segunda-feira, 5 de julho de 2010

2233) Anna Karina e Godard (5.5.2010)



(Anna Karina em Alphaville)

Talvez não sejam o casal diretor/atriz mais famoso ou mais bem sucedido do cinema. Temos os exemplos clássicos de Lubitsch & Marlene Dietrich, Fellini & Giulietta Masina, Antonioni & Monica Vitti... Exemplos de casais em que não se sabe se era o talento do diretor que transformava a mulher num símbolo de erotismo e mistério, ou se era o contrário, se era a presença dela e o fascínio exercido por ela que extraíam dele a libido que, como se sabe, é um dos combustíveis preferenciais da criação artística. No caso de Godard e Anna Karina isso se deu ao longo de um breve casamento e uma relação intensa em que ela foi a figura central de sete filmes, ainda hoje inquietantes e cheios de charme: O pequeno soldado (1960), Uma mulher é uma mulher (1961), Viver a vida (1962), Bande à part (1964), Alphaville (1965), O demônio das onze horas (1965) e Made in USA (1966).

Um artigo de David Ehrenstein no L. A. Weekly (http://tinyurl.com/y2lu39d) comenta a sintonia total entre a imagem e o espírito da atriz e o olho do diretor: “Na tela e fora dela, Godard e Karina pareciam numa tal conexão emocional e intelectual que bastava a ele um olhar para conseguir dela o resultado que buscava”. Ela diz: “Havia um grande entendimento entre nós dois. Jean-Luc dizia apenas, ‘Anna, um pouco mais rápido, ou, um pouco mais devagar’, e isso era tudo”.

Karina era bela mas de uma beleza cinematográfica, uma das belezas mais cinematográficas que o cinema já exibiu, porque era um tipo comum, uma colegialzinha, uma balconista ou uma secretária com quem se cruza na rua sem reparar. Não tinha aquela sensualidade de mulher-que-sabe-tudo de Jeanne Moreau nem o erotismo “vulcão sob a neve” de Catherine Deneuve. Seu corpo, seu rosto e seus olhos, principalmente quando filmados em preto e branco, equilibravam doses máximas de sensualidade, espiritualidade e intelecto. Era a imagem ideal para os personagens de Godard, que habitam um universo paralelo próximo e distante do nosso.

David Ehrenstein diz que não era fácil encontrar uma atriz capaz de apunhalar um homem e em seguida, ignorando o cadáver, cantar uma canção (como ela faz em O demônio das onze horas). Ver no YouTube a cena de Bande à part em que ela e dois amigos executam uma coreografiazinha de colegiais, dançando, rodopiando, estalando os dedos, nos faz esquecer que é a mesma atriz que recita versos de Paul Éluard em Alphaville ou que, como garota de programa, encena uma antologia de cenas de sexo banal num quarto de hotel vagabundo (em Viver a vida). Numa época em que o colorido já reinava soberano, e as grandes estrelas do cinema eram potrancas como Ursula Andress e Rachel Welch, a imagem de Anna Karina, com sua saiazinha e pulôver de estudante, nos reconciliava com as meninas do mundo real, e nos permitia crer que nelas também estava guardado o mesmo mistério e a promessa implícita do mesmo paraíso.

2232) A estratégia do mal aos poucos (4.5.2010)




(Maquiavel)

Está circulando na Internet um documento atribuído ao linguista Noam Chomsky, um conhecido crítico das políticas dos EUA. O documento que circula talvez seja apócrifo, mas não importa. 

O autor enumera e comenta algumas das estratégias utilizadas pelos governos e pelas corporações para manter o controle ideológico da população e impedir que suas ações sejam questionadas. Já comentei algumas, e hoje vou falar no que o documento chama de “Estratégia da Degradação”. Diz o texto:


“A estratégia da degradação. Para fazer com que se aceite uma medida inaceitável, é suficiente aplicar progressivamente, em “degradado”, sobre uma duração de 10 anos. É dessa maneira que condições socioeconômicas radicalmente novas têm sido impostas durante os anos de 1980 a 1990. Desemprego em massa, precariedade, flexibilidade, salários que já não asseguram uma vida decente, tantas mudanças que teriam provocado uma revolução se tivessem sido aplicadas de forma brusca.”


