sábado, 30 de janeiro de 2021

4669) Notas sobre o conto policial (30.1.2021)




A vida real não tem a menor obrigação de ser coerente ou de amarrar todas as pontas das histórias que nela sucedem. Já a ficção tem essa possibilidade (para alguns), esse prazer (para outros) e essa obrigação – para quem escreve histórias de detetive.
 
O romance policial detetivesco clássico é apenas superficialmente realista, porque não é ao realismo que visa. “Parecer real” é um mero pretexto.
 
(Isto, é claro, não se aplica a outros ramos igualmente ilustres do romance policial: o romance noir, o romance hardboiled, o romance de espionagem, o romance de crime, o romance de suspense, ou thriller...  Nestes casos, o realismo e a verossimilhança geralmente contam a favor – descontando sempre, é claro, as variações de espírito e temática de cada autor.)
 
O romance policial é uma literatura que há mais de cem anos ainda precisa justificar sua existência a cada novo título lançado. É como uma família de migrantes que há mais de um século precisa a toda hora cruzar a fronteira e voltar, porque ainda não recebeu cartão de residente na República das Letras.
 
O romance ocidental dos últimos duzentos anos tem buscado sempre o realismo, por caminhos diferentes. Já o romance detetivesco (que nada tem a ver com o romance de procedimento policial, ou o romance noir, o romance hardboiled, etc.) não pretende fingir ser nada mais do que literatura.
 
O romance detetivesco clássico propõe um problema, um mistério, um enigma, e precisa ser visto, em primeiro lugar nestes termos.
 
No romance de John Dickson Carr The Three Coffins, dois crimes impossíveis são cometidos. Duas pessoas são assassinadas em lugares de onde não se viu ninguém chegar ou sair, e há uma porção de detalhes intrigantes, enigmáticos, até meio absurdos, cercando os dois assassinatos.
 
A certa altura o detetive, o dr. Gideon Fell chama os demais participantes da investigação para discutir todas as modalidades conhecidas de “crimes de quarto fechado”, crimes que têm esse aspecto impossível. Quando um dos amigos lhe pergunta o porquê dessa discussão, ele responde:
 
– Porque – disse o doutor, com toda franqueza – nós estamos num romance policial, e não queremos fazer o leitor de idiota fingindo que não estamos.
 
É uma “quebra da quarta parede” digna de um romance modernista ou de vanguarda (coisa que J. D. Carr, aliás, não apreciava muito), mas tem essa sinceridade que às vezes a gente só encontra num certo tipo de literatura onde o autor tem intimidade suficiente com o leitor para dirigir-se a ele como se fossem dois amigos.
 
Num romance detetivesco, o autor propõe um problema curioso, numa história claramente inventada, e o leitor aceita a história inventada porque o problema lhe desperta a curiosidade.
 
Quando o dr. Gideon Fell discute as engrenagens dramatúrgicas do gênero (um longo trecho dessa discussão pode ser encontrado aqui: http://www.thelockedroom.com/2014/06/the-locked-room-lecture.html) ele está sendo apenas levemente moderno – como o foram, em tantos momentos, autores como Cervantes, como Laurence Sterne, como Machado de Assis, como Borges, como tantos outros que conseguiam contar histórias verossímeis e até emocionantes, e ao mesmo tempo bater no ombro do leitor e trocar um comentário de vez em quando.
 
O romance realista acaba sendo uma tentativa frustrada de substituição da realidade. Seus praticantes sabem que isso não é possível, mas as mecânicas narrativas e de empatia que alimentam esse gênero literário tendem a isso.  Num primeiro momento, obrigam-no a tentar, e num segundo momento, fazem-no dar com os burros nágua.
 
“Realismo” é um conceito sempre datado. Sempre que falam em literatura realista, me vem à lembrança este trecho de Robert Scholes (“The Roots of Science Fiction”, em Science Fiction – A Collection of Critical Essays, ed. Mark Rose, Prentice Hall, 1976):
 
Na história do romance propriamente dito, podemos traçar um arco de ascensão e declínio do predomínio da ficção sentimental do século 18, de uma ficção mais sociológica e histórica no século 19, e finalmente de uma ficção mais psicológica e intimista no começo do século 20. Todas estas formas receberam o nome de “realismo”. (trad. BT)
 
Sempre lembrando que essas formas não substituem umas às outras: elas se superpõem às mais antigas formando uma nova camada, mas tudo isso continua existindo. A ficção sentimental a que Scholes se refere, p. ex., conhece ainda hoje um sucesso fenomenal através de Barbara Cartland, Danielle Steel, Barbara Delinski, Nicholas Sparks etc – histórias devidamente contaminadas pelas camadas dos séculos 19 e 20.
 
O romance detetivesco tende ao contrário: não faz muito esforço para ocultar sua natureza de mera história, mas confia que essa “mera história” será suficiente para levar o leitor consigo, porque lhe propõe um enigma de natureza puramente intelectual, e não um retrato “realista” do mundo.
 
Fazendo uma comparação um tanto herética, mas apenas para dar uma noção de proporção, eu diria que a literatura realista mainstream equivale, em sua faixa de romances históricos e sociais, às grandes pinturas de Rembrandt, de Velázquez, de Delacroix, obras que reproduzem experiências coletivas bem reconhecíveis, e, em sua faixa de romances psicológicos, o intimismo de Vermeer, com seus interiores e seus retratos.
 

