sexta-feira, 21 de julho de 2023

4964) O não-espaço (21.7.2023)



(ilustração: Sujit Sudhi)



Um não-espaço é qualquer lugar capaz de servir como uma negação (mesmo uma negação puramente simbólica) do espaço convencionalmente aceito. 
 
Não é um conceito científico, é dramatúrgico. Tem função na literatura e em outras artes narrativas. Serve para o autor pegar um personagem e retirá-lo do espaço comum a todos, engastando-o num local onde tudo tem que se reorganizar em torno dele. 
 
“A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa (em Primeiras Estórias, 1962) é um bom exemplo desse conceito. Um homem já idoso constrói para si uma pequena canoa e, abandonando a família sem dar explicações, mete-se na canoa rio adentro, mas sem se deixar levar pela correnteza e sem atravessar o rio por completo. Fica para lá e para cá, indo e voltando, no meio do rio. 
 
É um não-espaço no sentido de que ele procura permanecer num espaço que, em uso comum, serve apenas como fluxo, como espaço a ser transposto e deixado para trás. Nesse espaço de não-permanência, ele se instala e não faz menção de sair. 



(O Terminal)

Outro exemplo, mas com características totalmente diversas, é o filme O Terminal (Steven Spielberg, 2004). Tom Hanks faz o papel de um cidadão de um pequeno país em turbulência política. Ao desembarcar no aeroporto de Nova York, ele fica sabendo que devido a um golpe de Estado seu país não existe mais, e seu passaporte não tem valor. Ele não pode embarcar de volta, não pode ser aceito em território dos EUA, não pode embarcar para outro lugar. Fica morando no não-espaço do aeroporto.
 
Um local de passagem, de fluxo, onde ele é forçado a criar técnicas e truques de morador permanente.


(Simão do Deserto) 

O não-espaço pode ser escolhido por motivos publicamente aceitáveis. É o caso do protagonista de Simão do Deserto (Luís Buñuel, 1965), uma reconstituição fantástica da vida de alguns santos medievais, principalmente Simão Estilita, que passou 37 anos vivendo no alto de uma pilastra. O santo se isola ali no alto para se martirizar, para fugir às tentações do mundo, e também para servir de exemplo, pois multidões se reúnem para assistir o “não-espetáculo”. 
 
A coluna do santo faz lembrar outro conto de Guimarães Rosa, no mesmo livro: “Darandina”. Um homem chega a uma Casa de Saúde ou hospício e pede para ser internado, pois acha que o mundo lá fora está ficando cada vez mais louco e se o destino dele é ficar doido também é melhor garantir desde logo um bom lugar. Como o homem não parece doido coisa nenhuma, não é aceito; mas imediatamente vai para o meio da rua, rouba pertences dos passantes e escala uma enorme palmeira que há na praça. 




Lá em cima, o homem grita frases de efeito para a multidão que rapidamente se reúne, e acaba tirando a roupa por completo e jogando-a lá do alto. Os bombeiros vêm mas hesitam, com medo de que ele se jogue, mas de repente o surto acaba, ele se horroriza e desce de boa vontade.
 
O alto da palmeira é um não-espaço, um lugar onde alguém só subiria para cumprir alguma tarefa rápida e descer em seguida. É um lugar onde ninguém é proibido de ir, mas só um doido quereria se demorar ali em cima. 


Uma situação parecida com  personagem de Ítalo Calvino em O Barão nas Árvores (1957), em que um rapaz decide passar o resto da vida morando nas ramagens das árvores, sem voltar a pôr o pé no chão. É uma decisão não muito distante da do barqueiro de “A Terceira Margem do Rio”, e embora a história percorra caminhos diferentes, o não-espaço está ali: o espaço de que só pode se locomover sem tocar no chão. 
 
O não-espaço é muitas vezes uma espécie de limbo, de lugar isolado de tudo, um lugar não-lugar. Fora do espaço-tempo, talvez – e é neste aspecto que a ficção científica multiplica as situações em que alguém se situa num tal “ponto negativo”. 


 
Isto vem desde a FC mais pulp fiction, como as narrativas do imaginoso e envolvente F. Richard-Bessière. Em A Máquina Infernal do Tempo ("Carrefour du Temps"Tecnoprint, s/d, trad. David Jardim Júnior) ele mostra como o repórter Sidney Gordon, por ter praticado um ato que ameaçava a própria existência do nosso Universo, é “exilado” dele e instalado num “não espaço”. Ele acorda à noite em seu apartamento e estranha a escuridão absoluta no quarto:
 
O pior, porém, foi quando me debrucei sobre a sacada. Diante e embaixo de mim, não havia coisa alguma, a não ser o vácuo impalpável e aterrador. Dir-se-ia que a vida material tivesse desaparecido, além daquele peitoril e que não existisse a própria cidade. Acima, de mim, a mesma coisa. Senti, então, o maior medo de toda a minha vida, pois pensei que estivesse cego. O grito que quis dar não saiu da minha garganta, e foi com a mão trêmula que acendi o isqueiro...
Graças a Deus, não estava cego... Estava vendo tudo que se encontrava DENTRO do quarto, mas coisa alguma que estivesse FORA dele. 
Que se passava?
Corri para a porta e abri-a, bruscamente.
Não sei o que se teria passado, se eu não tivesse recuado instintivamente. Dessa vez, gritei mesmo, e senti um suor frio escorrer-me ao longo da espinha. O que se estava passando era fantasmagórico, alucinante. Para além da porta não havia mais o corredor. Em seu lugar estava o nada, o vácuo, o infinito, o desconhecido... 
 
Este tipo de não-espaço não tem verossimilhança científica, e é produzido apenas para efeito dramático. (Praticamente tudo na pulp fiction visa apenas ao efeito dramático, e a Ciência que vá pastar.)



Ligeiramente menos implausível, pelo menos em termos narrativos, é o não-espaço onde um personagem é projetado em Zeitgeist (2000, Bruce Sterling). Por estar muito próximo ao local da explosão de uma bomba atômica, no deserto do Novo México, o Vovô Joe deixa de existir no aqui-e-agora do nosso espaço-tempo, e vê-se espalhado ao longo de todo o século 20, como quando a gente espalha com a mão uma mancha úmida de tinta. Um não-espaço que na verdade é um não-tempo: há resíduos dele espalhados ao longo de todo o século 20, mas ele permanece lúcido e consegue se comunicar com o neto. 
 
Não acho que seja forçação de barra comparar o destino de Vovô Joe com o destino do “nosso Pai” de “A terceira margem do rio”. É a força do símbolo (e do símbolo em branco, sem conteúdo pré-fixado) que inspira e arrasta estas histórias: a nossa fascinação pela possibilidade de imaginar um destino improvável mas que corresponde, pela simples negação, à realidade em que vivemos. Ajuda a ver essa realidade “de fora”, de um espaço que é virtual, conceitual, dramatúrgico, alegórico, nocional: um não-espaço.