quinta-feira, 6 de outubro de 2011

2680) Duas cidades numa só (6.10.2011)



Além da dimensão social e política que claramente tem, The City & The City de China Miéville (2009) é um romance sobre a mente humana, o olhar humano. Porque mesmo se cruzando nas mesmas ruas e praças, os habitantes de Beszel e de Ul Qoma, as duas cidades rivais e superpostas, são proibidos de perceber a presença uns dos outros. Dirigir-se a alguém da outra cidade, tocá-lo, ou mesmo olhá-lo e perceber sua existência é um crime, designado como “breach” (quebra, violação), e existe uma polícia política invisível vigiando todos, o tempo inteiro, e punindo severamente quem se esquece de não-ver e de não-ouvir os habitantes da outra cidade que circulam pelo mesmo espaço. A cidade, na verdade, possui bairros inteiros que pertencem só a Beszel ou só a Ul Qoma; e possui muitas áreas em que as duas se superpõem, e que são chamadas de “crosshatched” (hachuradas, ou seja, zonas cinza, intermediárias, que podem ser frequentadas pelas duas populações, desde que não se vejam).

China Miéville usa neste romance uma prosa clara, direta, límpida, diferente do estilo surreal-barroco-cyberpunk de Perdido Street Station, outro livro dele (que comecei e não terminei). Nos agradecimentos ele cita Raymond Chandler, Kafka, e outros. A estes nomes eu somaria George Orwell (1984: supervigilância, autoridade invisível e onipresente, paranóia)), Neil Gaiman (Neverwhere: uma cidade-dentro-da-cidade, espaços físicos que pertencem ao mesmo tempo a dois universos distintos). Não em termos de influência, mas de uma mentalidade semelhante, uma visão quântica da realidade urbana, em que duas realidades contraditórias coexistem no mesmo espaço físico.

Miéville diz que o livro surgiu da idéia de escrever sobre grupos de criaturas que vivem lado a lado, mas são de diferentes espécies, e por isso reagem ao mesmo ambiente de forma diversas, tendo diferentes tipos de casas; uma exageração do modo como homens e ratos habitam uma cidade. (Algo disso está em Perdido Street). Mas ele afirma que cientistas políticos do Departamento de Estado dos EUA chegaram a propor para o problema político da cidade de Jerusalém essa solução (que, para Miéville, funciona muito bem num romance mas não seria aplicável na vida real): um espaço urbano único em que diferentes cidadãos são regidos por relações sociais e jurídicas totalmente diversas, e sobre o qual se exercem duas autoridades políticas superpostas.

Quem já leu o livro e sabe como acaba (advertência obrigatória em romances de mistério) pode ler neste link (http://bit.ly/hj82H1) uma ótima entrevista de China Miéville sobre ficção científica, urbanismo, política contemporânea.