segunda-feira, 16 de novembro de 2009

1376) Música onomatopaica (11.8.2007)




Uma coisa que alguns leitores de poesia às vezes não percebem, e mesmo quando percebem não aceitam, é que a sonoridade das palavras faz parte da arte poética. É um fator a mais de beleza, é uma região onde o poeta pode exercer sua criatividade, e deve sempre ser levada em conta. Mesmo quando o poeta, como aqueles fotógrafos que se recusam a trabalhar com a cor, prefere abrir mão dela. É um direito do artista, claro. São opções estéticas desse tipo que, somando-se umas às outras, delineiam o perfil do artista. Mas nem por isso a sonoridade deixa de existir no mundo da poesia, ou a cor deixa de existir no mundo da fotografia. Estão aí, doidas para serem bem trabalhadas por quem goste delas e as entenda.

Um grande poema lido em voz alta independe do idioma para que se perceba sua textura sonora. Ouvir um bom ator lendo desde o verso cadenciado e as rimas exatas de Kipling até os ritmos mais complexos e as rimas mais sutis de Eliot é uma experiência estética parcial mas satisfatória, até para quem não sabe inglês. Se na poesia escrita é assim, o que dizer da letra de música? Essa, sim, é sonoridade em estado puro, saltando direto das cordas vocais de um para os tímpanos do outro.

Nem toda letra de música nasce da poesia escrita. Grande parte das letras de música nascem do cantarolar difuso, onomatopaico, com que os compositores acompanham o momento da criação musical ao instrumento. Todo mundo, quando está inventando uma melodia, recorre ao “lalari-lalá”, ao “tantarim-tarim-tantan”, ao “undererê, undererá”. São marcações sonoras que estão ali apenas “guardando o lugar” para versos que virão depois. Muitas vezes, essas sílabas aleatórias se impregnam de tal maneira na melodia que quando é depois a gente só consegue criar os versos seguindo as mesmas rimas, as mesmas finalizações.

E essas coisas acabam se transportando para a letra final. Lembrem do “Can-ganscans-gansculans” de Adoniran Barbosa, do “tchubidu-bidu” de Djavan, do “Wop-bop-abalooba-wob-bop-bem-boom” de Little Richard, do “Bumbum-paticundum-prugurundum” de Aloísio Machado e Beto Sem Braço, do “yeah, yeah, yeah” de Lennon e MacCartney... Sons assim acabam batizando os estilos musicais, daí nos EUA existirem estilos como o “doo-wop” (aqueles coros-a-quatro-vozes das baladas românticas estilo The Platters: “Only yoooou...”), o”cha-cha-cha” latino, e o nosso brasileiríssimo, onipresente e indefinível “chacundum”.

Música é som, e quando a poesia adentra o território da música não pode entrar muda e sair calada, apenas erguendo uma cartolina branca com versos escritos. Tem que abrir a boca, soltar o grito ou caprichar no sussurro, tem que produzir algum som e dizer a que veio. É compreensível que poetas e ouvintes pouco afeitos a isto recuem diante dessa obrigação. Nada contra. Mas tudo que se comunica através do som (e não da página escrita) tem que pagar seu tributo aos deuses da sonoridade. Se não, que graça tem?

1375) O efeito da Coca-Cola (10.8.2007)



Encontrei este texto no saite “No Mínimo”. Não boto a mão no fogo pela verdade científica, mas me pareceu vagamente plausível. Não sei o autor nem a origem do texto, “estou vendendo pelo preço de fatura”. O texto descreve o que acontece no seu organismo quando você bebe uma lata de Coca-Cola.

“NOS PRIMEIROS 10 MINUTOS: 10 colheres de chá de açúcar batem no seu corpo, 100% do recomendado diariamente. Você não vomita imediatamente pelo doce extremo porque o ácido fosfórico corta o gosto. 20 MINUTOS: O nível de açúcar em seu sangue estoura, forçando um jorro de insulina. O fígado responde transformando todo o açúcar que recebe em gordura. (É muito neste momento particular.) 40 MINUTOS: Absorção da cafeína está completa. Suas pupilas dilatam, a pressão sangüínea sobe, o fígado responde bombeando mais açúcar na corrente. Os receptores de adenosina no cérebro são bloqueados para evitar tonteiras.

