segunda-feira, 10 de março de 2025

5160) O plágio e a glosa (10.3.2025)





(Salvador Dalí, "Crucifixion", 1954) 

 
A pergunta mais clichê que se faz a um artista é: “De onde você tira suas idéias?”. Há mil respostas a essa pergunta, respostas sérias ou galhofeiras, e todas plausíveis. 
 
Comentarei aqui uma resposta com que frequentemente me deparo: “Tiro minhas idéias das idéias alheias”. Isso acontece o tempo todo – na poesia, no cinema, na música, no teatro, nas artes visuais. Você está olhando a obra de alguém e de repente percebe um detalhe, ou um efeito, ou um tema (um assunto diferente, um ponto de vista novo, etc.), e pensa: “Que legal. Posso usar isto pra fazer uma coisa minha”. 
 
A questão é: pode mesmo? Eu afirmo que sim, quando mais não seja porque pratico isto desde os meus quinze anos, quando eu já rabiscava poemas e contos policiais que felizmente se perderam. 
 
Continuo praticando hoje. Quando leio livro ou vejo filme, tenho um aplicativozinho ligado no meu juízo. Fica ali, dormente mas pronto. E de vez em quando basta uma frase num diálogo, basta a descrição de um ambiente, basta um resumo de duas linhas sobre a vida de um personagem secundário... e aplicativo se maximiza na minha tela mental, e diz: “Ótima idéia. Posso fazer alguma coisa com isto”. 



(Salvador Dalí, "The Sacrament of the Last Supper", 1955)

 
Isso é plágio, é furto de idéias? Não, mas é preciso ter cuidado. Assim como existem os autores prontos a usar idéias alheias como ponto de partida para uma coisa nova, existem “autores” picaretas, preguiçosos, sem imaginação criativa e com muita ambição monetária, dispostos a pegar uma idéia alheia, sugá-la até a última gota, passar-lhe por cima um verniz disfarçante (mudar os nomes próprios, mudar a época e o local de uma narrativa, p. ex.) e produzir um trabalho dizendo que é original. 
 
Várias vezes já recontei uma história alheia com outra roupagem, mas costumo deixar pistas suficientes a respeito do texto original e seu autor. Não estou escondendo, pelo contrário. Mas estou colocando ali uma quantidade suficiente de elementos meus para justificar a existência desta nova versão. 
 
Não há uma linha nítida entre as duas coisas, é um território nevoento, e é preciso ter cuidado ao mexer com isto. 
 
Os casos mais escandalosos de plágio são aqueles em que o trambiqueiro copia ou parafraseia uma obra alheia (geralmente obscura, pouco conhecida) e alega ter criado tudo. Para haver plágio (vivo repetindo isto) é preciso haver a intenção consciente de se apossar do objeto alheio. É preciso haver o que a lei chama dolo, a intenção de prejudicar, que é diferente da simples culpa, em que se prejudica alguém como resultado de uma ação que não tinha esse propósito. 
 
No caso da criação literária, pictórica, musical, cinematográfica, é sempre difícil determinar com clareza (=quantificar) o quanto foi aproveitado da obra mais antiga na obra mais recente. 
 
Vou usar como exemplo um caso que surgiu na web estes dias, sobre uma canção dos Rolling Stones que “pediu emprestada” alguma coisa a uma canção do grupo vocal The Staple Singers. 



 
Me chamou a atenção porque a música dos Stones é “The Last Time”, uma das minhas preferidas do álbum Out of Our Heads. Os Staple Singers (eram um grupo misto, com um homem e três mulheres) haviam gravado uma canção gospel muito bonita, cantada a capella, sem acompanhamento, com letra religiosa. No website “A-Z Lyrics”, a composição é atribuída a Roebuck Staple. O estribilho diz assim: 
 
This may (This may be the last time)
This may (This may be the last time children)
This may (This may be the last time)
May be the last time I don't know




Os Rolling Stones pegaram essa estrofe-refrão, mantiveram a melodia básica, mas dando-lhe uma pegada roqueira, e juntaram a ela algumas estrofes onde o tema de “esta é a última vez” aparece voltado para as relações rapaz-moça, no clima machista-arrogante típico da maioria das letras da banda: 
 
Olha, já te falei uma vez, duas vezes,
mas você nunca escuta os meus conselhos.
Não se esforça muito para me agradar,
e seria fácil, com tudo que você sabe.
 
