sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

4671) A arte de dobrar guardanapos (5.2.2021)



 
O utilíssimo saite The Public Domain Review me envia de 2 em 2 semanas sua newsletter com as novidades que amealhou nesse período. É um saite dedicado a divulgar obras que caíram em “domínio público” – em geral, obras obscuras, de autores desconhecidos, de difícil acesso, mas que dizem algo sobre nossa civilização.
 
Mesmo quando os assuntos são banais, em geral a linguagem usada e as ilustrações são fascinantes. (Pense livros publicados em 1700+, em 1800+, sobre os assuntos mais irrelevantes e imprevistos.)
 
A edição desta semana, por exemplo, dá destaque a uma publicação de 1629: o Tratado da Dobradura de Guardanapos, de Mattia Giegher.
 
https://publicdomainreview.org/collection/serviette-sculptures-the-forgotten-art-of-napkin-folding
 

 



 
Parece ter surgido nesse período um intenso interesse nas formas de apresentação de refeições e banquetes, envolvendo elementos de decoração, artesanato, etc. Não devemos esquecer que o século 17 foi o século das perucas gigantes (masculinas, principalmente) que vemos ainda hoje nos tribunais britânicos. (Ou pelo menos nos “filmes de tribunais britânicos”, que foi só onde as vi.)


Johan Huizinga, num capítulo de seu imprescindível Homo Ludens (1938), dedica um capítulo às competições de perucas e adornos dos nobres desse tempo. Havia um barroquismo e um rococoísmo que se espalhava por todos os setores da vida humana. Inclusive os guardanapos.
 
Diz o texto da “Public Domain Review”:
 
Com a chegada do século 17, e a aceleração da educação e da cultura em bolsões localizados ao longo de toda a Europa, houve uma proliferação de manuais de como cortar carne, como servir uma mesa, e, no caso de Giegher, como dobrar guardanapos. Isso sugere um vivo interesse num tipo de conhecimento que antes fora exclusivo dos ambientes da realeza.

 
Riqueza, abundância material, cultura refinada, multiplicação de recursos, de tarefas, de empregos, de talentos individuais. Necessidade de afirmação social num ambiente de competições implícitas (ou nem sempre) em torno de quem é mais rico, quem é mais fino, quem é mais culto, quem é mais bem educado, quem tem mais informação, quem está tendo direito ao melhor do melhor do melhor.
 
O século 17 ainda não acabou.
 
Transformar a dobradura de guardanapos numa forma de arte? Será necessário? pergunta-se alguém. A questão não é ser necessário ou não, a questão é: o que dá existência a isso? Por que motivo essas coisas acontecem? Não temos vontade de fazer essa pergunta quando pensamos numa sinaleira de automóvel ou num hidrante ou num tubo de dentifrício. São coisas cuja utilidade e função nos parecem óbvias, assuntos encerrados. (Não são: ganharíamos muito tentando entender o “porquê” desses objetos, e de muitos outros.)
 
Mas... dobradura de guardanapos?!  A verdade é que quando a sociedade cresce, prolifera, enriquece, se desenvolve, é preciso dar ocupação a cada vez mais gente, e ao mesmo tempo é preciso direcionar os talentos pessoais de certos indivíduos para alguma coisa que se aproveite.
 
Quando você é uma chave-de-fenda e sai pelo mundo, tudo que não for cabeça-de-parafuso está meio fora de foco. Temos a tendência de gravitar rumo àquelas atividades onde sentimos que podemos quebrar um galho, resolver um impasse, adiantar uma situação. Com sorte, passarão a nos chamar outras vezes. Com mais sorte ainda, nos pagarão por isso.



Mattia Giegher ganhava a vida como trinchador de carne em açougues, mas quando se mudou para Veneza mudou de nome (chamava-se Mattia Jäger) e entrou no ramo das mesas ornamentais. Dedicou-se a isto e seu tratado é uma obra barroco-utilitária, uma expressão de uma sociedade abastada onde as pessoas provavelmente experimentavam orgasmos espirituais ao debater a posição exata de um botão na roupa ou a largura ideal de um bico de renda. 
 
Quando a sociedade enriquece e se refestela em paz na própria riqueza (ou seja, quando os humilhados e ofendidos estão quietinhos, sob o olhar vigilante das milícias), tudo se estetiza. Tudo é pretexto para o cálculo infinitesimal da Beleza. Isso passa de geração em geração, se impregna na cultura inteira, nos modos de ser, de conviver, de pensar. Até o nosso nobre Thomas de Quincey se dá o desfastio de imaginar O Assassinato Considerado Como Uma das Belas-Artes (1827).



E tudo pode mesmo se transformar em “arte”, se virmos essa palavra com uma certa amplitude de significado, a amplitude meio sem disciplina com que as pessoas usam a palavra na vida real. (Nos manuais de estética, é claro, que os filtros têm que ser rigorosíssimos, até para compensar a bagunça da Língua Geral lá de fora.)
 
Se achamos que existe arte na pintura de paisagens ou retratos a óleo, por que não a haveria na pintura de miniaturas, de camafeus, de botões-de-enfeite? Por que não haveria arte na pintura de cabeças de alfinete, ou naquelas esculturas de palitos de fósforos? Talvez falte significado social e ressonâncias humanas profundas a essas artes pequeninas, mas o fato é que uma “arte” só é pequenina até o dia em que uma pessoa fora do comum começa a praticá-la, num ambiente capaz de compreendê-la.
 
Como dizia Raymond Chandler, não existem gêneros literários pequenos para um grande artista; o problema é que existem artistas que se acham obrigados a se apequenar quando abordam um determinado gênero.
 
Existe algum futuro possível, na sociedade de hoje, em que a dobradura de guardanapos possa se tornar uma atividade estética independente de todo o resto, ser considerada pelo menos uma “arte ornamental” como o é a criação de leques, ou uma atividade criativa como o origami?