalidade geocêntrica, pensa em si em primeiro lugar, e diz, na melhor das hipóteses: Tudo deve ser igual a mim, tudo precisa ser feliz do jeito que eu sou, todo mundo precisa ter tudo que eu tenho.

Não sei se, e como, esse arrazoado todo se encaixa nos conceitos tradicionais da esquerda e da direita na política; problema delas. Mas tenho que reconhecer que existem, sim, essas duas maneiras de ver o mundo.

No mesmo clip, o filósofo diz que politicamente não pode existir governo de esquerda, porque ser esquerda é ser sempre oposição, minoria, pressão por objetivos e mudanças, e ser governo é sempre algo de direita, algo em busca de um “padrão” a ser imposto a todos.

O que coincide parcialmente com uma conhecida opinião do crítico Antonio Cândido, segundo o qual a função do socialismo não é na verdade governar os países, é servir de oposição, espectro e espantalho permanente para o capitalismo, não o deixando dormir de noite, expondo suas vísceras obscenas, encurralando-o nas cordas. Todas as concessões trabalhistas e salariais, todas as políticas sociais feitas pelos patrões aos empregados no último século e meio, diz Cândido, são as conquistas reais do socialismo. No interior do capitalismo.

A frase de Ernesto Sábato sobre as prioridades do homem e da mulher e a frase de Gilles Deleuze sobre a percepção da esquerda e da direita nos revelam, de direções diferentes, a existência dessas mentalidades contrapostas mas vizinhas. Muitos outros exemplos podem ser citados. O problema é que essas duas frases que citei recorrem a metáforas contaminadas de emocionalismo e preconceito. Nelas foram introduzidos elementos de ruído. Numa, a sugestão do conflito homem x mulher; na outra, do conflito esquerda x direita. São dois conflitos perigosos de se usar num exemplo, porque a crise interna do exemplo escolhido acaba engolindo a discussão mais geral, Eu x Universo. Que é a mais importante .