“45 MINUTOS: O corpo aumenta a produção de dopamina, estimulando os centros de prazer do corpo. (Fisicamente, funciona igualzinho com heroína.). 60 MINUTOS: O ácido fosfórico empurra cálcio, magnésio e zinco para o intestino grosso, aumentando o metabolismo. As altas doses de açúcar e outros adoçantes aumentam a excreção de cálcio na urina. 60 MINUTOS: As propriedades diuréticas da cafeína entram em ação. (Você urina.) Agora é garantido que porá para fora cálcio, magnésio e zinco dos quais seus ossos precisariam. 60 MINUTOS: Conforme a onda abaixa você sofrerá um choque de açúcar. Ficará irritadiço. Você já terá posto para fora tudo o que estava na Coca, mas não sem antes ter posto para fora junto coisas das quais seu organismo precisaria.”

Rapaz... É um negócio arrepiante. É como se alguém descrevesse todo o trajeto de uma petição de aposentadoria no INSS. Para efeito de contraste, vai aqui um comentário de um leitor do saite que se assina “Rico”:

“É um exagero (...). Se em 20 minutos seu figado já converteu toda a a glicose em gordura, como o aumento da pressão pode bombear mais glicose, se você já está com a glicemia baixa novamente? O figado só converte a glicose em gordura se você já estiver com a glicemia alta, se não, você metaboliza-a em energia (seu cérebro é sedento de glicose). Como o ácido fosfórico empurra cálcio e zinco para o cólon? Ele precipita cálcio, mas você precisaria ingerir muito ácido fosfórico para prejudicar a absorção de cálcio. E em qualquer refeição você absorve muito ácido fosfórico, que é abundante nos seres vivos. O aumento da diurese feito pela cafeína não significa aumento de perda de íons, mas apenas de água. O aumento da dopamina ocorre nomalmente quando temos uma sensação prazerosa, etc etc…. Uma bobajada sem base bioquímica ou fisiológica.A única coisa certa é que a Coca e qualquer refrigerante tem MUITO açúcar, portanto evite, dê preferência a sucos naturais; mas de vez em quando não vai matar ninguém.”

Para vocês verem o quanto é difícil optar entre duas teorias científicas.

1374) Onomatopéias (9.8.2007)



(Roy Lichtenstein)

Podemos aprender muito sobre a formação das línguas estudando as onomatopéias, aquelas palavras que procuram reproduzir um som. “Bang” é uma onomatopéia inglesa que reproduz um tiro de arma de fogo, e é uma palavra reconhecível internacionalmente. Nossa nordestiníssima “Pêi” não tem a mesma fama, mas tem a mesma eficácia. Pense numa expressão eloqüente como “Pêi-bufo”. Existe maneira mais descritiva e mais sonora de dizer “tiro e queda”?

Vejam agora a palavra “pipôco” (que os cearenses, p. ex., dizem “papôco”). É uma onomatopéia? Eu creio que sim, porque ela reproduz uma coisa que acontece com freqüência: uma pequena detonação seguida de outra muito mais forte. É o martelinho da espingarda estalando a espoleta (“pi”), e depois o tiro propriamente dito (“pôu”). Algum lexicógrafo virginiano virá me perguntar por que então a palavra não é “pipôu” apenas. E eu responderei que assim seria, se quem inventasse as palavras fossem os lexicógrafos. Mas não é. Essas palavras são uma criação coletiva e aleatória do Povo, e em tais processos a gente só deve tentar explicar as coisas até um certo ponto. Depois, nem Freud explica.

