quinta-feira, 30 de outubro de 2008

0625) A janela da poesia (20.3.2005)




(Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar tem uma definição irretocável para uma das grandes angústias na vida de um poeta. Diz ele: “O grande problema do poeta é convencer a mulher de que, quando está debruçado na janela, fumando, olhando lá pra fora, ele está trabalhando”. 

E não é mesmo? A mulher de um cara como esse não precisa ser fã de Chico Buarque para cantarolar “Vai trabalhar, vagabundo” enquanto espana os móveis. Homem debruçado na janela só pode estar espiando os decotes que passam. E eu vos direi, no entanto, que é em momentos como esse que brotam as grandes idéias os grandes versos, as grandes inspirações.

O trabalho criativo é imprevisível. Maiakóvski, no seu essencial livrinho Como fazer versos, afirma, justificando seu hábito de anotar todas as idéias que lhe vêm à mente: 

"Gasto todo o meu tempo com estas preparações. Passo assim 10 a 18 horas por dia e estou quase sempre murmurando algo. É com essa concentração que se explica a famigerada distração dos poetas. O trabalho com estas preparações vai acompanhado em mim de semelhante tensão que em noventa por centro dos casos sei até o lugar em que, no decorrer de quinze anos de trabalho, vieram-me e receberam sua forma definitiva tais ou quais rimas, aliterações, imagens, etc.”

É exatamente assim que sucede comigo, e com muitos outros, tenho certeza. Comparando com o mundo informático, eu diria que a poesia é uma janela do Windows que nunca se desliga; fica minimizada num cantinho da mente, mas pronta para ser aberta, e o trabalho retomado, ao menor estímulo. Mesmo quando estamos conversando, trabalhando noutra coisa, comendo, namorando, aquela janelinha está ativada e pronta. 

Daí a famosa frase de Fernando Pessoa: “E quando estou pensando, estou sempre pensando noutra coisa”. A outra coisa é a janela da poesia.

Não devemos achar que o trabalho criativo é puramente mental, porque idéias que não são escritas são arquivos que não são salvos: basta o computador ser desligado (ou seja, uma noite de sono) para que tudo se evapore. Não adianta ter uma idéia genial: é preciso colocá-la no papel, brigar com ela, batalhar, cortar, reescrever, dar polimento, e isto às vezes leva anos. 

Tem poemas que eu comecei a escrever há mais de vinte anos, ainda não prestam, mas podem prestar um dia. Idéias novas surgem nos momentos mais inesperados. E o poeta (a mente criativa em geral; pode ser também um matemático, um cientista) é como um pára-raios. Tem que estar em alerta permanente, vigília permanente, porque nunca sabe quando os raios vão cair, só sabe que eles acabam caindo. 

Um poeta debruçado na janela é um pára-raios. Ele está trabalhando, sim, madame. Um pára-raios não trabalha apenas no momento em que recebe uma descarga, assim como um policial não trabalha apenas no momento em que evita um crime, ou um bombeiro não trabalha apenas quando escorrega por aquele poste vertical e entra no caminhão. Um pára-raios trabalha 24 horas por dia, e acha pouco.





0624) O repórter do medo e da repulsa (19.3.2005)



Morreu nos EUA o escritor Hunter S. Thompson, aquele malucão que é considerado o fundador do “jornalismo gonzo”, seja isto o que for. Não digo “suicidou-se” porque seria um pleonasmo, uma redundância. Thompson passou a vida inteira matando-se aos poucos, com drogas, e de vez em quando registrava em suas reportagens seus acessos maníacos de auto-destruição, sempre temperados com um humor amargo, auto-ironia e descontração. Dizem que o sujeito que se mata é porque se dá pouco valor, mas eu acho que é justamente o contrário. Um sujeito que se mata é porque dá excessiva importância a si mesmo, e conseqüentemente aos problemas mesquinhos e minúsculos que aporrinham sua vida tanto quanto a do picolezeiro da esquina. Ele acha normal que o picolezeiro passe por essas coisas, mas, ele? O sujeito mais importante do mundo? Melhor pular da cobertura.

O grande público conhece Thompson, mesmo indiretamente, por causa do filme Fear and Loathing in Las Vegas, em que ele é interpretado por Johnny Depp. Ele é um dos grandes nomes de um tipo de jornalismo literário em que os norte-americanos são insuperáveis. Há vários rótulos para isto: “gonzo journalism”, “new journalism”, etc., mas isso para mim é como uísque escocês: sei que gosto, mas não distingo uma marca da outra. Em todo caso, é o jornalismo de Truman Capote em A Sangue Frio, o de Norman Mailer em Os Degraus do Pentágono, o de Tom Wolfe em The Electric Kool-Aid Acid Test (este aqui não li). É um mergulho total do escritor no assunto, trazendo para o momento da escrita toda sua informação cultural, suas próprias referências biográficas, seu jeito de viver, de pensar e de escrever. É também um jornalismo em que o escritor se permite usar técnicas da ficção: imaginar diálogos que não presenciou, descrever cenas que não sabe se aconteceram ou não, atribuir pensamentos a pessoas reais em circunstâncias reais. Como se vê, uma corda-bamba onde basta um vacilozinho para o sujeito ir à barra dos tribunais por calúnia, injúria, difamação e má literatura.

O traço distintivo de HST era o fato de que enquanto fazia as reportagens ele se entupia das mais variadas drogas, e isto era devidamente documentado no texto final. Não pensem que estou aconselhando ninguém a fazer o mesmo. Neste exato instante deve haver na América um milhão de pretensos “jornalistas gonzo” entupindo-se de drogas e imaginando, coitados, que isto os fará escrever tão bem quanto HST. Talentos de porte médio a droga frita dentro de uns poucos anos. Mas existem talentos robustos que travam uma batalha pública contra a droga durante décadas, o que faz muita gente atribuir erroneamente à droga um brilhantismo, uma agudeza mental que é justamente quem impede a droga de prevalecer durante esses anos todos. Foi o caso de William Burroughs, de Edgar Poe, e de Hunter S. Thompson, que no dia 20 de fevereiro, aos 67 anos, apertou o seu último gatilho.

0623) Luz e mágica industrial (18.3.2005)


(The Sims)

Jesus Cristo convida George Lucas para uma partida de golfe. Logo na primeira tacada, a bola de Jesus vai passando direto quando de repente dá uma quebra de 90 graus na trajetória e, pimba! Cai dentro do buraco. Lucas dá um olhar meio atravessado pra ele mas não reclama. Desfere sua tacada. A bola vai direto num tronco de árvore, ricocheteia, bate numa pedra, sobre no ar, choca-se com um helicóptero que vinha passando, cai sobre um lago, é abocanhada por uma perereca, a qual por sua vez é abocanhada por uma águia que se eleva nos ares com a perereca na boca; a perereca acaba por largar a bola que cai de uma altura de cem metros, pimba! Dentro do buraco. Jesus olha meio atravessado, e George Lucas o tranqüiliza: “Calma, calma, é tudo computação gráfica”.

A computação gráfica aplicada à imagem (cinema, TV, internet, vídeo) evoluiu tanto que me proporcionou minha teoria mais importante dos últimos vinte anos: “Somos o Video-Game de Alguém”. Nosso Universo é real, é feito de matéria, é organizado exatamente da forma descrita pelos nossos cientistas. Só tem uma coisa: tudo foi criado por uma raça de Super-Seres Cósmicos, com a finalidade de entretenimento, testes científicos e enriquecimento espiritual.

Não sei se o caro leitor já jogou, ou viu alguém jogar, The Sims, aquele joguinho em CD-Rom onde criamos algumas casas, algumas famílias, e eles passam a viver, trabalhar e interagir uns com os outros. As crianças adoram. Já saíram uns dez “pacotes de expansão” cheios de novidades: os Sims agora são vistos no trabalho, na rua, nas festas, nas diversões... Eles namoram, casam, têm filhos, morrem. E a garotada não desgruda do computador. Nós somos os Sims de uma raça cósmica: “Superior Intelligence’s Mankind System”. Eles planejaram os algoritmos matemáticos que presidem à organização da matéria, à criação da vida, à formação do Sistema Solar e dos ecossistemas terrestres, e por fim ao surgimento da Humanidade. São muito, muitíssimo mais poderosos do que os alienígenas misteriosos de Clarke & Kubrick em 2001, Odisséia no Espaço. Na verdade, os alienígenas de 2001 não passam de um pacote-de-expansão do programa original.