Gravação de The Staple Singers:
https://www.youtube.com/watch?v=rSUhdVyDlTM&t=55s
 
Gravação dos Rolling Stones:
https://www.youtube.com/watch?v=ycoJSzjJDJc
 
Não consegui apurar a autoria da canção. A Wikipedia diz que é de Mick Jagger & Keith Richards, e o A-Z Lyrics diz que é de Harris Lloyd “B. B.” Seaton, cantor jamaicano. 
 
Isto não vem ao caso, porque agora posso ir direto ao ponto mais importante.



 
Artistas usam fragmentos de obras alheias como ponto de partida para desenvolverem idéias próprias geradas por esses fragmentos. Mais ou menos como, na poesia popular, os poetas recebem um “mote” da platéia (o mote são duas linhas, em geral) e glosam esse mote, desenvolvem sua idéia dentro da forma poética escolhida.
 
Pegando carona nos versos dos Rolling Stones, digamos que numa cantoria alguém dá ao poeta este mote:
 
Pelo sim ou pelo não,
esta é a última vez.
 
Motes assim são glosados, tipicamente, numa estrofe de 10 linhas, a décima, com esquema de rimas ABBAACCDDC, sendo que estas últimas rimas são as do mote, que no caso são “ÃO” e “ÊZ”.
 
O poeta pode glosar assim:
 
A emoção do começo
é diferente do fim.
A despedida é assim
e cada adeus tem seu preço.
Eu só quero o que mereço,
por isso digo a vocês:
Acabou? Não tem talvez,
e não cabe indecisão.
Pelo sim ou pelo não
esta é a última vez.
 
Este é o sentido da arte de glosar entre os cantadores – pegar a idéia alheia (e um par de rimas obrigatórias, pois são dois versos) e desenvolvê-la. 
 
Artistas fazem isso o tempo todo, sem pedir licença. Não é a mesma coisa da imitação descarada, do furto, da apropriação dolosa. Quando a gente cria, está muitas vezes tentando desenvolver uma idéia que pegou de uma obra alheia. 



 
Stephen King queria escrever algo parecido com O Senhor dos Anéis, uma luta do Bem contra o Mal num mundo semi-destruído. Escreveu A Torre Negra, uma série de romances numa ambientação de faroeste futurista. Isso lhe deu liberdade para comentar e desenvolver muitos temas contidos na obra de J. R. R. Tolkien, mas ele não estava furtando. Estava glosando – a seu modo. 
 
James Joyce usou a Odisséia de Homero como base para seu Ulisses. Por que? Dizia ele que Ulisses era um herói completo, um homem completo, que Homero nos apresenta como filho, como marido, como pai, como guerreiro, como estrategista, como navegador... Ele transpôs esse personagem para a Dublin de 1904 e seu romance é uma gigantesca glosa dos temas homéricos. 



(Robert Eggers, "Nosferatu", 2024) 

 
O recente filme Nosferatu, de Robert Eggers, é mais uma glosa à narrativa básica do Drácula de Bram Stoker. Eggers (como já tinham feito F. W. Murnau, Francis Coppola, Werner Herzog...) pega o fio central da história e constrói um filme novo em cima dele. Está plagiando ou adaptando? Nenhum dos dois: está glosando, desenvolvendo, ampliando a seu modo os conteúdos presentes no livro de Stoker. 
 
Guimarães Rosa gostava do “Romance da Donzela Guerreira”, um antigo poema em versos sobre uma moça que vai à guerra vestida de homem; usou essa história à sua maneira, como um elemento essencial do Grande Sertão: Veredas, a história de Diadorim. 
 
São glosas. Glosar pressupõe uma admiração pela idéia original, e por isso muitos desses autores fazem questão de deixar clara essa ligação, seja no próprio corpo da obra, seja através de entrevistas ou artigos. 
 
Voltando ao exemplo dos Rolling Stones, que deu motivo para esta conversa: se alguém pegar o rock dos anos 1960 vai encontrar um grande número de versos, trechos melódicos, estribilhos, riffs de guitarra, que foram copiados dos músicos norte-americanos dos anos 1930, 1940, por aí.  Depois da era digital, o uso de samplers e de loops só fez potencializar esse tipo de utilização.
 
Quando a gente diz que a Arte (música, literatura, teatro, o que for) é um empreendimento coletivo, este conceito inclui também a presença dessas ligações em que a mesma idéia é retrabalhada ao longo dos anos e dos séculos por visões diferentes, talentos diferentes, pontos de vista diferentes.