domingo, 31 de março de 2013

3148) Apartamento 505 (31.3.2013)




(by Alex Howitt)


Ela era uma das três supervisoras trazidas pelo cara que assumiu a direção do nosso Laboratório. Depois das denúncias, dos escândalos, das prisões, o governo precisava demonstrar mão firme e investigar aquela história até o fim.  Nós, que trabalhávamos na parte burocrática e jurídica, tínhamos na verdade uma noção muito vaga do que acontecia nos andares superiores, onde nunca subíamos. De qualquer modo, não era da nossa conta. A ordem que o Interventor nos deu foi continuar trabalhando normalmente, e ficar à disposição deles para explicar qualquer assunto.

Eu e ela passamos um pente fino num complicado vai e vem de material biológico em contêiners, com alguns países; uma espécie de mala direta semanal com amostras, culturas, etc.  Isso nos aproximou, porque eu, que evidentemente não tinha nada a esconder, mostrei-lhe todas as faturas, notas fiscais, guias de importação, etc., tudo rigorosamente em dia. Ela começou a brincar dizendo que aquilo estava tão certinho que devia estar escondendo alguma coisa. Eu fiz uma cara meditativa e ponderei: “Talvez eles quisessem que este lado aqui estivesse 100% em ordem, para que ninguém viesse a voltar a atenção para aqui”. “É bem possível”, disse ela, “aliás, por que você não me convida para jantar?”. Eu tive presença de espírito para convidar na hora.

Começamos a ir para a cama naquela mesma semana e o interessante é que o próprio trabalho começou a fluir mais rápido. O novo diretor me encarregou de assinar tudo que fosse preciso nesse setor de cheques, empenhos, valores, etc.

Dez dias depois, ela me chamou para jantar na casa dela pela primeira vez. Avenida Porthos, apartamento 505, disse ela. Era uma área nobre, mas tinha umas quebradas meio derelitas, e a Porthos era uma delas. Tranquei o carro, liguei o alarme, apressei-me até o vestíbulo. O elevador estava quebrado e tive que subir.

Quanto mais eu subia menos o prédio se parecia com o que eu tinha imaginado. No quinto andar, parei na porta com o número dela. Bem, só podia ser aquela porta mesmo. Bati, e ela abriu. Estava vestindo alguma coisa oriental meio exótica, mas que caía bem nela, como tudo, aliás. Lá dentro estava muito escuro, mas me dava a impressão de ser um lugar grande e cheio de gente, que não era possível ver devido à escuridão. A pouca luz vinha de uma espécie de mesa ou de maca, a meia distância. “Jantar à luz de velas?”, perguntei. “Tem um pouco disso”, disse ela, afastando-me para me dar passagem e depois trancar a porta, com a luz das chamas brilhando em suas luvas de látex. “Que pé direito alto tem isso aqui”, comentei, e só então percebi onde estava.




3147) O sol e o mundo (30.3.2013)



Nos livros de Monteiro Lobato em que os personagens do Picapau Amarelo voltam à Grécia da mitologia, volta e meia aparece uma discussão sobre o formato da Terra, que os garotos insistem ser redondo. Os gregos negam com veemência: “Não, a Terra não é redonda, é montanhosa.”  Há uma heterogeneidade nessa conta. Os dois termos não pertencem à mesma ordem de coisas. Dizer que a Terra é redonda é ser capaz de imaginar que a está vendo à distância, “sair de dentro de si mesmo”, de certa forma. E o homem medieval não conseguia sair de si mesmo porque se julgava habitando um Universo cujo centro era a Terra, e na Terra, ele. Para ele, o universo era uma esfera e o mundo que ele via à sua volta era apenas uma secção horizontal dessa esfera, um plano infinito se estendendo de norte a sul, de leste a oeste.


Eu seria desonesto se dissesse que esse modo de ver me é estranho. Mas isto me lembrou duas frases emblemáticas sobre o poder do homem sobre a terra, o poder do Homem sobre a Terra, e concepções cosmológicas sucessivas.

No tempo da Rainha Vitória, o auge do colonialismo cuja faceta talentosa são Kipling, Rider Haggard, Conrad, Wilde, Stevenson, etc., dizia-se do império britânico ser “aquele império onde o sol nunca se põe”.  Durante a lenta rotação da Terra sobre si mesma, ao longo de 24 horas, há sempre metade dela exposta à luz do Sol, e nessa metade havia sempre algum território, havia inclusive um considerável território, de propriedade de Sua Majestade.

Já o coronel de José Lins do Rêgo dizia: “O sol que nasce no Santa Rosa, morre no Santa Rosa.” Uma bela imagem, mas uma imagem bidimensional, de quem considera o Universo o chão retilíneo (ou montanhoso!) que se expande à sua volta, com ele no centro. Ver-se no centro de tudo dá uma sensação de poder, de importância, de fazer sentido... Temos milênios dessa fantasia grandiloquente. Não é fácil aceitar que não somos o centro do Universo.

A frase dos ingleses mostra noção tridimensional do mundo, uma presunção, já espontânea, de que a Terra gira em redor do sol.  O velho senhor de engenho, por outro lado, ainda reflete um esquema visual do mundo. Uma planta-baixa do Universo, se quisermos, onde o mundo é um chapadão em volta do qual o Sol orbita, com pontualidade absoluta. O Coronel talvez não entendesse (visualmente, tátilmente) essa imagem de que o sol jamais se põe sobre a Terra inteira. O mundo dele é (como o dos gregos em O Minotauro) uma superfície plana, onde suas posses precisam cobrir 360 graus de superfície. Um sonho grandioso, respeitável, atingível (não importa por que meios) mas, aqui pra nós, insustentável por mais de alguns séculos.