Confesso que minha teoria não é totalmente original, foi parcialmente bebida em livros como Simulacron 3 de Daniel Galouye, “The Tunnel Under the World” de Frederik Pohl e outros, que são os avós de Matrix. A computação gráfica me serviu apenas para demonstrar a possibilidade matemática de que isto ocorra. Com nossa tecnologiazinha pré-histórica, somos capazes de determinar matematicamente cada ponto de uma imagem aparentemente tridimensional, sua cor, sua textura, sua localização, seus deslocamentos. Somos capazes de usar esses pontos para compor imagens, seres, pessoas. E criar cenas inteiras, filmes inteiros com essas nuvens de pontos coloridos, fazendo cada criatura dessas obedecer nossas instruções: “Sente ao teclado... escreva sua coluna do jornal...”

0622) A praga do telemarketing (17.3.2005)



De vez em quando algum amigo meu se queixa: “Ligo pra sua casa e só dá secretária eletrônica!” Minha resposta: “Claro, foi pra isso mesmo que a instalei”. Ele: “Para manter os amigos à distância?” Eu: “Não, para filtrar as ligações. Eu só atendo o telefone se souber quem está falando”. Uma das razões para isto é a praga do telemarketing que, pelo menos aqui no Rio, é uma dor de cabeça permanente para quem tem telefone em casa. Você entra no chuveiro, o telefone toca, e você, que está esperando uma ligação importante, enrola-se na toalha e sai molhando o corredor até o aparelho. Do outro lado, uma voz feminina cheia de jovialidade lhe pede uma doação para um asilo de velhinhos. Nada contra os velhinhos, mas minha única vingança possível é dizer que não, muito obrigado.

Ou então eu interrompo uma refeição para atender, e do outro lado é uma moça que tenta por fina força me convencer a aceitar mais um cartão de crédito além dos dois que já possuo. Ou então é um banco atrás de novos correntistas. Ou então uma corretora de seguros. Ou então uma editora me oferecendo assinatura de revista a preço de banana. Por estas e outras eu não interrompo mais o meu banho, não deixo um prato pela metade, não largo o teclado quando ouço o telefone tocar lá fora. Se o fizesse, não teria tempo para mais nada senão ficar repetindo “Não, muito obrigado”, com a resignação de um papagaio.

Às vezes, quando a interrupção vem num momento mais inadequado, a vontade que me dá é explodir, dizer palavrões, tratar mal a pessoa lá do outro lado. Duas lembranças me dissuadem disto. A primeira é o fato de que nos EUA, há pouco tempo, uma dona-de-casa atendeu mal uma dessas ligações e o telefonista (era um cara de maus bofes) passou a ameaçá-la – afinal, ele sabia o nome, o telefone e o endereço dela, e ela não sabia nada sobre ele. A segunda é o fato de que minha filha já foi telefonista do Sebrae e mais de uma vez chegou em casa com os olhos inchados, porque algum brutamontes de maus bofes a tratou mal. Eu sou do tempo antigo, e o que não quero que façam à minha filha não vou fazer à filha dos outros.

Aliás, quero refazer esta última colocação. Todos nós que temos de quarenta anos pra cima vivemos reclamando da estupidez de certos hábitos contemporâneos, e contrapomos a eles os hábitos “do tempo antigo”. Amigos, mudemos de estratégia. Dizendo assim estamos desvalorizando nossos valores. Tratar bem a filha dos outros não é coisa antiga, é coisa moderna, é civilização. Invadir o espaço telefônico alheio, não é eficiente nem moderno: é uma grosseria, um desprezo pelo cliente, comparável ao “spam”. Minha resposta atual, quando tenho o azar de atender uma ligação assim, é dizer: “Eu estava interessado, sim, em adquirir um novo cartão, mas recuso-me a me envolver com uma empresa que interrompe minhas atividades dessa forma grosseira e não-solicitada. Vocês acabaram de perder um cliente. Passe bem!”

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

0621) Leituras aconselhadas (16.3.2005)




Acontece de vez em quando, e toda vez que acontece eu penso comigo mesmo: “Preciso preparar uma resposta para a próxima vez que acontecer”. Por alguma razão freudiana, nunca preparo (talvez a razão freudiana seja a vertigem do improviso, a fascinação pelo ato de abrir a boca e começar a falar sem ter a mínima idéia do que vou dizer). 

Mas voltando ao assunto principal, tudo isso ocorre quando alguém me diz: “Me aconselhe um livro bom”. Como diabo se responde a isto?

Não há conceito mais subjetivo e impalpável do que o de “um livro bom”. Pessoas gostam de ler diferentes coisas, por diferentes motivos. Eu não posso simplesmente aconselhar um clássico da literatura: “Leia Os Irmãos Karamazov...” Corre o risco do cara perguntar se eu próprio já o li, e eu ter que dar a humilhante resposta. (Me consolo em pensar que Jorge Luís Borges também não leu.) 

Muitas vezes o que o interlocutor quer é que lhe aconselhemos isso que hoje em dia se chama um livro “cult” – um livro bom, bem escrito, fascinante, que dê o que pensar, mas que por alguma razão seja conhecido por muito pouca gente, o tipo do livro que dificilmente veremos elogiado num suplemento literário. 

O que o nosso amigo quer equivale a nos perguntar “uma praia legal onde passar as férias”. Tá na cara que ele não quer ouvir como resposta “Porto Seguro” ou “Búzios”.

Como eu tenho fama de conhecedor de ficção científica, muitas vezes a pergunta é: “Qual o livro de FC que você me aconselha?” Fico igualmente perdido, a não ser que se trate de um amigo cujos gostos literários eu conheço bem. Porque aí posso pensar por associação de idéias. 

Eu digo: “Olhe, se você gosta de política e ciência, talvez goste de Os Despossuídos, de Ursula Le Guin – é a história de um sujeito dividido entre dois mundos, sabendo-se prestes a fazer uma descoberta científica que vai revolucionar a humanidade, mas para isto tendo que largar seu país pobre e socialista e ir trabalhar num país capitalista e corrompido, mas que vai lhe dar laboratórios à altura”. Onde se lê “país” leia-se “planeta”, aliás.

Aconselhar leituras é sempre problemático porque a gente vê num livro uma coisa, e o cara ao lado vê outra. 

Já me pediram um livro engraçado e eu propus O Pêndulo de Foucault

Já me pediram um livro erótico e eu aconselhei Noites do Sertão de Guimarães Rosa. 

Já me pediram um livro de amor e eu indiquei Fragmentos do Discurso Amoroso de Roland Barthes (talvez a única coisa inteligente já escrita sobre o tema). 

Já me pediram um livro de terror, daqueles de deixar o cara uma semana sem dormir, e eu (desta vez de propósito) indiquei As Veias Abertas da América Latina de Eduardo Galeano.

Aconselhar livros é pior do que alcovitar namoros alheios, porque nunca sabemos quando um casal livro-e-leitor vai se ajustar, se encaixar, se combinar. Melhor deixar isto entregue aos deuses do Acaso, e à bússola cega e clarividente de cada um.






0620) Zilka Salaberry (15.3.2005)



Morreu Zilka Salaberry, a Dona Benta do “Sítio do Picapau Amarelo”. Para mim é o caso típico da atriz de um papel só, embora eu saiba muito bem que Dona Zilka teve uma carreira longa e variada. Paciência. Anos e mais anos interpretando a matriarca do Sítio fixaram sua imagem de maneira indelével na minha (acredito que na de nós todos) memória afetiva.

Cresci devorando os livros infantis de Monteiro Lobato. Alguns deles, como Historia do Mundo para as Crianças, Emília no país da gramática, Serões de Dona Benta ou O Picapau Amarelo, não li menos de cem vezes. Por que? Acho que porque eu era meio burrinho e acabava me esquecendo, porque a releitura sempre me deu tanto prazer quanto a leitura inicial.

Nunca me dei bem com a literatura adulta de Lobato, que mesmo assim tem alguns contos bons. Mas o linguajar era pomposo, o que nos mostra que as crianças de 1930 eram mais contemporâneas nossas do que os adultos. Lobato e Malba Tahan formataram minha cabeça e a de mais de uma geração. Graças a eles dois, dezenas de milhões de brasileiros como eu escaparam da burrice. Um país que tem dois escritores como estes não pode dar errado.

