sexta-feira, 9 de outubro de 2009

1292) Noel Rosa (4.5.2007)



Os jornais anunciam que este ano a obra musical de Noel Rosa estará se tornando de domínio público, porque se completam 70 anos da morte do autor. Parece menos. Se a gente pega as músicas de Noel, sente na maioria delas uma simplicidade poética e uma sutileza que parecem ser do ano passado. Comparadas com as letras de Noel, são algumas letras recentes de Chico Buarque que (sem discutir o mérito da qualidade poética) parecem vir de uma época mais rebuscada, mais erudita, menos coloquial. A comparação procede. Chico e Noel estão sempre próximos em minhas referências, porque sou da geração que foi correndo à loja da Olacanti para perguntar a Dora se já tinha chegado o LP de Chico Buarque, no qual já sabíamos que iríamos encontrar seu grande sucesso “A Banda” e suas duas obras-primas, “Olê Olá” e “Pedro Pedreiro”. E a imprensa carioca saudava o aparecimento do maior letrista do Rio de Janeiro desde Noel Rosa.

Não se pode conceber duas vidas mais diferentes nem em dois talentos tão parecidos. Chico e Noel têm um olho meio Cartier Bresson para distinguir personagens fugidios ou pequenas situações do cotidiano, e extrair deles meia dúzia de estrofes que os fotografam de dez ângulos diferentes e inesperados. Depois, guardam a máquina na bolsa e vão embora assobiando, como se aquilo fosse a coisa mais simples do mundo. O Noel Rosa de “Três Apitos”, “O Orvalho vem Caindo” ou “Conversa de Botequim” gerou o Chico Buarque de “Rita”, “Juca”, “Você não ouviu”, “Januária” ou “A Televisão”. São as décadas de diferença entre os dois, e a inegável erudição de Chico, que o levam a explorar formas mais complexas que Noel, pela formação que tinha e pela vida que levava, não se sentiria impelido a experimentar. Noel talvez pudesse ter composto “Quem te viu, quem te vê” ou “Carolina”, mas, talento à parte, não posso imaginá-lo fazendo experiências como “Construção” ou “Geni e o Zepelim”.

Noel foi quase um cantador de viola. Dada uma estrofe de forma fixa, cada estrofe com o mesmo número de versos, cada verso com o mesmo número de sílabas, ele parecia capaz de derramar texto dentro delas e preenchê-las como quem enche copos sucessivos sem que fique uma gota dágua sobrando ou faltando. Sua espantosa fluência verbal fazia tudo parecer muito fácil. Sua vida boêmia e seus desenganos amorosos lhe deram uma percepção amarga das coisas que se vê em “Último desejo”, “Pra que mentir”, “Filosofia”, “Quantos beijos”... Diz-se dele (como de tantos compositores do samba) que compunha batucando na mesa do botequim, rabiscando em guardanapos, esperando o bonde. Fazia música de ocasião, atendendo à provocação de um amigo, ou estimulado pela melodia nova que o parceiro acabava de dedilhar ao violão. Como o chope num barril, tinha poesia sob pressão, gelando na serpentina, esperando apenas o momento de abrir a torneira. Em 2007, sua obra retorna ao domínio público, ao ambiente que a produziu.

1291) Arte Conceitual (3.5.2007)




(ilustração: Keith Arnatt)

Chego ao Centro Cultural, pego minha senha, adentro a exposição principal. É um vasto salão de paredes nuas, chão nu, teto nu, e toda essa nudez dionisíaca deve ter como propósito equilibrar a sobriedade apolínea da obra exposta no meio do aposento. 

Aproximo-me. Sobre o chão de tacos há um praticável de madeira em tom neutro, com um metro quadrado, e em cima dele A Obra. 

É uma caixa de acrílico transparente, que parece inteiriça, porque não percebo junturas nas suas arestas. Não é quadrada nem retangular; lembra um pouco uma estrela tridimensional, com raios que se expandem em todas as direções a partir de um centro, só que um raio é cilíndrico, outro é um cone fino e torto, outro é uma série de bolotas de tamanhos diferentes, outro é uma haste que se expande em cálice-losango, cada um deles com diâmetros entre dez e vinte centímetros, e todos ocos.

Rodeio dum lado, rodeio do outro, fazendo de conta que não vi direito algum detalhe, mas na verdade estou ganhando tempo diante de mim mesmo, porque me sinto na obrigação de ter uma idéia. 

À minha esquerda um casal, ele de bengala e barba branca, ela de óculos acadêmicos e cara de sobrenome europeu. “Multiplicidade”, murmura ele. “E simultaneidade”, retruca ela. Ele pega a deixa: “É um corte sincrônico nas possibilidades do Ser”. Ela: “Sim – mas é uma interrupção no seu devir”.