Eu mesmo considero que algumas onomatopéias são erradas. Vejam a palavra “tchibum”, o ruído de alguém mergulhando nágua de certa altura. Está errada. Era para ser algo como “bum-tchi”, porque na verdade ouvimos primeiro a queda pesada do corpo, e depois o espalhar da água que foi jogada ao ar, voltando a cair na superfície. Em casos assim, O Povo me desculpe, mas O Povo errou. Por outro lado, a palavra “atchim” para exprimir um espirro está certíssima: primeiro o ar sendo aspirado para encher os pulmões, e depois a descarga.

Na canção “Filomena e Fedegoso” cantado por Jackson do Pandeiro tem um verso, falando da roupa comprada pelo matuto no Rio de Janeiro: “Ele diz que comprou no magazim... Pois sim! Como vai, seu vuco-vuco?”. Explicar isso a quem não é nordestino é um drama. Primeiro temos que dizer que “vuco-vuco” é onomatopéia de um movimento implacável e contínuo como o de um serrote serrando uma tábua. Depois, por extensão, qualquer agitação que não pára. Depois, por nova extensão, o mercadinho popular (os atuais camelódromos) onde se vendem produtos baratos e por isto vivem numa agitação febril e permanente, que nunca pára. E por fim tem que explicar que esse “como vai” é uma ironia, cumprimentando a roupa: “Como vai, seu vuco-vuco?” (E eu calculo que dirigir-se a algo inanimado, personificando-o, já é uma parenta da onomatopéia: a “prosopopéia”).

Quando Mestre Fuba compôs o “Hino das Muriçocas do Miramar”, usou a palavra “trelelê”, que eu, pelo menos, desconhecia. Talvez fosse uma gíria comum em João Pessoa, mas eu nunca tinha escutado. E aí eu estava com alguns amigos cariocas escutando a música, e um deles me perguntou: “O que é um trelelê?” E eu dei a única resposta que me pareceu cabível: “É um zum-zum-zum zunindo”. Se ele não entendeu, não posso fazer nada.

1373) O apocalipse evangélico (8.8.2007)




Um novo gênero literário está surgindo nos EUA: a ficção científica apocalíptico-evangélica. São livros que têm feito muito sucesso e foram adaptados para o cinema. O nome da série (já com mais de 12 títulos), tirado do primeiro romance, é Left Behind (“Deixados para Trás”). Sua premissa é o fenômeno religioso chamado “the Rapture”, que pode ser traduzido como “rapto”, “arrebatamento”, “abdução”: de um momento para outro, todos os verdadeiros cristãos desaparecem da Terra, levados para o Paraíso, e aqueles que são “deixados para trás” têm que enfrentar um mundo que regride ao caos e à selvageria como num romance de terror de Stephen King, para se redimirem através das boas ações e da fé.

A base dessa crença está em várias passagens bíblicas, como na Primeira Epístola aos Tessalonicenses, cap. 4, versículos 15-16: “Porque o mesmo Senhor com mandato e voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus, descerá do céu: e os que morreram em Cristo ressurgirão primeiro. Depois nós os que vivemos, os que ficamos aqui, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens a receber a Cristo nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor”.

Chamei ao gênero de FC, mas não porque haja uma base científica para essa crença, que é puramente uma questão de fé ao-pé-da-letra no texto bíblico. Mas os temas apocalípticos em geral têm sido terreno literário da FC: guerra nuclear, crise ambiental, invasão alienígena, cataclismos tectônicos... Diferentes receitas de fim-do-mundo foram experimentadas pela FC, de modo que esse apocalipse evangélico guarda pelo menos uma relação de parentesco colateral. O New York Times saudou o romance (de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins) como uma mistura de Tom Clancy, amor romântico, referências bíblicas e macetes “high-tech”.