Voltando a Dona Benta, é admirável que Lobato tenha escolhido uma avó, e não um avô, como o símbolo da sabedoria. Talvez eu tenha me deixado contaminar com facilidade porque sou de uma família onde as mulheres idosas sempre foram chegadas tanto aos livros quanto às lições de sapiência, ao saber “só de experiências feito”. Minha mãe, minha avó Clotilde, minha tia Adiza, foram algumas das principais Donas Bentas que supervisionaram meu crescimento e a formação do meu caráter. Isto me tornou um adepto de certas formas de matriarcado, porque sendo homem eu entendia muito bem os rompantes de autoritarismo e de rispidez dos homens, sabia de sua falibilidade como líderes. As mulheres, mais compassivas, mais serenas, tinham uma autoridade que se baseava menos no individualismo e mais numa rede interligada de responsabilidades.

É notável que Monteiro Lobato, num livro como A Reforma da Natureza, faça com que ao final da II Guerra Mundial os líderes da Europa, engalfinhando-se em contradições e disputas, resolvam convocar Dona Benta e Tia Nastácia para servir como “árbitras” das questões internacionais. Dona Benta, muito bem informada sobre política, aceita imediatamente e parte para a Europa. Aos oito anos de idade eu achava isto uma coisa meio surrealista, e ao mesmo tempo extremamente lógica. Afinal, Hitler, Mussolini e o Rei Carol da Romênia tinham comprovado sua incompetência para gerir o mundo, e nada mais natural do que convocar para conserta-lo as pessoas cujo sistema de administração tinha produzido uma comunidade organizada e pacífica.

Dona Benta é o símbolo de uma autoridade baseada na experiência e na credibilidade, mas disposta a acreditar no novo, no imprevisto e no improvável – haja vista a disposição com que ela se deixa arrastar nas aventuras das crianças, seja visitando a Grécia antiga, seja indo parar na Terra do Faz de Conta.

0619) O rádio e a vitrola (13.3.2005)




(Rádio-vitrola Philips)

O rádio e a vitrola (ou CD-Player, para os mais contemporâneos) nos dão experiências diferentes da vida. Quando ligamos o rádio, nunca sabemos exatamente o que vamos escutar. No máximo temos idéia do horário dos programas: programa de notícias, de música, de futebol, etc. Mas quando ligamos um programa musical, não escolhemos as canções, ficamos à mercê do programador. Claro que sempre é possível escolher uma rádio “que só toca MPB”, ou “só toca rock”, etc., mas não temos direito a escolhas mais específicas.

Na vitrola, o programador somos nós. Ela só toca se a gente disser o quê, e botar pra tocar. Por definição, então, a vitrola só toca o que a gente possui em casa. Temos controle sobre a programação – com a ressalva de que, se quisermos ouvir um disco que não temos, nada feito.

Ouvir rádio ou ouvir vitrola, portanto, são experiências de vida distintas. Na infância, toda vez que eu ligava o rádio tinha medo de que tocasse muita porcaria, mas o que esperava era que de repente aparecesse uma música que eu gostava e não tinha em casa, ou então alguma novidade que me fizesse largar qualquer brinquedo com que estivesse me entretendo (ou, de preferência, largar o dever de casa) e correr para junto, para ouvir até o fim e ficar sabendo qual era a música, quem era o artista. Ouvir rádio era um contato com O Mundo. As grandes epifanias musicais da minha vida foram através do rádio. A primeira vez que ouvi “Saudosa Maloca”, a primeira vez que ouvi “Eleanor Rigby”, ou The Brothers Four cantando “The Green Leaves of Summer”, Nelson Gonçalves cantando “Vermelho 27”, Leny Eversong cantando “Granada”.

Já a vitrola nos transporta para um mundo perfeito porém fechado. Nesse mundo, só ouvimos o que já conhecemos e já gostamos; e é um mundo onde não existe a novidade, a surpresa. Mesmo a possível surpresa tem que passar primeiro pelas nossas mãos, tem que ser comprada ou ganha e colocada por nós para tocar.

Assim é a cabeça das pessoas. A pessoa com Cabeça Rádio vive antenada para tudo que acontece em volta, é sempre uma das primeiras a perceber o brotar de novas tendências. Vive plugada nos terminais da Contemporaneidade, sensível ao mínimo estremecimento sísmico da cultura planetária, venha ele da Turquia ou da Provença. O lado negativo disto é que a pessoa tende a se distrair com irrelevâncias, a valorizar besteiras, e a consumir quantidades industriais de lixo cultural.

A pessoa com Cabeça Vitrola vive em seu mundo perfeito, onde as mudanças só ocorrem com uma lentidão geológica. Torna-se um gurmê de si mesmo, porque de tanto escutar e re-escutar seu próprio repertório passa a conhecê-lo num grau espantoso de sutileza e detalhe. As novidades lhe chegam em conta-gotas. E seu gosto, à medida que se torna exigente e perfeccionista, torna-se também conservador. Só ouve o que gosta, e só gosta do que já conhece.

Na vida cultural brasileira temos numerosos e ilustres exemplos de ambos os grupos.



quarta-feira, 22 de outubro de 2008

0618) Pobre princesa feia (12.4.2005)



Nos meus passeios diários pelas homepages de jornais do mundo inteiro (bem, de três ou quatro países apenas, para ser sincero) tenho visto uma cachoeira de artigos irônicos e cheios de graçolas a respeito do anunciado casamento do Príncipe Charles com a Sra. Camilla Parker-Bowles. Todo mundo sabe que o casal namora e se relaciona há décadas. Ao que parece, antes mesmo do casamento dele com a falecida Princesa Diana os dois já trocavam abraços. E durante o casamento Charles/Diana, a desafortunada Camilla virou uma espécie de saco-de-pancadas da imprensa inteira. Por que? Porque é uma mau-caráter, uma calhorda, porque não escova os dentes, porque passa cheque sem fundo? Não: porque é feia.

Coitada de Dona Camilla, que aliás nem sequer é mais feia do que a maioria das inglesas, benza-as Deus. A finada Lady Di ganhou a simpatia de Deus e o mundo porque tinha uma carinha fotogênica e uma silhueta contemplável, mas era “uma cabecinha-de-vento”, como a qualificou Paulo Francis num momento de magnanimidade. Uma inglesinha como tantas outras, que leu muito os Irmãos Grimm na infância e sonhou em ser princesa e rainha, como tantas brasileirinhas sonham em ser modelos e atrizes. Seu palminho de rosto, comparado ao de Camilla, despertava analogias imediatas com Cinderela e As Irmãs Feias (a feiura de Camilla, claro, valia por duas).

Quem sou eu para dar pitaco na vida alheia. Mas acho que o Príncipe Charles é um sujeito sensaborão, cheio de nós-pelas-costas, e tudo que quer é um matrimônio britânico à velha moda. Qual é o problema, então? O que me espanta é a impressionante unanimidade (no Brasil e fora dele) da antipatia com a Dona Camilla, só porque é feia. Todas as pessoas a quem perguntei não sabem nada dela – sabem que é de família tradicional, que namora com o príncipe, que o Príncipe declarou uma vez que gostaria de ser o O.B. dela, e que ela tem cara-de-cavalo.

Lembro-me de uma campanha presidencial americana, anos atrás (acho que no tempo de Nixon), quando o candidato democrata estava sendo escolhido. Li um artigo numa revista analisando os possíveis candidatos e a certa altura o articulista dizia: “O melhor candidato Democrata seria Fulano de Tal. É sério, honesto, inteligente, competentíssimo, e teria tudo para ser um dos melhores presidentes que o país já teve. Mas nunca será eleito, porque não tem carisma, fotografa mal, discursa mal. Excelente administrador– mas péssimo candidato”.

O que me lembra a piada do bêbado que ao chegar em casa tenta abrir a porta, a chave cai, e ele vai procurá-la junto ao poste-de-luz da esquina. O guarda diz: “Por que não procura no lugar onde a chave caiu?” E ele: “Lá está muito escuro, não vou achar nunca. Melhor procurar aqui, que pelo menos tem luz”. É o problema dos americanos, coitados, sempre procurando um presidente na TV. Deixem o Príncipe Charles procurar a chave dele no escuro. Um sujeito não pode ser bobão quando sabe o que quer.

0617) Sidney Lumet (11.3.2005)



O Oscar deste ano foi o chiclete de sempre. Não havia sequer um grande “blockbuster” entre os indicados para Melhor Filme. Eu acho isto um bom sinal. Não tinha Titanic, Senhor dos Anéis, Último Imperador... Apenas cinco filmes de porte médio, dos quais o único que vi e comentei aqui (Entre umas e outras) não tem nada de excepcional mas é um filme assistível. O cinema de Hollywood está cada vez mais parecido com desfile da Beija-Flor, e um filme simples assim é um alívio, como uma roda-de-samba no botequim.