(Rembrandt, A Ronda Noturna)

Já o romance detetivesco poderia ser comparado às gravuras de M. C. Escher. Não existe ali grande preocupação em descrever os hábitos de uma sociedade, ou de um período histórico, ou mesmo de investigar a alma e os sentimentos das pessoas retratadas. Os objetos retratados, aliás, parecem ser escolhidos meio por acaso. É um tipo de arte que, mais do que envolver a memória ou as emoções do observador, ensina-o a ver. Há um conjunto de pistas visuais que interpretamos de um modo, e o gravurista nos mostra, geralmente por superposição, ou por transformação gradual, que podemos ver aquilo de uma maneira completamente diversa.



(gravura de M. C. Escher)

São obras visuais que não se contradizem umas às outras, mas se complementam, e não faz muito sentido querer que um romance (ou conto) detetivesco de “quarto fechado” seja ao mesmo tempo um retrato profundo da sociedade que o produziu ou um mergulho no fluxo de consciência dos seus personagens.
 
Eu diria que o crescimento exponencial do mercado literário nos últimos 120 anos foi quem acabou afastando essas duas literaturas. Mais do que qualquer preconceito. Os escritores dos “gêneros populares” (policial, FC, etc.) se queixam muito de preconceito; o preconceito existe, mas é resultado de má informação, que é resultado da expansão de um mercado onde não se pode conhecer tudo ao mesmo tempo. (Sei disso porque passei a vida tentando e não consegui.)
 
Daí, a crítica acadêmica em geral (falo das Américas e da Europa) concentrou-se no chamado romance realista / sociológico / psicológico / vanguardista / experimental. Cada segmento destes precisaria de várias vidas humanas para ser bem conhecido e bem estudado.
 
O mesmo se dá no interior dos gêneros. Os críticos e pesquisadores do romance policial têm à sua disposição os universos contíguos do noir-hardboiled / detetivesco / procedimentos-policiais / crime / espionagem / thriller... Não se pode conhecer a fundo isto tudo ao mesmo tempo – e como encontrar espaço para incluir a literatura mainstream?
 
Nunca foi tão fácil se refugiar num gueto quanto nesta época de muitas opções. Se alguém quiser ler apenas “histórias de FC sobre terraformação de planetas” ou “histórias policiais sobre serial-killers urbanos”, terá leitura suficiente para o resto da vida, se souber ler vários idiomas.
 
 
 





quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

4668) Um novo dicionário da Ficção Científica! (27.1.2021)




Está no ar, há poucos dias, o saite do Historical Dictionary of Science Fiction (HD/SF), que no meu primeiro exame, detalhado abaixo, me parece um excelente instrumento para leitores, tradutores, autores, editores e interessados em geral na literatura de FC.
 
O Dicionário se apresenta nestes termos:
 
Esta obra-em-progresso é um abrangente dicionário, fundamentado em citações diretas, da linguagem da ficção científica. O HD/SF é um efeito colateral de um projeto iniciado pelo Oxford English Dictionary, embora não esteja mais oficialmente ligado a ele. É editado por Jesse Sheidlower.
 
Jesse Sheidlower fornece o link para sua página pessoal (https://www.jessesword.com/), onde ficamos sabendo que ele é lexicógrafo, professor assistente do programa de Escrita da Universidade de Columbia. Trabalhou como editor em dicionários da Random House e no Oxford English Dictionary.
 
Ele é também o autor do livro The F--- Word, uma história detalhada da palavra “fuck” – o que, pelo menos aos meus olhos plebeus, o traz bem mais para perto do mundo ciencificcional.


 
O Dicionário se anuncia modestamente (e realisticamente) como uma obra-em-progresso. Toda obra de referência é obra em progresso. Edições sucessivas das grandes enciclopédias se esforçavam para manter essa atualização constante, que hoje se torna muito mais fácil com a edição online e interferências em tempo real. (Visíveis ao público no momento em que são oficialmente incorporadas.)
 
Vamos ao Dicionário.


Sua página de acolhida (imagem acima) exibe dois campos de busca, onde podemos consultar tanto uma palavra quanto um autor – para saber quais são as palavras abonadas em obras suas. (A propósito, o Dicionário informa que os autores mais citados são Robert Heinlein (178 citações), Poul Anderson (164), Isaac Asimov (126), Edward E. Smith (104), Robert Silverberg (83), Arthur C. Clarke (82).
 
Do lado esquerdo vemos um menu corrediço com as palavras linkadas, e do lado direito uma versão mais explicativa (e igualmente linkada) do mesmo menu, dando uma “palhinha” do significado do termo, para ajudar a encaminhar a consulta.
 
Busquei um dos meus termos preferidos da invenção da FC, o “disruptor”, arma tremenda imaginada por Edmond Hamilton em Os Reis das Estrelas (“The Star Kings”). Minha curiosidade: será que foi neste livro que a palavra foi inventada?

 
O verbete do “disruptor” tem uma breve descrição, uma rubrica indicando que pertence à categoria de “Armamentos” (“Weaponry”), e diz que a primeira menção é de 1931, num texto de Nat Schachner e Arthur Leo Zagat, na revista Wonder Stories, de abril daquele ano. A citação de Edmond Hamilton, que arregalou meus olhos de menino, aparece um pouco mais abaixo; é de 1949.
 