O período a que o texto se refere é o da decolagem do neo-liberalismo, que os historiadores situam por comodidade no período de Margaret Thatcher como primeira-ministra da Grã-Bretanha (1979-90) e de Ronald Reagan como presidente dos EUA (1981-1989). No futuro, está década de 1980 será tristemente célebre. Ela foi o avesso, o Lado Negro da Força, do que representaram os anos 1960. 

O Casal Monstro trouxe para seus países (e as dezenas de países-sócios que vão no seu vácuo) uma aparência de prosperidade cuja conta só agora, vinte anos depois, começa a ser cobrada. E para pagá-la eles vão ter que inventar em breve uma nova moeda, o quatrilhão de dólares.

O mais interessante dessa estratégia, para mim, é que ela bate de frente como uma das estratégias mais famosas de Maquiavel em O Príncipe. Não tenho a citação exata agora, mas lembro-me de que Maquiavel aconselhava: “Fazer o bem aos poucos, e o mal de uma vez só”.  
Fazer o Bem aos poucos implica (a meu ver) na reiteração de ações e de programas que causem boa impressão no público. Serve como ação concreta e serve também como uma propaganda positiva, constantemente repetida, de que aquela boa ação do Governo volta a acontecer todo mês, toda semana, todo dia. Produz uma impressão de continuidade. 

Já o “Mal de uma vez só” é um pouco como a tática da depilação: melhor uma única dor forte, do que passar dez minutos puxando aquele troço devagarinho “para doer menos”.

Talvez a diferença seja esta: Maquiavel talvez se referisse a ações brutais como a repressão militar a uma revolta. Casos de emergência que requerem medidas brutais, radicais. 

A filosofia do “mal aos poucos”, por sua vez, se aplica a medidas de natureza econômica, que são mais solertes e sorrateiras, e vão se infiltrando aos poucos no cotidiano das pessoas. Seu poder aquisitivo perde alguns centavos por dia e nem dá por isso, mas ao fim de uma década elas passaram da classe B para a C sem dar um suspiro.




2231) O Ético e o Antiético (2.5.2010)


(As melhores coisas do mundo)
 
Algumas cenas do ótimo filme de Laís Bodanzky As melhores coisas do mundo (em cartaz na Capital) me deixaram com um pulga atrás da orelha. São cenas que se referem às atitudes éticas (ou antiéticas) de diferentes personagens, e são cenas cruciais, neste filme que discute, num roteiro cheio de variadas situações, as decisões éticas que os adolescentes vivem sendo forçados a fazer. 

Por exemplo – sacanear ou não sacanear um colega, só de gréia, só pra zoar? Denunciar ou não denunciar um colega que fez algo aparentemente errado? Espionar ou não espionar a vida de alguém que parece estar com problemas? E assim por diante. 

Há uma cena em que uma personagem revela um segredo pessoal, muito íntimo, para outra; e dias depois descobre que o Colégio inteiro ficou sabendo daquilo, o que está gerando problemas enormes para algumas pessoas. Diante das inevitáveis cobranças (“Mas como é que você comenta uma coisa dessa com Fulana, um segredo?”) a personagem desabafa: “Eu jamais imaginei que ela fosse espalhar isso pelo Colégio inteiro. Não é ético!”. 

Um problema frequente nas pessoas que procuram (sinceramente, honestamente, não da-boca-pra-fora) ter um comportamento “pautado pela ética” é que isso se torna tão obsessivo que elas acabam se esquecendo de algo muito simples: que as outras pessoas não são assim. Que muitas pessoas não estão nem aí para o que é ou não é ético, e que, como nesse exemplo acima, a maioria das pessoas é capaz de jogar seus escrúpulos éticos pela janela, em troca de uma fofoca “quente”, da revelação de um segredo desses de fazer arregalar os olhos de quem escuta. 