Me alegrei com o Oscar honorário para Sidney Lumet. O auge da carreira de Lumet como diretor coincidiu com o tempo em que eu era cineclubista e crítico de cinema, e ainda admiro sua obra. Lumet não é um “auteur” no sentido europeu do termo, não é um reinventor da linguagem, ou um intelectual com idéias próprias. É um sujeito com alma teatral que domina a técnica do cinema. Seus melhores filmes são modelos de narrativa clássica, aulas de como contar uma história e reger um elenco, extraindo dele o máximo.

Assassinato no Orient Express é a melhor adaptação de Agatha Christie para o cinema (com o Testemunha de Acusação de Billy Wilder, de 1957), não só pela reconstituição de época e pelo elenco, mas pelo roteiro (de Paul Dehn) que pela primeira vez faz justiça às elucubrações do detetive. Dia de Cão é o filme de assalto a banco que formatou todos os outros, um fascinante equilíbrio entre roteiro e improviso. Rede de Intrigas é uma sátira sobre o poder externo e a corrupção interna da TV, com um roteiro (de Paddy Chayefsky) que parece uma HQ surrealista mas acabou sendo profético. A Colina dos Homens Perdidos é um filme exemplar sobre o absurdo da guerra, da prisão e do militarismo. Armadilha Mortal é um mistério policial bem urdido, totalmente teatral, cheio de reviravoltas, e seu único defeito é ser uma tentativa de igualar Jogo Mortal (Sleuth) de J. L. Manckiewicz, o que aliás quase consegue.

Lumet tem filmes fracos, claro; o mais chato de todos é uma adaptação musical de O Mágico de Oz, com Diana Ross e Michael Jackson, tão kitsch e caótica que parece ter sido dirigida por estes dois.

O melhor filme dele, e um dos melhores que já vi, é O Homem do Prego, a história de um judeu que escapa do campo de concentração, vai morar no Harlem de Nova York, e passa a explorar os negros da vizinhança. O filme tem trilha de Quincy Jones, uma inesquecível fotografia em preto-e-branco, tem Rod Steiger no papel principal (às vezes meio “over”, mas sempre impressionante), e uma montagem de flash-backs rapidíssimos que me proporcionou uma das grandes iluminações mentais da minha vida. O Homem do Prego é muitas vezes referido no livro de Lumet (já publicado no Brasil) Fazendo Filmes, e nas memórias do montador Ralph Rosenblum (When the Shooting Stops... the Cutting Begins). É de 1965, mas fico com a sensação de que somente agora, quarenta anos depois, o filme recebeu o Oscar que merecia.

0616) Os oratórios de Farnese (10.3.2005)



Está em cartaz no Rio, no Centro Cultural Banco do Brasil, uma exposição (ao que parece, a maior já realizada) da obra de Farnese de Andrade, artista falecido em 1996. Tive meu primeiro contato com essa obra em 1971, quando no Festival de Cinema de Brasília o prêmio de melhor curta-metragem foi concedido a um documentário de Olívio Tavares de Araújo sobre a obra de Farnese. Nunca saiu da minha mente aquela coleção de objetos híbridos, “assemblagens”, caixas dentro de caixas, pedaços de bonecos ou manequins mutilados, fotografias antigas, imagens de santos, pedaços variados de vidro, de metal, de conchas do mar.

Há um depoimento de Farnese onde ele afirma ter estudado gravura durante vários anos, mas um dia uma porção de objetos que manipulava começaram a adquirir outro sentido quando justapostos uns aos outros, e ele passou a dedicar-se à confecção desses conjuntos tridimensionais. Há uma sala inteira da exposição dedicada aos seus oratórios: aqueles relicários de madeira de guardar santos, que nas mãos de Farnese viram uma espécie de “monstruário” de justaposições surrealistas. Um bebê de louça partido ao meio, com uma barata no interior. Bolas de cristal que emergem das paredes de madeira como se estas criassem olhos para nos espiar de volta. Há um objeto chamado “Orgasmo”, uma espécie de enorme compoteira de vidro com pedestal, cuja parte inferior é cheia de areia branca, tendo por cima uma camada de minúsculas esferas brancas, e sobre esta outras camada de bolas de vidro um pouco maiores, até que da abertura superior da compoteira emerge uma seqüência de bolas de cristal maciço, sendo que a última e menor delas traz dentro de si a imagem de uma criança.

Cada objeto de Farnese, se visto isoladamente, daria assunto para meia hora de contemplação silenciosa, e incessante associação de idéias. Quando vemos vinte deles numa mesma sala, em dez minutos julgamos ter visto tudo. O que é impacto original e perturbador de um “objeto inquietante”, como diziam os surrealistas, visto em conjunto denuncia o seu caráter técnico, de um gesto criador repetido. Sugere uma simples linha-de-montagem de surpresas pré-fabricadas.

Problema do artista? Não creio. Os oratórios de Farnese não foram feitos para ser assimilados em grupo, e sim isoladamente. Agrupá-los produz uma overdose que anestesia o espectador. É como um livro de poemas, que ninguém pega para ler de cabo a rabo – porque a obra de arte não é o livro, é cada poema. A obra de arte produzida por Farnese não são os trinta ou cinqüenta objetos daquela sala (a exposição toda, aliás, tem mais de 120), e sim cada um deles. Que, idealmente, deveria ser visto e pensado à revelia dos demais. A exposição ideal para Farnese deveria ser uma sala vazia com um objeto no centro, objeto que seria trocado toda semana, para que toda semana viéssemos repetir nossa visita e renovar nossa inquietação.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

0615) Pelada e democracia (9.3.2005)




Não existe nada mais educativo sobre o que é democracia do que um jogo de pelada. 

Democracia não é Republicanismo, o qual é apenas uma das modalidades políticas de sua prática. É qualquer situação em que interesses coletivos são administrados através de um debate onde todos têm voz ativa, e onde o resultado final, se não é um consenso unânime, é pelo menos uma solução com que a maioria concorda e a minoria se conforma.

Não existe conceito filosófico mais impreciso do que o conceito peladeiro de “bola fora”. O campo não tem linhas. Às vezes o “fora” é determinado por alguns arbustos: bola entrou no mato, é fora. Às vezes é o trecho onde acaba a grama e começa a terra, ou onde acaba a areia e começa o cascalho. Toda vez que a bola passa por ali, ergue-se o coro: “Foi fora!” “Não foi!”.

No futebol de verdade, a “barra” é de uma nitidez impecável, cartesiana. É um quadrilátero formado por três traves e uma linha de cal: passou dali é gol, e para o caso de uma bolas muito rápida, tem a rede para detê-la e confirmar a trajetória. 

Mas as barras que na adolescência eu alvejei como atacante ou defendi como goleiro eram duas sandálias enfiadas na areia, ou duas pedras, ou dois montes de roupas. Na pelada, a gente é forçado a visualizar traves virtuais e tentar colocar o chute não apenas fora do alcance do goleiro (como fazem os jogadores de verdade) mas de preferência longe das traves invisíveis, longe daquilo que sabemos ser o território da reclamação. 

Na pelada, um gol só é indiscutível se passar pertinho do chão, e a pelo menos um palmo para dentro da “trave”.

Na pelada não há bola na trave, há o famoso “por cima”, ou seja, por cima da pedra. Não é gol. E como não há travessão superior, a altura dessa barra virtual é definida pela capacidade de salto do goleiro. Se a bola for numa altura que o goleiro visivelmente não alcançaria, foi fora. Um goleiro de 1,50 e outro de 1,70 estão, numa mesma partida, defendendo barras proporcionais a seu tamanho e seu salto. 

E tem mais uma: quando o goleiro pula para o alto e toca na bola, valida o gol, porque provou que o chute não era alto assim. Muito goleiro de pelada tenta “dar uma de migué” e fingir que pula, evitando alcançar a bola, para poder dizer que foi bola alta.

Uma pelada é o exemplo típico de como grupos antagônicos resolvem conflitos oriundos de regras pouco claras. E isto é um dos pontos essenciais da democracia, porque você não pode estabelecer regras nítidas e cristalinas para tudo no mundo. 

Na resolução desses conflitos, vigoram os recursos que mandam numa democracia: papo-pra-derrubar-avião, veemência, pressão, barganha (“se aquela outra não foi gol, essa aqui também não foi”), carisma, credibilidade... e malandragem, capacidade para mentir na-cara-de-pau (“juro que não foi com a mão!”). 

Democracia não é o governo do povo, é o governo do texto, o governo dos mais hábeis, dos que melhor convencem os demais a aceitar sua versão dos fatos.