Rodeio de novo. Dois rapazes de roupa descuidada, cavanhaque pop e cara de quem deu uma bola. “Vi um igualzinho em Kassel”, diz o mais alto. “O autor disso também viu”, diz o outro. E soltam casquinadas escarninhas, tapando a boca com a mão.

Volto a rodear e me aproximo de um grupo de moças, todas bronzeadas, todas de ombros à mostra, todas de testa franzida, em volta de um quarentão de cavanhaque, terno preto, camisa preta, cabeça raspada, parecendo o Agente 47 do “Hitman”. Uma dela diz: “Mas, o que que tem aí dentro?” Antes que ele responda, uma mais impetuosa responde: “Oxigênio!”. 

Ele sorri, passa os braços sobre os ombros das duas (enciumando as demais, que se aglomeram em torno), e diz: “Sim. Oxigênio, azoto, poeira, mas acima de tudo...” Faz uma pausa dramatúrgica, e prossegue: “Espaço. É uma fragmentação do espaço através desse invólucro. Vejam como a substância envelopante tenta manter-se invisível, imperceptível. Não é ela a obra. A obra é esse formato que ela delimita. Podemos ter certeza de que não há, agora, neste instante, em todo o Planeta Terra, em todo o Sistema Solar, em toda a Galáxia, nenhum outro trecho do continuum-Espaço-Tempo que tenha o mesmo formato deste que estamos contemplando.” 

Uma delas joga o cabelo para trás: “Uau”. Outra murmura: “Ai, professor, me arrepiei agora”.

Entenderam o que é Arte Conceitual? É teatro. Uma peçazinha de teatro que o público improvisa sem saber, criando diálogos e atitudes em torno de um Objeto Mudo que lhe serve de Catalisador de Idéias, ou de Mote Universal, ou de Tábua de Salvação.






1290) As gravuras de Goya (2.5.2007)


(Goya, Modo de Volar)

O Museu de Arte de São Paulo está com uma exposição de gravuras de Goya, a qual nos dá uma idéia muito boa do talento transbordante do artista, e também da importância da gravura, numa época pré-fotografia, como registro de época e de mentalidades, mesmo quando suas intenções não eram realistas nem documentais. Embora dê mais trabalho do que, por exemplo, um desenho a nanquim ou uma aquarela (o que é sempre relativo, pois tem mais a ver como o ritmo do artista do que com a técnica em si), a gravura se cristalizou nos séculos 17 e 18 como o principal recurso de ilustração, da imagem cuja primeira função é fornecer uma referência visual para uma discussão verbal que circula num certo momento.

A exposição de Goya se organiza em quatro temas: Desastres da Guerra, Tauromaquia (touradas), Caprichos e Disparates. Não precisamos ir a São Paulo para conhecer estas gravuras; podemos ver todas elas, virtualmente, em: http://www.almendron.com/arte/pintura/goya/estampas/estampas.htm.
Aconselho uma visita para que se perceba como o mesmo artista pode ser um realista extremado e um visionário delirante. As gravuras “Desastres da Guerra” são de uma violência brutal, mostrando fuzilamentos, torturas, massacres, perseguições, e o terror do pós-guerra, a fome campeando de ponta a ponta, os retirantes esquálidos. Em contraste, as gravuras da série “Tauromaquia”, das corridas de touro, são até ingênuas, mesmo quando mostram os animais sendo sacrificados na arena ou quando, como tantas vezes acontece, “a Caça caça o Caçador”, e é o toureiro quem perde as tripas no fim da brincadeira. Pela primeira vez vi imagens de muçulmanos toureando: durante a ocupação árabe na Península eles adotaram os costumes locais, mesmo indo de encontro ao Corão.

Os “Caprichos “ são uma série de 80 imagens que têm um fundo crítico e moralista. O artista condena os vícios que são de se esperar na Espanha do século 19: avareza, cobiça, luxúria, hipocrisia, etc. Nesta série se encontra “O sonho da razão produz monstros”, talvez a gravura mais famosa de Goya, que mostra uma mulher reclinada sobre uma mesa, a cabeça pousada nos braços, e por trás dela aves fantásticas e ameaçadoras.

Os “Disparates” são 18 gravuras fantásticas em que Goya se aproxima de grandes criadores de máscaras terríveis como Hieronymus Bosch ou James Ensor. São demônios, duendes, trasgos, criaturas das trevas misturando-se a cenas cotidianas de grupos que conversam, casais que discutem, artistas ou dançarinos que se exibem. O violento claro-escuro habitual nas pinturas de Goya aparece aqui valorizado pelo preto-e-branco (ou cinza-e-sépia) das gravuras. Numa delas, “Modo de volar”, vemos uma prefiguração das asas-delta de hoje. Em todas (principalmente vistas em conjunto com o mundo das invasões napoleônicas, das corridas de touros, dos vícios do povão) o mundo delirante de um artista capaz de retratar ao mesmo tempo o visível e o por-trás-do-visível.