Infelizmente, não cita o título do conto. Felizmente, tem um botão-link azulzinho, ao lado, “Page Image”, e clicando nele vamos parar aqui:



É uma janela do Internet Archive mostrando a página exata onde foi colhida a citação. Entrando na revista e voltando um pouquinho, o leitor registra que o conto de chama “The Emperor of the Stars”. 
 
Por curiosidade, cliquei no outro botão, “Author Page”, referente a Jack Williamson. Clicar nesse tipo de link nos conduz a uma página onde estão classificadas todas as citações extraídas desse autor específico. Aqui abaixo, duas imagens da seção dedicada ao grande Jack Williamson, grande autor de aventuras interplanetárias que o cinema (creio eu) ainda não descobriu.




Procurei também as citações mais recentes da palavra “disruptor”, pois tive curiosidade de saber se um termo tão clássico (citei-o, aliás, num dos meus contos de A Espinha Dorsal da Memória) continua em voga.
 
Encontrei estas três referências, de 1995 e 1998:

 
Neste setor, podemos observar um novo tipo de botão, o botãozinho verde “Bibliography”. Clicando no botãozinho verde relativo ao autor “Greg Cox”, vamos parar num dos portais mais importantes e indispensáveis da web de FC, o precioso Internet Science Fiction Data Base (ISFDB), que visito praticamente em todos os 365 dias do ano:

 
Por esse breve passeio, me parece que o HD/SF tem um bom caminho para percorrer. O jargão da ficção científica é imenso, e de um modo geral os estudiosos os organizam em alguns departamentos:
 
-- Termos científicos, que a FC re-utiliza, muitas vezes modificando seu conteúdo;
-- Termos científicos ou pseudo-científicos inventados no contexto das histórias de FC, e que às vezes se incorporam à linguagem corrente (“robot”, “ciberespaço”, etc.)
-- Termos inventados por um autor e que ficam circunscritos à sua obra;
-- Termos relativos ao mundo extra-livro da FC: gíria dos fãs e dos leitores, jargão editorial e crítico.
 
Se o HD/SF cobrir todos estes campos, presta um bom serviço. Já localizei numerosos termos da gíria do fãs e fanzinistas dos anos 1930-40.
 
A World Wide Web fervilha de portais e websaites dedicados à FC. Muita coisa boa. Como eu sou crítico, antologista, etc., preciso pesquisar com frequência informações precisas (datas, nomes, títulos, local e ano de publicação, versões distintas do mesmo texto, etc.).
 
Os dois lugares mais confiáveis que conheço são o (já citado acima) Internet Science Fiction Data Base e The Science Fiction Encyclopedia, editada por John Clute, da qual sou colaborador.
 
Links:
 
Vamos cruzar os dedos e esperar que as pessoas responsáveis pelo novo Dicionário consigam levar adiante este trabalho. Em muitos casos é um trabalho não- ou mal-remunerado, ao qual as pessoas se dedicam porque têm outros empregos (geralmente como professores universitários) que lhes dá tranquilidade financeira e algum tempo livre para pesquisar e compartilhar seus resultados.
 
Compartilhemos!
 
 






domingo, 24 de janeiro de 2021

4667) Primeiras Estórias: "Pirlimpsiquice" (24.1.2021)




 
É um dos melhores contos que já li sobre teatro. E sobre a arte do improviso.
 
Dentro do livro Primeiras Estórias (1962) de Guimarães Rosa, é uma das histórias de ambientação mais chegada ao urbano, à cidade. Mais do que às fazendas, sítios e pequenos vilarejos onde o autor costuma ambientar seus enredos.
 
Tudo ocorre dentro de um colégio interno que tem algo do Ateneu (1888) de Raul Pompéia, aqueles alunos buliçosos e em permanente refrega, os diretores pomposos, cheios de retórica retumbante. E é o avesso do Ateneu, porque ao fim e ao cabo o conto é alegre, divertido, o autor costura enredos entrecruzados de conflitos, engenhosidades, trapalhadas.
 
Mediante uma efeméride qualquer, o colégio resolve encenar uma peça de teatro, Os Filhos do Doutor Famoso, e para isso convoca onze ou doze alunos sob a batuta do Dr. Perdigão (“lente de corografia e história-pátria”). Começam os ensaios! 
 
Pequenos solavancos de início: Zé Boné, gozador compulsivo, precisa ser posto nos eixos; Ataualpa e Darcy, que farão papéis de pai e filho, estavam de-mal, mas selam as pazes trocando selos estrangeiros para as respectivas coleções.
 
Combinam todos que o enredo da peça deve ser mantido em segredo absoluto, sem vazar informação, até a estréia. E todos desconfiam da capacidade do Zé Boné manter o trato, ele o irrequieto, “o basbaque”:
 
Sem fazer conta de companhia ou conversas, varava os recreios reproduzindo fitas de cinema: corria e pulava, à celerada, cá e lá, fingia galopes, tiros disparava, assaltava a mala-posta, intimando e pondo mãos ao alto, e beijava afinal – figurado a um tempo de mocinho, moça, bandidos e xerife.
 
Zé Boné é o teatro em estado puro, coringal, brechtiano, mas como se trata de um colégio do tempo do pincenez, dão-lhe um papel minúsculo de “policial”, com poucas falas. E o narrador da história também se contenta com o papel de “ponto” – aquele assistente que fica escondido, “soprando” as falas que os atores venham a esquecer no calor da refrega.