0614) O Velho da Montanha (8.3.2005)


(cartum de Adrian Raeside)

Veteranos da guerra do Iraque têm sido tratados com “ecstasy” para combater o estresse da guerra: ansiedade, insônia, memórias recorrentes de situações de combate, e reações violentas que incluem maus-tratos à família e explosões de agressividade sem causa aparente. Os psicólogos afirmam que o “ecstasy” relaxa, dá uma sensação de “proximidade emocional”, ajuda os soldados a desabafarem seus traumas e sua sensação de inadequação à vida civil e familiar.

Faz sentido. O sujeito em guerra dorme com um olho aberto. Soldado que patrulha as ruas das cidades iraquianas é obrigado a passar o dia inteiro com o dedo no gatilho. Disparar um segundo depois de um alerta pode significar a diferença entre viver e morrer. Basta ver a besteira desta semana, quando soldados americanos metralharam o carro onde vinha uma jornalista italiana que, seqüestrada há um mês, acabava de ser libertada. Resultaram: meteram uma bala na moça, e mataram o agente do Serviço Secreto italiano que a estava escoltando ao aeroporto.

Um Governo puritano e moralista (ainda que só da-boca-pra-fora) como o de Bush recorre a drogas proscritas para tratar seus soldados? Isso me lembra a história do Velho da Montanha, o que criou na Pérsia a Seita dos Assassinos. As lendas são muitas. Por volta de 1270, o Velho da Montanha tinha um setor secreto em seu castelo com rios, fontes, flores, e belos pavilhões cheios de odaliscas. Voluntários eram drogados e transportados para esse lugar secreto, onde bebiam vinho, comiam os melhores pratos e as melhores odaliscas. Depois dessa semana no Paraíso, eram adormecidos, trazidos de volta, e encarregados de uma missão terrorista, geralmente sob a forma de assassinatos seletivos: matar o Xeique Fulano ou o Califa Sicrano. O prêmio seria o retorno ao Paraíso.

Não creio que o governo Bush venha a criar um “resort” cheio de “playmates”, com “ecstasy” e uísque à vontade, para recompensar o cara que passou dos ou três anos abatendo sunitas no Iraque. Isso seria mais de acordo com o perfil de um Governo Clinton. Mas o círculo vicioso entre drogas e guerra se fecha mais uma vez. Basta lembrar Apocalipse Now de Coppola, onde os soldados que patrulham de barco o rio Mekong fumam cada “estaca” do tamanho dum pincel-atômico pra poder agüentar aquele inferno. A própria guerra é uma espécie de droga euforizante, para os que a administram à distância. Como diz o nazista de um conto de Borges: “Giravam sobre nós os grandes dias e as grandes noites de uma guerra feliz. No ar que respirávamos havia um sentimento parecido com o amor”.

Scott Ritter, ex-membro da Comissão da ONU que procurou em vão as armas de destruição em massa no Iraque, fala assim do governo americano: “Eu o comparo com um adolescente que tomou ecstasy: feliz, mas sem saber por que está feliz. Quando o efeito passar, ele vai cair-na-real com toda violência, e a realidade é o atoleiro do Iraque, onde a resistência cresce sem parar”.

0613) Enguiçar-garrafa e Disparate (6.3.2005)


(Brueghel, Jogos)

Na universidade, ao meter a cara nos livros de Antropologia (não, nunca concluí o curso, tinha que estudar muita coisa desnecessária) eu costumava ficar pensando: “Quem produz a Cultura Popular?” É um pouco como perguntar: “Quem escreve as anedotas?” Porque todas aquelas coisas engraçadas têm decerto uma origem, um criador, seja uma pessoa ou um grupo. E hoje, olhando em retrospecto minha infância, eu lembro de coisas que para mim são “cultura popular” mas que nunca vi consignada nos respectivos compêndios.

Uma brincadeira divertida se fazia lá em casa, quando eu tinha 7 ou 8 anos. A gente desafiava uma pessoa a demonstrar seu equilíbrio de olhos fechados. O desafio era colocar uma fila de garrafas, a cerca de meio metro uma da outra, vendar os olhos do sujeito, e pedir que ele caminhasse por sobre a fila, pisando entre as garrafas, fazendo o percurso de ida e volta sem derrubar nenhuma. Vendava-se bem os olhos da vítima, e lá vinha ele. O engraçado era que enquanto os olhos dele estavam sendo vendados e as instruções repetidas, as crianças vinham e recolhiam as garrafas, sem fazer barulho. E lá se ia o coitado, erguendo a perna com todo cuidado, todo satisfeito, crente que estava ganhando a aposta, fazendo aquele balé abestalhado por cima do chão vazio.

Outra brincadeira era a que chamávamos “Disparate”. Quatro pessoas, com papel e lápis. “A” e “B” faziam listas de nomes: pessoas reais, vultos da História, personagens de filmes... “C” fazia uma lista de ações (“tomando banho” – “pulando frevo”...) e “D” uma lista de lugares (“no castelo de Drácula” – “no meio do mato”...). Quando todos tinham a lista pronta, com o mesmo número de itens (10, 15, por aí), liam-se as listas pela ordem, e as cenas formadas eram engraçadíssimas. “Mamãe” – “com Luiz Gonzaga” – “jogando xadrez” – “nas costas dum macaco”... “Juscelino” – “com Tia Adiza” – “catando piolhos” – “no Arco do Triunfo”... E por aí vai.

Depois reencontrei a brincadeira dos “Disparates” entre os numerosos jogos surrealistas que os discípulos de André Breton praticavam com a maior devoção (os Surrealistas sempre me seduziram pelo seu imenso senso de humor). Em seu informativo The Oxford Guide to Word Games, Tony Augarde menciona o jogo chamado “Consequences”, muito em voga na Inglaterra entre 1600-1800, que é uma versão mais complexa dos nossos “Disparates”.

Mas, não sei se por falta de sorte ou desatenção, nunca encontrei em nenhum autor (Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Alceu Maynard, Leonardo Mota, Amadeu Amaral...) qualquer referência à brincadeira de “enguiçar garrafas” que tanto alegrava nossas noites na ampla cozinha de nossa casa na Rua Miguel Couto. Sempre que alguém me fala em Cultura Popular, penso nessas coisas. Cultura Popular é tudo aquilo que aprendemos com as pessoas que nos são mais próximas, e que pensamos ser um segredo precioso que só nós sabemos, um pequeno tesouro que somente nós guardamos.

0612) A vítima de Eros (5.3.2005)


(Jeremy Irons e Juliette Binoche em Perdas e Danos)

Alguns atores parecem encarnar um arquétipo, parecem “ser a cara” de determinados tipos de personagem. Muitas vezes isto tem a ver com um trabalho bem-sucedido. Um sujeito faz um assassino psicopata, ganha um Oscar, e passa os anos seguintes recebendo propostas para interpretar assassinos psicopatas. Talvez por isto um ator tão bom como Anthony Hopkins tenha aceitado interpretar o canibal Hannibal Lecter: estava cansado de interpretar lordes e mordomos britânicos.

Jeremy Irons é um ator inglês talentoso, versátil, mas existe um arquétipo que desaba de vez em quando sobre ele. Eu o chamaria de A Vítima de Eros. Esse personagem é um sujeito aparentemente frio, racional, introvertido, extremamente cavalheiresco e bem educado, sobre o qual se abate uma fatalidade sexual inexplicável, incontrolável e inextinguível. Vejam por exemplo o personagem mais arquetípico que ele já interpretou: o Humbert Humbert de Lolita, na sua versão mais recente. Lolita conta a paixão de um homem quarentão e sisudo por uma adolescente frívola. É um enredo clássico, comparável apenas ao de O Anjo Azul. E é o protótipo da tragédia sexual decorrente de um episódio fortuito da infância que fica incrustado na mente do protagonista e que este procura resolver das maneiras mais desajeitadas possíveis, geralmente arruinando a própria vida.

Não é apenas na direção da pedofilia que Jeremy Irons é empurrado pelas marés irresistíveis de Eros, mas também na direção do homossexualismo. É ele quem interpreta o espantoso protagonista de M. Butterfly, o diplomata que se apaixona por uma cantora de ópera chinesa e mantém relações sexuais com ela durante dezoito anos, sem perceber que se trata de um homem. Uma situação aparentemente absurda, mas que justifica, como nenhuma outra, o dito de que “o amor é cego”. Na verdade, no amor todo mundo só vê o que quer ver, ou, por extensão, o que a pessoa amada lhe sugere que veja.