O mais engraçado é que a série foi transformada num video-game. “Video-game religioso?”, perguntarão alguns. “Que bom! Até que enfim!” Mas eis a descrição do game (intitulado Left Behind: Eternal Forces), feita pelo jornalista Jonathan Hutson: “Imagine que você é um soldado num grupo para-militar cujo propósito é reconstruir a América numa teocracia cristã, e estabelecer no mundo a visão do domínio de Cristo sobre todos os aspectos da vida. Você recebe armamentos de última geração, e instruções para combater os infiéis nas ruas de Nova York. Sua missão é religiosa e militar: converter ou matar os católicos, os judeus, os muçulmanos, os budistas, os homossexuais, e qualquer pessoa que defenda a separação entre a Igreja e o Estado, especialmente os cristãos moderados. Sua missão é travar uma guerra física e espiritual, e todos os que resistirem devem ser combatidos de forma radical”. Interessante esta curiosa mistura de fundamentalismo pós-11-de-setembro, jogos de guerra, comércio, apocalipse e FC militarista. Não é por nada não, mas se era preciso um sinal de que o fim do mundo está perto, então não precisa mais.


1372) O peso fantástico (7.8.2007)


Um dos atributos mais inquietantes e mais raramente usados na narrativa fantástica é o peso de um objeto ou de uma criatura. Coisas excessivamente pesadas ou excessivamente leves nos produzem uma sensação do estranho, do sinistro, do “uncanny”. 

Lembro-me da antiga lenda a respeito de São Cristóvão, um gigante de bom coração que vivia à beira de um rio, transportando pessoas de um lado para o outro. Um dia aparece um menino que pede para ser carregado. Cristóvão o coloca nas costas mas quando começa a caminhar sente que o peso do menino aumenta extraordinariamente a cada passo dado. No meio do rio, ele já não agüenta mais, é como se o garoto pesasse toneladas. Ele se assusta, pergunta a que se deve aquilo, e o garoto responde que é Jesus Cristo, e que pesa daquela forma porque carrega consigo os pecados da humanidade. 

É uma bela lenda, que admite também o seu reverso, porque já ouvi dizer que o ataúde de um criminoso ou de um suicida costuma ser pesadíssimo, como se estivesse carregado de pedras: é o peso da culpa, do pecado não-expiado. 

O peso sobrenatural foi explorado por Ariano Suassuna num episódio no Folheto 33 do Romance da Pedra do Reino, “O estranho caso do cavaleiro diabólico”. O cantador Lino Pedra Verde está indo para o roçado quando vê no descampado, a certa distância, um Cavaleiro sobrenatural de cuja boca aberta saem sete línguas em forma de serpentes. O Cavaleiro se encaminha em sua direção, e Lino percebe que o seu peso é tal que o chão começa a pender em sua direção: pedras começam a rolar, e é como se todo o chão do planeta se inclinasse na direção do lado onde está o Cavaleiro, devido ao seu peso. 

Mesmo quando há uma explicação científica para isto, a estranheza permanece. É o que se dá no conto de Jorge Luís Borges “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, em que o narrador começa a perceber que o mundo está sendo invadido por objetos pertencentes a um universo paralelo ao nosso. Um desses objetos é “um cone reluzente, do diâmetro de um dado”. Diz o narrador: 

“Em vão um menino tentou recolher esse cone. Apenas um homem mal conseguiu levantá-lo. Peguei-o na palma da mão por alguns minutos: lembro-me de que seu peso era intolerável e que, depois de retirado o cone, persistiu a pressão. Também me lembro do preciso círculo que me gravou na carne. Essa evidência de um objeto muito pequeno e ao mesmo tempo pesadíssimo deixava a impressão desagradável de asco e medo”. 

A impressão de asco é mais uma reação fisiológica do que moral. Objetos muito pesados ou muito leves distorcem nossa apreensão instintiva de massas, volumes, etc., e entrar em contato com eles é como estar no convés de um navio que oscila. Temos uma sensação de náusea ou de enjôo, porque nosso cerebelo ou nosso labirinto (sei lá qual é o órgão que controla isto) perde o referencial. 

Qualquer distorção na nossa percepção do espaço e do tempo tem uma conseqüência parecida, fazendo nossa fé na realidade cair verticalmente.