(ilustração: Gabriel Arcanjo)
Se eu fosse dono de uma editora profissional e Euclides da
Cunha me trouxesse o manuscrito de Os Sertões para avaliação, eu diria
(claro, desde já beneficiado por quilômetros de leituras e séculos de discussão
que não posso eliminar da memória estalando o dedo):
“Doutor Euclides, seu livro é um monumento. O que tem de
literário é magnífico, e o que tem de científico é rigoroso e ousado. Mas como todo monumento ele tem as dimensões
de uma montanha. É preciso aproximar-se dele aos poucos, conquistá-lo por
estágios sucessivos. O senhor sabe disso.
Tanto é assim que escolheu uma gradação do mais amplo para o mais
específico: a paisagem, os personagens, e por fim a luta. Mas pense se essa estrutura fosse invertida.
Primeiro, a Luta, a sangrenta batalha de Canudos. Finda esta, é como se o nosso ponto de observação se
distanciasse, e víssemos o Homem, populações inteiras agindo, nascendo,
morrendo, lutando. E depois a Terra, a terra que precedeu a nós todos e que nos
sucederá, a terra eterna, a terra que resistirá a tudo, até a nós.”
Acho que Euclides exclamaria “Humpf!” e iria em busca de
outra editora. Publicaria o livro exatamente como ele está até hoje, que
invalida meu universo paralelo acima. Mas há precedentes. Consta que a ordem
dos capítulos do Almoço Nu de Burroughs foi determinada pela ordem em que
eles chegavam pelo Correio aos responsáveis pela edição, que eram Allen
Ginsberg e Jack Kerouac. (Eu dou por vista a aventura que é trabalhar com dois
produtores ajuizados como estes.)
Meu Sertões seria uma versão convincente por si só, sem
precisar de comparações com a versão real.
Parece que Euclides quis de propósito tornar o primeiro degrau o mais
alto de todos, o primeiro trajeto o mais penoso e comprido. Fez como Dante, que começou a sua Comédia pelo inferno, como que sugerindo que não há nenhum caminho para o Paraíso que
não tenha de atravessar aquilo mais cedo ou mais tarde. O Purgatório meramente prepara a queda de
paraquedas no Paraíso.