Em Perdas e Danos, de Louis Malle, Irons interpreta outro diplomata, que é tomado de uma paixão sexual absurda e definitiva pela noiva do próprio filho. Como ocorre em histórias desse tipo, ele passa a correr os maiores riscos, cometer desatinos. Sua vida profissional vira um caos que ninguém entende, porque ninguém sabe o que está se passando. Ele mesmo não sabe. Virou um viciado, que pensa apenas em como conseguir a próxima dose. A tragédia das vítimas de Eros, como Irons as interpreta, é do tamanho do abismo entre sua aparência aristocrática, intelectual, auto-controlada, e o tobogã de insensatez em que ele se deixa mergulhar de bom grado. Não existe nada mais fascinante do que um indivíduo frio, calculista, moderado, sendo arrebatado por uma obsessão carnal que o leva à auto-destruição. Não porque ele seja antipático, mas por nos ensinar que um sujeito assim só foge na direção daquilo que mais teme.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

0611) É Carnaval! (4.3.2005)




(BT e Tide)

Lá vem de novo essa história de carnaval fora de época, micarande, micaroa, carnatal, recifolia. Não vejo graça nessas festas, e me desculpem os amigos que não sabem passar sem elas. Para certas coisas na vida, sou um conservador incorrigível. Não por simples saudade do passado, mas porque o que era festa amadorística virou indústria, e em alguns casos virou gangsterismo econômico, que ao que parece é o destino final de toda indústria na casa-de-mãe-joana que é este país. Criou-se um conceito de Carnaval onde você se diverte, mas paga caro por isto.

Carnaval pra mim é bagunça, é surrealismo do cotidiano, é happening dadaísta. 

Respeito mas dispenso aquele show-da-churrascaria-Plataforma que virou o desfile das Escolas de Samba. Não gosto de festinha fechada a céu aberto, com cachê, crachá e cordão de isolamento. Carnaval de trio é o velho carnaval dos Clubes aristocráticos invadindo a coitada da rua, já que os clubes vivem às moscas. O pessoal endinheirado fecha a rua e sai brincando, e se pobre chegar perto tem os seguranças para afugentar. 

Isso não é carnaval fora de época, é uma festa fora de si.

Quando meus pais já estavam velhos, com os filhos todos criados e morando fora, o carnaval deles se resumia a uma tocaia solerte. Meu pai ficava lendo no terraço, minha mãe na cozinha administrando as coisas. De vez em quando parava um carro e um amigo deles subia a escada até o terraço, para um dedo de prosa. Minha mãe vinha, havia aquela troca de cumprimentos, ficavam por ali, jogando conversa fora. 

Meu pai perguntava: “E tu, Fulano, tás brincando?” Quando o incauto respondia que sim, sua sorte estava selada. Meu pai fazia um sinal imperceptível, minha mãe pedia licença e ia lá dentro. O papo prosseguia, sobre assuntos variados, até que Mãe vinha lá da cozinha, às vezes ajudada pela empregada, trazendo um enorme caldeirão-de-fazer-buchada cheio dágua, que era despejado sobre a cabeça do visitante. 

O sujeito quase enfartava do susto, ficava tirando água dos olhos, apalpando o cigarro, a carteira e as roupas empapadas, enquanto Dona Cleuza e Seu Nilo se abraçavam com ele, pulando, às gargalhadas: “É Carnaval! É Carnaval!”

Carnaval é bagunça. Um dos melhores carnavais que já brinquei foi o de Olinda entre 1978-1983, quando a cidade ainda não tinha virado um imenso mictório com orquestra. Era o tempo em que a gente fazia um bloco com dez violões e duzentas latas vazias, e brincava três dias sem parar. 

O cara podia se fantasiar de índio peruano e passar o carnaval inteiro batendo num tambor inaudível pendurado ao pescoço. 

Ou então se vestir de mulher, sair pra tomar cachaça, e dois dias depois perceber que ainda estava com a mesma roupa. 

Ou então pegar um coco-verde, começar a jogar bola com outros bêbos, e vir driblando a multidão da Rua do Amparo até a Praça do Jacaré, ida e volta, a noite toda, sem que ninguém me tomasse a bola. Não me perguntem como, nem por quê. É Carnaval.




0610) O Rock, a Direita e a Esquerda (3.3.2005)




Para muita gente estes termos designam dois partidos políticos, mas na verdade eles expressam algo que vai muito além da política. São visões do mundo que impregnam tudo, da Estética à Religião. 

Tentando resumi-las da maneira mais sintética possível, eu diria que a Direita acredita que as Elites devem governar as Massas, e a Esquerda crê que as Massas devem governar as Elites. 

Claro que, numa arena inflamada como a da política, termos como “elite” e “massa” acabam ganhando conotações pejorativas ou auto-glorificatórias.

Uma das classificações mais divertidas do pensamento da Direita e da Esquerda é a de Quaderna, o protagonista do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, comentando as brigas ideológicas de seus mestres Clemente e Samuel:

“De modo semelhante, tomavam, furiosamente, partido em tudo. A Sociologia era da Esquerda, e a Literatura fortemente suspeita de direitismo. O “riso satírico e a realidade” eram da Esquerda, a “seriedade monolítica e o sonho”, da Direita. A Prosa era da Esquerda e a Poesia, da Direita; mas, mesmo ainda dentro do campo da Poesia, tomavam partido, pois a lírica era considerada “pessoal e subjetiva, e portanto direitista e reacionária”, enquanto que a satírica, “social e moralizante, didática” era considerada progressista e da Esquerda.

A Natureza, com “a luta pela vida, dura e cruel, com a selvageria, a desordem, a sobrevivência do mais forte e as marcas que ainda guardava do Caos e do negrume”, era da Direita. A cidade, “organizada, baseada no progresso, no trabalho e na máquina”, era da Esquerda.

Do ponto de vista social, o sexo masculino, mais forte, dominador e explorador do outro, era da Direita, e o sexo feminino, explorado, fraco, ressentido e revoltado, da Esquerda. Mas, do ponto de vista do gosto, o sexo masculino, sóbrio e despojado, era da Esquerda, enquanto o feminino, com o amor pelos tecidos e pelas jóias, era da Direita. E assim por diante, em tudo e por tudo”. (Folheto 34)

É uma sátira, claro, mas distinções deste tipo podem ser multiplicadas a tal ponto que parecem pertencer a um movimento instintivo da mente humana. Servem para qualquer coisa. 

Se os padrinhos de Quaderna fossem versados em rock-and-roll, por exemplo, o elitista Samuel diria que o rock é de Esquerda, porque expressa o primitivismo musical das massas urbanas, o nivelamento-por-baixo da arte de combinar letra e música, e a rebeldia-sem-causa de adolescentes incomodados com a autoridade paterna. 

E o marxista Clemente diria que o rock é de Direita, porque expressa os interesses das mega-corporações da indústria fonográfica, a lavagem cerebral de-cima-para-baixo promovida pelos meios de comunicação, e a promessa de enriquecimento fácil desviando a juventude da verdadeira luta política. 

Os Beatles (comportadinhos, condecorados pela Rainha) são de Direita, e os Rolling Stones (sujos, mal-educados, agressivos) são de Esquerda. 

E assim por diante, em tudo e por tudo.





sábado, 18 de outubro de 2008

0609) Escrevendo sonhos (2.3.2005)




(Entr'acte, René Clair, 1924)

Em seus Notebooks, Nathaniel Hawthorne anotou para si próprio (e para quem interessar pudesse) a seguinte tarefa: 

“Escrever um sonho, que deverá se assemelhar ao perfil de um sonho verdadeiro, com todas as suas inconsistências, suas excentricidades, sua falta de propósito – e que no entanto tenha uma idéia central a percorrê-lo de ponta a ponta. Desde o início do mundo até este ponto tão avançado de sua história, um texto assim jamais foi escrito”.

Muita gente há de discordar desta afirmativa final. Para os críticos, a linguagem desconexa, híbrida, aparentemente insensata do último livro de James Joyce (Finnegans Wake) não é nada mais que a sintaxe do sonho transposta para a narrativa verbal. 

Muitos outros experimentos da literatura de vanguarda podem reclamar a mesma condição. O ano passado em Marienbad, de Robbe-Grillet, filmado por Alain Resnais, é uma narrativa que tem do sonho as recorrências inexplicáveis, a amnésia generalizada, a ambientação asfixiante, a impressão de desenraizamento.

O cinema, principalmente o cinema surrealista, chegou perto do que propunha Hawthorne. 

O exemplo clássico é Um cão andaluz de Buñuel, mas filmes como Entreato de René Clair ou, nos tempos recentes, algumas experiências de David Lynch têm algo do clima ominoso dos sonhos, em que as imagens e as situações nos produzem emoções que desconhecemos em nós mesmos, emoções que não têm uma justificativa, que não são o medo, a repulsa, a irritação ou a curiosidade que experimentamos numa situação regida pela lógica e pelo bom-senso. 