(Brincante, de Antonio Nóbrega e Walter Carvalho)


Surge um perigo: dois alunos não escalados para a peça, o Tãozão e o Mão-na-Lata, formam oposição e ameaçam descobrir o segredo. O grupo confabula e resolve inventar uma história falsa, alternativa, que seria vazada aos poucos, protegendo assim a história original. E começam a sugerir cenas imaginárias:
 
E o Tãozão e o Mão-na-Lata no assunto do teatro nem tocavam, fingindo decerto não dar a tanta importância. Mas, a outra estória, por nós tramada, prosseguia, aumentava, nunca terminava, com singulares-em-extraordinários episódios, que um ou outro vinha e propunha: o “fuzilado”, o “trem de duelo”, a “máscara”: “fuça de cachorro”, e, principalmente, o “estouro da bomba”. (...)  Já, entre nós, era a “nossa estória”, que, às vezes, chegávamos a preferir à outra, a “estória de verdade”, do drama.
 
É um mecanismo interessante. Por cima da Obra oficial cria-se, por emergência eventual, uma Contra-obra menos elevada, mas emocionalmente mais próxima dos que a executam. Como aqueles músicos de Sinfônica que no sábado se reúnem num bar para tocar jazz. (O lema do Dr. Perdigão é: “Lembrem-se: circunspecção e majestade!”)
 
Digressão: Conta-se que Garcia Márquez, quando escrevia Cem Anos de Solidão, trabalhava de dia, e de noite ia beber com seu amigo Álvaro Mutis. Comentava episódios do romance em preparo, e pedia dicas sobre tal personagem, tal cena, etc. Quando o livro foi publicado, Mutis descobriu que era tudo mentira: para esconder o livro de verdade, Márquez improvisava toda noite sua “outra história”, o que o ajudava a descontrair.
 
Eis senão quando, de tanta curiosidade que borbotava em volta dos atores-conspiradores, começa a circular o boato: a história vazou! 
 
De fato, circulava outra versão, completa, e por sinal bem aprontada, mas de todo mentirosa. Quem a espalhara? O Gamboa, engraçado, de muita inventiva e lábia, que afirmava, pés juntos, estar dono da verdade.
 
Brota portanto uma terceira estória da peça, e os atores aferram-se à sua verdade original:
 
Por ora, também, tínhamos de combater essa estória do Gamboa, que nos deixava humilhados. Repetíamos então, sem cessar, a nossa estória, com forte cunho de sinceridade.
 
O narrador vê todos os colegas com o texto na ponta da língua e se aperreia: então não vão precisar do ponto?!  E na véspera da estréia surge uma ameaça inesperada:
 
Nisso, porém, sobreveio-nos o trom de Júpiter. O padre Diretor assistira ao quinto ato. Ele era abstrato e sério: não via a quem. Sem realces, disse, que nós estávamos certos, mas acertados demais, sem ataque de vida válida, sem a própria naturalidade pronta...

 
E os quase-estreantes vão dormir com um barulho desse. E na manhã do dia fatal, outro terremoto: a família do Ataualpa manda buscá-lo urgente para ver o pai moribundo, e só quem pode tomar seu lugar na peça sou eu! O narrador! O único que sabe todas as falas de cor, por ser “o ponto”!
 
Platéia cheia a mais não caber, zum-zum-zum, calor, luzes que se reduzem, cortinas que se abrem. E o narrador constata, só ali, de frente para “o povaréu de cabeças”, que a abertura mesmo da peça era um poema religioso e cívico que seria recitado pelo personagem do Ataualpa, mas esse poema só o Ataualpa sabia! 
 
Dá nele o famoso “branco”, nêmesis dos atores desde a Grécia. Sem falar, bloqueado, o narrador vê a risadaria geral do povo diante da peça que não começa, os gestos enérgicos dos professores cobrando-lhe ação! E ele não sabe o poema de abertura! E aí começa a vaia.
 
Com a vaia estrondando no teatro inteiro, acontece então a mais imprevisível das respostas. Zé Boné pula na frente! 
 
A vaia parou, total.
Zé Boné representava – de rijo e bem, certo, a fio, atilado – para toda a admiração. Ele desempenhava um importante papel, o qual a gente não sabia qual. Mas, não se podia romper em riso. Em verdade. Ele recitava com muita existência. De repente se viu: em parte, o que ele representava, era da estória do Gamboa! Ressoaram as muitas palmas.
 
E desse ponto em diante a estória se encaminha para o desfecho lúdico e festivo. Há uma lição de estética e retórica embutida no episódio. Parece bastante clara: de nada adianta ter uma história articulada, circunspecta, perfeita, decorada na ponta da língua, se lhe falta (como o padre Diretor percebera) “ataque de vida válida”.
 
Essa “vida” é quem salva o espetáculo depois do branco inicial. Zé Boné, vendo a necessidade de se fazer alguma coisa, faz a primeira que lhe vem à cabeça, o que às vezes é mesmo a melhor solução. Com isso, ele zera o script e a peça começa da estaca zero, podendo contar apenas com a memória do elenco a respeito das três histórias sabidas por todos: a peça original, a peça-falsa de despiste, e a peça do Gamboa.



E a noite de glória se transforma na apoteose do Repente, do Improviso:
 
Eu mesmo não sabia o que ia dizer, dizendo, e dito – tudo tão bem – sem sair do tom. Sei, de mais tarde, me dizerem que tudo tomava o forte, belo sentido, esse drama do agora, desconhecido, estúrdio, de todos o mais bonito, que nunca houve, ninguém escreveu, não se podendo representar outra vez, e nunca mais.
 