Na literatura, o discurso é forçosamente encadeado por cláusulas, pelos “porquês” e os “comos” da sintaxe, o que dá uma aparência de lógica às situações mais desconexas. No cinema, o que temos é sensorialidade pura (imagem + som), presentificação de ambientes e de situações sem tentativa ou possibilidade de explicá-los.

No século 19, quando o Realismo literário foi considerado por muita gente uma espécie de triunfo final, de “Fim da História” na literatura, grande parte da literatura fantástica optou pelo sonho como o álibi principal para os eventos impossíveis que narrava. Depois de passar por uma série de peripécias, o protagonista, nas últimas linhas, acordava de volta em sua poltrona ou sua cama. 

Machado de Assis é um que recorreu repetidamente a este artifício – o exemplo mais famoso e mais brilhante é o episódio do hipopótamo, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Sonhos, delírios, alucinações, foram um pretexto para justificar os passeios dos personagens pelos guetos interditos do Fantástico. 

O trecho de Machado, aliás, é uma resposta curta mas cabal à provocação de Hawthorne. E se destaca na obra do autor carioca, que sempre foi uma obra clássica, racionalista, governada por uma lógica implacável. Brás Cubas, seus emplastros e seu hipopótamo são um bendito alívio, uma sombreada trégua de maluquice no sol causticante de tamanha lucidez.






0608) Tradição e brodagem (1.3.2005)



Alguns pontos em comum entre o que chamamos de Tradição Oral (no universo do “folclore”, “cultura popular”, etc.) e o que chamamos de Cultura Virtual (a cultura do mundo digital, da Internet, etc.).

Primeira coisa: o Anonimato Coletivista. Ambas as culturas existem dentro de um “corpus” coletivo, um universo criado em conjunto por milhares ou milhões de pessoas que não se conhecem, e que não precisam se conhecer. O individualismo da produção cultural urbana, industrial, moderna, não vigora nem no universo das culturas tradicionais nem no recente universo da cultura virtual. Isto tem aspectos negativos, como a freqüência com que obras criadas por um indivíduo são apropriadas e assinadas por outro, ou então falsamente atribuídas a um terceiro. Antigamente, não era rentável pegar um livro publicado por alguém e republicá-lo com o nome do usurpador. Hoje, com meia dúzia de cliques isto é possível, a custo zero. O livro não é fisicamente impresso, mas pode circular na Rede com a falsa atribuição de autoria.

Por outro lado, a simples existência de uma cultura coletiva anônima tem um enorme valor sociológico, mesmo que não tenha valor estético. É possível saber com mais riqueza e mais nitidez o que uma comunidade de pessoas pensa. E a perda de importância da autoria individual tem, como contrapartida positiva no aspecto psicológico, a criação de novos conceitos de generosidade, desprendimento, compartilhamento fraterno.

Segunda coisa: a Tradição antiga se valia acima de tudo da autoridade paterna, da credibilidade dos antepassados. Os participantes dessa cultura se sentiam imbuídos da missão de preservar algo que lhes tinha sido transmitido pelos pais, avós, bisavós. Havia uma linha vertical de herança que precisava ser mantida. Na Cultura Virtual de hoje, existe um rompimento com essa tradição vertical, que é substituída por uma fraternidade horizontal. O usuário sente-se devedor de seus contemporâneos, e não de seus ancestrais. Ele não é mais formado pelo exemplo paterno, mas pelo exemplo fraterno dos “brothers”, da “rapaziada”, da “galera”.

Terceira coisa: tanto a Tradição quanto a Cultura Virtual se preocupam mais com o conceito de Processo do que com o de Obra. Um embolador-de-coco e um sampleador de MP3 estão mais preocupados em fruir o prazer criador de manipular do que em cristalizar uma obra pronta e acabada onde “não precisa mais mexer”. É de “mexer na obra” que eles gostam; é do processo de ficar criando e recriando. O gosto de fazer conta mais do que o orgulho pela obra feita.

Quarta coisa: o que caracteriza tanto a Tradição quanto a Cultura virtual é a posse dos meios de produção. Podem ser rudimentares ou de fundo-de-quintal; mas são seus. Um cordelista que imprime seus folhetos no quarto dos fundos compartilha o mesmo espírito do roqueiro que grava seu disco num Cakewalk, queima 150 CDs e sai vendendo na porta dos shows de rock. Nova roupagem para uma liberdade antiga.

0607) Uma lenda oriental (27.2.2005)



Diz uma antiga lenda oriental que na época da dinastia T’sin, havia um rei despótico que gastava de modo perdulário, prendia e torturava os críticos do seu regime, e roubava o Tesouro público. O rei subira ao trono cercado de expectativas, pois fora um príncipe inteligente, amado pelo povo. Depois que passou a governar de modo desastroso, um grupo de nobres reuniu-se, conspirou, e juntou exércitos para enfrentar o tirano. Houve uma guerra sangrenta. O tirano foi morto, e os nobres elegeram, para substituí-lo, o nobre Li H’sien. Este era um homem íntegro, mas, assim que subiu ao trono, começou a se comportar de modo muito parecido com o antecessor. Perseguiu os antigos aliados, construiu palácios para seus parentes, cercou-se de bajuladores, e botava na cadeia quem falava mal dele.

Os nobres agüentaram isso durante alguns anos, aí juntaram-se novamente, desencadearam outra revolução, executaram Li H’sien e colocaram no trono o general Hsui-Pen, um homem valoroso, simples, de julgamentos serenos e caráter firme. Poucos anos depois, o general tinha transformado a corte num verdadeiro bordel com orgias intermináveis, além de promover a execução de dissidentes, e a invasão militar das províncias vizinhas. Os nobres, já desesperados, sem saber o que fazer, foram queixar-se ao Budista Tibetano. O Budista Tibetano deu uma baforada do seu narguilê, pensou, pensou, aí disse: “Olha, eu, se fosse vocês, tocava fogo era naquele trono. Todo mundo que se senta lá fica assim.”

Gostou da lenda oriental, caro leitor? Se gostou, obrigado, porque acabei de inventá-la. Não, não me elogie. A imaginação e a criatividade pouco contribuíram para a sua execução. O que mais me valeu foi a memória, o hábito de ler jornais, e algumas décadas de vida debruçado na janela por onde o mundo vive passando e só Carolina não vê. Para os que se debruçam nessa janela, o mundo traz surpresas cíclicas. Se são cíclicas, talvez não devessem ser surpresas, porque a repetição nos deixa prevenidos. Mas é que o mundo não se repete em círculos, como supunha Nietzsche, mas em espirais: cada vez que uma coisa acontece, acontece num ponto diferente da vez anterior.

O filme Viva Zapata, de Elia Kazan, mostra Marlon Brando no papel de um camponês mexicano que se revolta. Um dia eles vão protestar algo junto ao tirano local e este, enraivecendo-se , pergunta: “Você! Como é seu nome?!” Ele responde, intimidado: “Zapata. Emiliano Zapata.” Os anos se passam, Zapata entra na luta armada revolucionária, vira líder e herói, mas descobre que é mais fácil deflagrar Revoluções do que mantê-las. Depois que vira presidente do México, um dia uns camponeses vão ao palácio reclamar de alguma coisa. Ele se irrita com um dos queixosos, e diz: “Você! Como é o seu nome?!” Aí na mesma hora o episódio antigo lhe vem à memória, e ele se cala, confuso, percebendo a inversão dos papéis. Pois é. O problema é o trono, presidente.


0606) É negócio pra homem (26.2.2005)


(desenho de Saul Steinberg)

Uma das balelas que mais me irritam na jângal de clichês do nosso cotidiano é a história de que tarefas intelectuais, racionais e lógicas são mais adequadas à mente masculina, e que as mulheres são mais propensas às tarefas que envolvem a sensibilidade, a emoção e o afeto. Nunca escutei sandice maior na minha vida, e se eu fosse mulher me dedicaria a combater isso com uma veemência que faria a Al-Qaeda parecer um Clube Dominical de Dominó. Fico imaginando como é que uma mulher (estou falando uma mulher de verdade, e não uma zumbi maquiada) escuta uma coisa dessas e não pega-em-armas.

De vez em quando ouço uma mulher dizendo; “Eu não consigo usar computador. É coisa pra homem. Essas coisas são frias, lógicas, matemáticas, mas eu lido é com a emoção.” A primeira coisa que me vem à mente é que essa cidadã é incapaz de pagar uma conta ou passar um troco, porque não tem atividades mais lógicas e matemáticas do que estas. Uma mulher que diz uma coisa assim é incapaz, a meu ver, de dirigir um automóvel. E no entanto, os motoristas mais rápidos que conheço são todos homens (porque dirigem emocionalmente), e as motoristas mais confiáveis que conheço são mulheres (que dirigem com o juízo). E o que dizer de cuidar do orçamento de uma casa, comprar material escolar, organizar uma festa, preparar um almoço? São atividades onde a emoção e a afetividade só interferem marginalmente. São atividades lógicas e matemáticas (medir quantidades, determinar espaços, formar grupos homogêneos, planejar alternativas...), ou será que eu fiquei doido?

Existe coisa mais intelectual do que receita culinária? Uma mulher que não gosta de coisas lógicas é incapaz de distinguir o que são “250 gramas” ou “2 colheres e meia” de algo, ou de interpretar corretamente instruções sutis como: “Sal e pimenta a gosto” ou “Levar ao forno até dourar”. E não venham me dizer que quem faz isso é a “sensibilidade”, a “intuição feminina”. Sensibilidade e intuição são processos intelectuais, e sua única relação com o mundo emotivo é que só recorremos a eles quando estamos movidos pela emoção, geralmente a ansiedade por não ter obtido sucesso seguindo os processos convencionais. A intuição é um livro sem título na lombada, mas as instruções que contém são de ordem intelectual.

Existe coisa mais fria e lógica do que fazer tricô ou crochê? Folheei alguns álbuns de instruções dessas nobres artes, e dei graças à Providência que me fez nascer varão, levando meu pai a me ensinar o xadrez. Se eu tivesse nascido mulher, minha mãe ia querer me ensinar tricô, e minha vida intelectual seria abortada no nascedouro. Tiro o chapéu para as mulheres que tricotam calmamente, agulhas em punho, enquanto falam da vida alheia. Aquilo ali é mais difícil do que consertar placa-mãe. Minhas caras amigas, a mente humana é formatada nos cinco primeiros anos. Cuidando a tempo, tudo é possível. Até mesmo um homem aprender tricô.

0605) A idéia na poesia (25.2.2005)





(Carlos Drummond de Andrade)

Foi Ezra Pound quem difundiu a idéia de que a Poesia consiste basicamente em três elementos misturados: Música, Imagem e Idéia. 

Quando se fala em Idéia, muita gente pensa logo que se trata da “mensagem” do poema, ou seja, “aquilo que o poeta quis dizer”. 

Quero lembrar que a poesia não é uma charada, algo que tem uma resposta oculta que cabe ao leitor descobrir com a ajuda de pistas espalhadas ao longo do texto. 

O Poeta chega e diz: “O animal na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas!” Silêncio respeitoso e perplexo entre a multidão. Aí o crítico de poesia da Academia Francesa pede a palavra e responde: “O animal, tatu. Na torre da igreja, sino. Encontra-se doente, tá tussino.” Palmas, vivas, chapéus voam pelo ar. Não, amiguinhos, poesia não é assim.

Um poema não é uma charada ou uma adivinhação, cujo objetivo é achar a resposta. 

Uma poema não é uma fábula de Esopo ou de La Fontaine, que existe para ilustrar um princípio moral do tipo “Quem tudo quer, tudo perde”. 

Um poema não é uma piada, cujo objetivo é provocar uma gargalhada com a última linha. 

Ou melhor, um poema até pode ser isso tudo, mas provavelmente não será um bom poema, e em todo caso não é com essa finalidade que a poesia existe, ou que a própria noção de Idéia existe na poesia.

Em muitos casos a Idéia de um poema é uma história que ele conta, e essa história pode ser ilustrativa de uma visão do mundo político, filosófica, ou uma mera opinião do autor. Isso não empobrece um poema. 

“O Operário em Construção” de Vinícius de Morais, é um bom exemplo de poema inteiramente voltado para transmitir ao leitor uma mensagem política clara e inequívoca, e que mesmo assim é um grande poema, por ter outras qualidades além dessa idéia (é um poema rico em Música e em Imagem, por exemplo). 

http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao 

A obra de Brecht e de Maiakóvski é o melhor exemplo de que pode-se fazer poesia política de alta qualidade. Os dois, no entanto, são a exceção, não a regra.

Um poema ganha em sutileza e permanência quando conta uma história mas essa história não se fecha, não se resume numa frasezinha aconselhatória. 

O que é “O Caso do Vestido”, de Drummond? 

http://www.releituras.com/drummond_vestido.asp

Um poema contra o adultério? A favor do adultério? A favor do castigo? A favor do perdão? Quem saberá jamais? O poema se inicia com as filhas perguntando à mãe “o que é aquele vestido pendurado ali”. A Mãe lhes conta a história de como o marido a abandonou por outra mulher, e depois acabou voltando. O vestido é isto? O poema é isto? 

Cada vez que relemos poemas como este ou como “Desaparecimento de Luísa Porto”, “O Padre e a Moça”, “Morte do Leiteiro”, vemos uma história ser contada, e cada resposta se abre em mil novas perguntas. 

Um poema é um gerador de idéias. Ou é um instrumento potencializador das idéias mais presentes em nossa memória no momento da leitura – de tal modo que, quando o relemos, pensamos coisas diferentes das que pensamos nas vezes anteriores.





quarta-feira, 15 de outubro de 2008

0604) As Kenningar (24.2.2005)




Jorge Luís Borges comenta em vários ensaios uma curiosa formação lingüística que ele aprendeu na poesia da Islândia, e que são as chamadas “kenningar” (ao que parece, é “kenning” no singular, “kenningar” no plural). 

O ensaio mais didático, e mais acessível ao leitor brasileiro, é “As kenningar”, no volume História da Eternidade (Ed. Globo). 

As kenningar são epítetos obrigatórios que os poetas da Islândia utilizam para descrever tudo, desde uma paisagem até um animal, desde uma arma até um veículo. São símbolos obrigatórios, por assim dizer, ou metáforas verbais consagradas a tal ponto pelo uso e pela tradição que espera-se de um poeta que volte a usá-las, que as conheça e respeite, que as repita, que crie variantes.

Borges nos fornece naquele ensaio uma longa lista de kenningar cuja compilação, confessa ele, lhe proporcionou “um prazer quase filatélico”. Alguns exemplos: “tempestade de espadas” significa batalha, “repouso das lanças” quer dizer paz, “lua dos piratas” é o escudo, “país dos anéis de ouro” é a mão, “o suor da guerra” é o sangue, “o irmão do fogo” é o vento. 

Os poetas islandeses repetiam as expressões antigas e criavam novas – a enumeração de Borges registra dez imagens desse tipo para dizer “espada”.

O que são as kenningar? Para mim, são clichês, são lugares-comuns. Não digo isso em tom pejorativo, mas para tentar equacionar essa duas qualidades aparentemente contraditórias, a fagulha poética e a cansativa repetição. O excesso de uso embota a lâmina da linguagem, e eis aqui uma boa kenning em língua portuguesa, não é mesmo? 

Cada metáfora desse tipo nos provoca um choquezinho-elétrico agradável nos nervos sensíveis à poesia, quando a encontramos pela primeira vez, mas com cada repetição o efeito decai em proporção geométrica. O clichê fica oco, vazio, mera repetição mecânica, e irrita o leitor mais calejado, que está tropeçando nele pela centésima vez.

Existem kenningar de segundo grau, que são combinações mais complexas de fórmulas já existentes; daí dizer-se que os reis generosos ou perdulários são “os que desprezam a neve do posto do falcão”, porque o “posto do falcão” é a mão, e a “neve da mão” é a prata: os reis generosos distribuem a prata como se ela não tivesse valor. 

Diz o órfão-platense-do-Prêmio-Nobel (tá vendo? A gente pega o jeito rapidinho): “Lua-dos-piratas é uma fórmula que não se deixa substituir por ´escudo´ sem perda total. Reduzir cada kenning a uma palavra não é isolar uma incógnita: é anular o poema.”

As kenningar não são estranhas ao processo espontâneo de fabricação de clichês em nossa língua brasileira, e não me refiro às elucubrações literárias, mas à língua das esquinas, dos botequins e dos radinhos de pilha. 

Todos nós sabemos que quando o esquadrão da Gávea adentra o tapete verde do templo do futebol, é para ensinar ao onze cruzmaltino, pó-de-arroz ou da estrela solitária como se pratica o esporte bretão dentro das quatro linhas.