“Pirlimpsiquice” é o nome que Rosa dá a esse fenômeno que tem um pouco do pó mágico de pirlimpimpim (Rosa era um admirador de Monteiro Lobato) e dos fenômenos psíquicos pelos quais ele tanto se interessava.
 
Na tradução norte-americana de Barbara Shelby, o próprio Rosa sugeriu traduzir o título por “Hocus Psychocus”, a mesma brincadeira em cima da expressão “hocus pocus”, latim macarrônico do século 17 usado pelos mágicos, uma espécie de “abracadabra”.
 
O conto é uma pequena Teoria do Improviso, com um exemplo cabal traçado e cumprido de A a Z. Uma peça inteira, decorada na ponta da língua, precisa ser reinventada no gume do instante, por causa de imprevistos. O que salva o elenco?
 
Primeiro, os ensaios, que rolavam há semanas. Mesmo que o texto recriado na hora da apresentação fosse uma mixórdia das três narrativas, o fato de que todo mundo as conhecia, os eventos, personagens, situações, numerosas falas, os dispensava de criar. O improviso era acima de tudo recombinatório, ficando a invenção de falas inéditas apenas para suprir as lacunas.
 
Segundo, a pressão do público. Sem essa pressão ninguém cria. Se fosse um ensaio, tinham parado para tomar água e não recomeçariam nunca. O fato de agora ser tudo pra valer obrigou a acontecer alguma coisa.
 
Terceiro, a coragem de mergulhar no desconhecido, estimulada talvez pelo fato de que os atores eram todos garotos, nenhum deles tinha uma reputação a defender, um nome a zelar.
 
E então... Pula-se no abismo. Veja-se como os verbos “pular”, “saltar” e equivalentes são usados pelo autor para indicar o gesto decisivo do “agora-vai”.
 
Na hora em que a vaia estronda e é preciso fazer alguma coisa...
 
Zé Boné pulou para diante, Zé Boné pulou de lado. Mas não era de faroeste, nem em estouvamento de estrepolias. Zé Boné começou a representar!
 
Note-se que era o mais estouvado do grupo, o menos confiável como ator, porque o mais livre; e a quem tinham dado papel de mero figurante quase sem falas.
 
Na hora em que o narrador, no palco, percebe que precisa terminar a peça de algum modo...
 
Cheguei para a frente, falando sempre, para a beira da beirada. Ainda olhei, antes. Tremeluzi. Dei a cambalhota. De propósito, me despenquei. E caí.
 
É o fecho triunfal da peça improvisada, sucesso absoluto. O que não impede de no dia seguinte, no recreio, o Narrador ser abordado pelo Gamboa, que se gaba: “Viu como era que a minha estória também era a de verdade?”  E ele fecha o conto:
 
Pulou-se. Ferramos fera briga.
 
Pular é o gesto sem-volta do ato criativo. Subir no palco para improvisar é como entrar numa briga, onde se sabe o que precisa ser feito e como, mas cada decisão tem que ser ser tomada no pirlimpimpim do milissegundo.

 


(mamulengueiro Chico Simões -- foto IPHAN)
 
 








quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

4666) Minhas Canções: "Balada de Robert Johnson" (21.1.2021)



Quando comecei a fazer meus shows mambembes no Nordeste, de 1979 em diante, eu costumava explicar, antes de cantar uma música, que minhas canções pertenciam a alguns gêneros de música folclórica inventados por mim: batuque apocalíptico, baião filosófico, rock repente, bolero brechtiano, embolada comportamental, blue etílico...

Quando vim para o Rio em 1982 descobri que existia aqui uma banda chamada Blues Etílicos, graças à fatalidade telepática que faz com que indivíduos parecidos, com idéias-fixas parecidas, tenham idéias parecidas.

Passaram-se alguns anos e acabei me tornando amigo da banda, principalmente do gaitista Flávio Guimarães, um apaixonado pela música nordestina, pelos ritmos populares do Nordeste, e que já gravou inúmeros trabalhos juntando a emoção melódica do blues e os temas do sertão ou da zona da mata.

Certa vez eu conversava com Michael Grossmann, norte-americano radicado em São Paulo, que estava ajudando a produzir o novo disco solo de Flávio. Falávamos de nossa admiração em comum por Robert Johnson, o bluesman lendário que morreu jovem e deixou apenas um pequeno número de canções gravadas.

Eu ouvi muito essas canções no elepê King of Delta Blues Singers, na famosa “Casa 9” carioca onde durante alguns anos moraram Lenine, Ivan Santos, Alex Madureira, Júlio Ludemir e vários outros visitantes esporádicos, entre os quais Pedro Osmar e eu próprio.


Sugeri a Michael escrever um cordel contando a vida de Robert Johnson, e que a canção resultante fosse gravada por Sebastião da Silva, um cantador de quem eu era amigo desde os idos do Congresso de Violeiros de Campina Grande nos anos 1970. Michael tinha uma enorme coleção de elepês de cantoria, trazia cantadores ao seu apartamento de vez em quando, e era também amigo de Sebastião; topou na hora.

Escolhi desde logo o formato da décima composta por uma quadra e dois tercetos (4-3-3), com esquema de rimas ABCB-DDE-FFE. É uma décima muito usada pelos poetas do Vale do Pajeú, e diferente da décima tradicional com que se glosam motes, cujas rimas seguem o esquema ABBAACCDDC.

A música foi composta em novembro de 2000, e gravada no mesmo mês, num estúdio de São Paulo. Na mesma sessão, compusemos e gravamos outra música, “Destilaria”, que viria a aparecer apenas anos depois, noutro disco do Blues Etílicos. Eu gravei um dos violões; o outro foi de Otávio Rocha.

 

A “Balada de Robert Johnson” foi lançada no CD , Navegaita (2003). ficou um primor de gravação, pela interpretação intensa de Sebastião da Silva, com sua voz metálica e expressiva, a gaita de Flávio, o baixo acústico, os efeitos de guitarra slide de Otávio. Tornou-se um número habitual nos shows de Flávio, e cheguei a cantá-la no palco algumas vezes, acompanhado pela banda, no saudoso “Mistura Fina” da Lagoa.

Não demorou muito para que ela aparecesse no YouTube, em videoclips que receberam variadas edições, com imagens colhidas de filmes antigos sobre o blues do Mississipi.

https://www.youtube.com/watch?v=bF0SHbnqvpM&ab_channel=142857als


BALADA DE ROBERT JOHNSON

(Braulio Tavares e Sebastião da Silva)

(versão original completa)

 

 

1

Seu mundo era rutilância

seu mundo era escuridão

seu nome era Robert Johnson,

cantador doutro sertão.

Vinte e sete anos vividos

lá nos Estados Unidos

passou, veloz como a luz...

Naquela terra sombria

onde a tristeza e poesia

se dá o nome de blues.

 

2

Sua mãe teve onze filhos,

seu pai ele nunca viu.

O mundo em que foi criado

lembrava muito o Brasil.

Era neto de escravos,

dos negros fortes e bravos

colhedores de algodão.

Nunca pisou numa escola:

escreveu com a viola

e leu com o coração.

 

3

Dizem que foi o Diabo

quem lhe ensinou a tocar,

em um encontro marcado

numa noite sem luar.

Cruzando as estradas tortas

daquelas veredas mortas

chegou  na encruzilhada:

veio com a mão vazia

e partiu com melodia,

ponteio, rima e toada.

 

 

4

Outros garantem que é lenda

que o Diabo não existe,

que Johnson cantava o blues

só por ser poeta e triste.

Empunhava o instrumento,

recitava um sentimento

na sua vida andarilha;

e a tristeza era uma fera,

um cão negro, uma pantera

farejando a sua trilha...

 

5

Correu estradas de ônibus,

de caminhão ou de trem,

ora cantando sozinho

ora em dupla com alguém.

Andava dias inteiros

ao lado dos companheiros

sob o sol mais escaldante,

porém sempre se mantinha

vestido com toda linha

bem-cuidado e elegante.

 

 

6

Tinha o dom de encantar

a quem estivesse vendo

sua voz chorando um blues

e seu violão gemendo.

Na luz mortiça dos bares

com uma troca de olhares

conquistava um novo amor,

e aquela mulher vadia

nessa noite lhe trazia

mistério, prazer e dor.

 

 

7

Buscando uma namorada

procurava as mais feiosas:

as mulheres solitárias,

carentes e carinhosas.

A mulher que o aceitava

com todo gosto lhe dava

o corpo, a casa e a cama.

E ele deixava que ela

julgasse ser a mais bela

na ilusão de quem ama.

 

 

8

Uma noite numa festa

tocava de madrugada

e começou um namoro

com uma mulher casada.

Sedutor e seduzido,

cantava com o sentido

naquele corpo moreno,

quando um copo alguém lhe deu:

ele pegou e bebeu

sem saber que era veneno.

9

Foi como um rio de fogo

que lhe desceu na garganta,

mas a paixão era muita,

e sua sede era tanta!

Passou-se mais de uma hora,

e enquanto o povo lá fora

bebia, ria e dançava,

por dever de cantador

ele gemia de dor

e fingia que cantava.

 

 

10

Saiu dali carregado

para o quarto da pensão;

morreu e deixou somente

a mala e um violão.

Não levou fama nem glória

não deixou nome na história

não levou riso nem mágoa...

Foi um sopro de poeira,

uma nuvem passageira,

um nome escrito na água.

 

 

11

Foi assim que Robert Johnson

passou pelo nosso mundo:

brilhou durante alguns anos,

apagou-se num segundo.

Não deixou seu nome escrito

no mármore, no granito,

nas armas ou nos brasões.

O que deixou para nós

foram os versos e a voz

e vinte e nove canções.

 

Repete:

O que deixou para nós

foram os versos e a voz

e vinte e nove canções.

 







segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

4665) Contracapa de StreamYard (18.1.2021)



(Peter Kogler)

&   o único beco sem saída é a realidade
 
&   nem adianta teorizar o romance, no virar da primeira página de qualquer livro mil conceitos já caducaram
 
&   vou fazer de conta que foi de propósito, não, que foi por acaso, não, que foi uma grata surpresa, esta catástrofe final
 
&  não posso respeitar um Deus que se faz lisonjear por sacripantas dessa qualidade  
 
&   o pior de perder a esperança é não poder voltar atrás pra ver onde ela caiu
 
&   todo crime, por mais que se planeje, é cometido às pressas
 
&   certas coisas no mundo só são explicáveis pelo fato de um prego precisar de um martelo para poder funcionar
 
&   a esperança é um cheque sem fundos que uma pessoa passa para si mesma
 
&   um artista, quando não está pescando no seco, está chovendo no molhado
 
&   tem dias que cada palavra é escrita como se a gente estivesse dobrando um arame
 
&   o álcool é o vício que não consegue articular seu nome
 
&   era um cara tão poderoso que a cigana lia a mão dele para saber o futuro dela
 
&   tem gente que vive procurando chifre em cabeça de cavalo, e pior é que é no espelho
 
&   o que importa não é a marca da pistola, mas o lugar onde a bala acerta
 
&   tem gente acendendo uma vela a Deus, mas comprada na mercearia do Diabo
 
&   já desisti do futuro, só quero que me deixem aqui, no aconchego das minhas saudades
 
&   o livre-arbítrio é uma carta branca, o pecado é um cartão vermelho
 
&   se qualquer coisa pode ser traduzida em palavras ou em dinheiro, por que é tão difícil transformar aquelas neste?
 
&   ninguém é tão visível quanto um cara com (digamos) uma venda preta nos olhos, e ninguém é tão invisível quanto ele mesmo depois que a retira  
 
&   viver é fazer de conta que o Inevitável nos surpreende e que o Inefável nos define 
 
&   aqui jaz aquele cujos versos foram escritos com água
 
&   o blues é uma tristeza homeopática que à medida que se cura se realimenta  
 
&   se o Mediterrâneo invadisse o Saara não se lucraria um só hectare de terra
 
&   ler é como entrar num táxi sem saber para onde o motorista vai nos levar
 
&   um rato roendo um livro para se esconder dentro dele
 
&   o jeito é viver sem seguro e aprender sem tutorial
 
&   um dos perigos do raciocínio binário é quando começam a achar que um raciocínio ternário seria a solução  
 
&   ninguém atravessa duas pontes ao mesmo tempo 
 
&   política é como futebol no rádio, a gente tem que acreditar no que está sendo contado  
 
&   quando a gente acha que alguém sabe muita coisa sempre imagina que ele sabe muito mais
 
&   todos os dias venho à rede social onde se servem venenos; cheio de esperança, alinho-me entre os bebedores
 
&   a religião monoteísta não passa de uma monarquia virtual
 
&   estou de saco cheio com gente sem competência tentando compensar com excesso de competitividade
 
&   a juventude é aquele momento mágico no restaurante, em que a gente abre o cardápio
 
&   certos indivíduos me dão a sensação de estar vendo um tapuru de terno e gravata
 
&   e a alma fugiu-lhe do corpo como quem foge de uma casa em chamas
 
&   um morto-vivo é alguém que foi dado como morto mas aparece vivo, e um vivo-morto é alguém oficialmente vivo, mas que para todos os efeitos já deixou de existir 
 
&   não brinquem com essas coisas: a História registra casos em que um mandato-tampão durou quatro décadas
 
&   dinheiro é uma coisa que dá muita despesa
 
&   quando você ia para as uvas eu já vinho
 
&   às vezes é preciso a gente perder tudo que tinha para compreender que nunca teve nada  
 
&   ainda veremos guerras religiosas entre os partidários do Velho Testamento e os do Novo
 
&   o mundo se moderniza mas permanece sempre o mesmo, sem bulha nem matinada
 
 
 
 
 
 
 
 
 






sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

4664) Lupin, o ladrão de casaca (15.1.2021)


Arsène Lupin é o ladrão-de-casaca criado por Maurice Leblanc entre 1905-1935, um ladrão-detetive como Rocambole, de Ponson du Terrail, que provavelmente foi uma de suas fontes de inspiração. Ele é um “gentleman cambrioleur”, um gatuno elegante, o rei do disfarce, dos nomes inventados, dos falsos documentos, e graças a isso circula por Paris inteira sob uma infinidade de identidades falsas. Não mata: rouba apenas, e preferencialmente dos ricos e não-necessitados.

Na evolução de sua carreira de personagem, Lupin transformou-se (sem deixar de ser “o ladrão mais famoso da França”) uma espécie de detetive por conta própria. Ele soluciona enigmas históricos, recupera jóias ou relíquias da História francesa, decifra criptogramas, e de um modo geral consegue solver mistérios célebres que há séculos deixavam perplexos os historiadores, a polícia, as autoridades.





A série Lupin sendo exibida pelo Netflix moderniza de maneira hábil os romances originais. Em vez de pegar o mesmo personagem e ambientá-lo nos tempos de hoje, como fez com sucesso o Sherlock com Benedict Cumberbatch, os autores simplesmente pegaram um personagem de hoje que é fã dos romances de Leblanc e extrai deles técnicas, gimmicks, inspirações, truques etc.

A série é fiel ao espírito de Leblanc inclusive na leve implausibilidade de muitas situações, que o autor original tirava de letra com bom humor. Leblanc levava suas obras a sério, mas a fórmula da obra permitia e até mesmo exigia esses exageros lúdicos. Era uma fórmula a meio caminho entre o romance folhetim francês do século 19 e a pulp fiction das revistas modernas, cuja Era de Ouro estava começando.

Praticamente todas as aventuras de Arsène Lupin foram publicadas em forma de folhetim serializado nas revistas Je Sais Tout, Le Journal etc.  Lupin está tão ligado à Je Sais Tout quanto Sherlock Holmes está ligado a The Strand.



É uma literatura de rasgos teatrais, extraordinários, onde em muitos momentos a vibração da aventura e do perigo se sobrepõem à lógica, num equilíbrio delicado que nem todos os autores de ficção popular conseguem manter. A engenhosidade dos golpes, dos assaltos e das fugas só tem valor se ocorrer em situações onde o leitor experimente uma sensação real de perigo. Por outro lado, um excesso de realismo acaba se tornando um freio-de-mão-puxado; o autor precisa às vezes contar com certa cumplicidade pouco exigente do público, para que certas peripécias possam acontecer.

A primeira temporada da série criada por George Kay e François Uzan, com Omar Sy no papel de Lupin, equilibra-se muito bem entre as pressões opostas da exigências e do exagero. As referências diretas ou sutis aos livros de Leblanc são muitas, mas os criadores acertam em dar vida própria e perfil próprio aos seus personagens.



É o mesmo acerto, aliás, da franquia japonesa (mangás, filmes de animação) Lupin III, criada por Monkey Punch (Kazuhiko Kato), também excelentes. São as aventuras de um pretenso neto do Arsène Lupin francês – de tal modo que as antigas histórias servem de ponto de partida para peripécias num novo contexto, sem que nenhum dos dois planos de narrativa sirva de estorvo ao outro.

A Netflix tem este ótimo longa-metragem do Lupin japonês:



Os livros de Arsène Lupin foram uma leitura formadora entre meus 10 e 15 anos. Li todos, e tenho todos até hoje (não os mesmos exemplares, claro), nas edições da Vecchi, todos com “artísticas sobrecapas a cores do pintor Nils”. Foi esse Nils quem criou para mim a imagem do Lupin original: branco, bigode preto fino, monóculo, cartola. As capas são ótimas, embora tenham uma certa propensão a dar spoilers de detalhes fundamentais dos romances. 

Releio Lupin sempre que posso, para não perder de memória a agilidade narrativa e a coragem diante do implausível. Durante a quarentena, em 2020, reli Rolha de Cristal (1912) e Mansão Misteriosa (1928).


Anos depois, coube à Nova Fronteira, relançar a série completa, com novas traduções e novo projeto gráfico.

Lupin, da Netflix, restaura aspectos essenciais da literatura em que se inspira. Existe a engenhosidade dos golpes, como em todo filme-de-assalto em que primeiro vemos a descrição precisa do que os assaltantes planejam (e que esperamos que aconteça) e em seguida vemos o assalto real ocorrendo e os detalhes imprevistos sendo administrados na hora. Há um filme de Ronald Neame, com Shirley MacLaine, Como possuir Lissú, em que esse contraste entre planejamento e realidade é satirizado de forma impagável na sequência inicial.

Grande parte do sucesso da série está no modo como o protagonista, Omar Sy, mostra-se à vontade no papel, e encarna algumas das características do Lupin original: inteligência rápida, bom humor, charme sedutor (todos os romances de Arsène Lupin, que tinha um enorme público feminino nos anos 1920, incluíam um caso amoroso), agilidade e domínio das artes marciais, capacidade infinita de se disfarçar e “ficar invisível”.



Este último caso torna-se ainda mais interessante quando Omar Sy é um negro com uns dois metros de altura, características difíceis de apagar, e que põem ainda mais peso nas técnicas de despiste a serem usadas.

A primeira temporada tem como tema “O Colar da Rainha”, um famoso colar que teria sido de Maria Antonieta. É uma escolha sutil e uma homenagem delicada: “O Colar da Rainha” é um conto de 1906, incluído na coletânea inaugural da série, Arsène Lupin: Ladrão de Casaca, em que vemos uma raríssima aventura de Lupin ainda criança, começando precocemente sua carreira de ladrão de preciosidades. É um dos contos fundadores da tradição lupinesca.

Portanto, o que vemos na tela não é o Arsène Lupin inventado por Maurice Leblanc, mas Assane Diop, um garoto negro em quem o pai “aplicou” a literatura de Maurice Leblanc, e que a partir daí encarnou as qualidades de Lupin pra vingar o pai. A ética, inclusive. É curioso examinar a vasta literatura policial baseada em ladrões fictícios: Lupin, Raffles, o Sinete Cinzento (Jimmie Dale), o Santo (Simon Templar), Irving Le Roy, indo até John Robie, “o Gato”, interpretado por Cary Grant (Ladrão de Casaca, de Alfred Hitchcock).

São ladrões porque têm o dom de furtar, mas em muitas de suas aventuras se comportam como detetives-por-conta-própria, perseguidos ao mesmo tempo pela polícia e por criminosos mais graves. Não são necessariamente aqueles Robin Hoods que roubam dos ricos para dar aos pobres. Não: roubam para si mesmos, para poderem fazer cruzeiros em transatlânticos, frequentar os cassinos de Las Vegas ou Mônaco, conquistar belas socialites e afanar a bolsa de condessas tatibitates.

Nada disso parece ser o objetivo de Assane Diop. Seu objetivo é destruir o milionário Pellegrini, que destruiu seu pai. A primeira temporada de 5 episódios traça com clareza essa linha entre o Lupin antigo e o “Lupin” moderno, e o gancho do episódio final deixa em aberto a questão mais interessante de todas: como vai ser o confronto entre o ladrão-especialista-em-Arsène-Lupin e o policial-especialista-em-Arsène-Lupin?