Em outro momento do filme, uma professora elogia um aluno cuja tese está orientando e alguém sugere, em tom brincalhão, que ela está tendo um caso com o aluno. Ela reage indignada: “Uma orientadora não pode ter um caso com o aluno! Não seria ético!”. Mas o filme dá o exemplo de outro personagem, um professor que acaba tendo um caso (e um caso homossexual) com um aluno a quem serve de orientador. E nada no filme nos leva a crer que esse caso é condenável. Pelo contrário: aceitamos, porque entendemos que foi uma paixão recíproca e sincera entre duas pessoas, e que os papéis de orientador e aluno, nesse caso, recuaram para segundo plano. 

O difícil em ser ético é que não existe uma fórmula pronta, aplicável de modo uniforme a todas as situações. Em ética, como em tantas coisas que envolvem julgamento de situações humanas complexas, cada caso é um caso. Isto não significa que não há valores éticos universais, mas que esses valores, que existem e devem servir sempre de crivo para o comportamento humano, existem justamente para serem aplicados a cada caso, existem para serem testados pelas demandas específicas de cada situação humana. 

O Bem e o Mal, o Certo e o Errado, o Justo e o Injusto são conceitos universais que só têm sentido se passarem pelo teste de cada complexa situação humana, porque é para resolvê-las que eles foram criados.






2230) Os presidentes e os flanelinhas (1.5.2010)



(tira de Laerte)

E lá vamos nós para outra eleição presidencial. O país inteiro se mobiliza, os partidos se organizam para gastar milhões de reais, e nós teremos o dúbio privilégio de dizer se queremos ser governados por Dilma Rousseff ou por José Serra. Tudo bem, trata-se de uma ex-guerrilheira de esquerda e um ex-presidente da UNE; mas quando chegam ao ponto de disputar um posto como esse, ambos estão muito diferentes do que foram um dia, e muito parecidos um com o outro. Hoje, a única diferença entre Dilma e Serra é que o cabelo de Dilma cresceu de novo.

Perdi uma oportunidade histórica alguns anos atrás. Em outubro de 2007, a ministra da Casa Civil foi internada no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, onde fez uma cirurgia de diverticulite. Ora – foi esta doença a razão alegada para a primeira internação e cirurgia de Tancredo Neves, na manhã do dia em que deveria tomar posse na Presidência da República, em 1985. Hoje a versão vigente é de que se tratava de um tumor benigno; mas como a doença alegada na época foi diverticulite, essa palavra, durante muitos anos, tornou-se uma senha capaz de gerar calafrios de paranóia na medula de qualquer brasileiro. Falar em diverticulite era lembrar todas as Teorias da Conspiração que herdamos da ditadura militar.

Deduzi naquela época que Lula ia indicar Dilma como candidata a sua sucessão, e que a cirurgia de diverticulite fora realizada preventivamente, para que não tivesse de ocorrer quando ela já estivesse ungida como candidata. Não escrevi a respeito porque tinha coisas mais importantes para me ocupar, e se o faço hoje é porque a campanha presidencial já se desenha no horizonte.

Por que damos tanta importância à Presidência da República? Num mundo como o de hoje, ainda mais num país mal-das-pernas como o nosso, é um cargo meramente decorativo. O Presidente da República administra o país, sim, mas o administra e governa em nome dos seus verdadeiros donos, que são as Eminências Pardas de sempre, os tubarões da economia, as megacorporações, os superbanqueiros. O Presidente cuida do varejo do país, como um mordomo ou uma governanta cuidam do varejo de uma mansão de 90 quartos enquanto os patrões estão fazendo turismo nas Ilhas Gregas.

Penso sempre nos presidentes (e aqui incluo Lula, Obama, Chávez, Sarkozy, Hu Jintao, qualquer um) quando estou chegando num restaurante e vejo um flanelinha pulando à frente do carro dos clientes. Como dá ordens! “Aqui! Bota aqui! Mais pra lá! Agora desfaz! Deixa solto!” Se um observador marciano olhasse a cena de longe, deduziria que ele dá as ordens e o motorista obedece. Naquele momento, o flanelinha também acredita nessa fantasia benigna, acredita nessa fala-de-condão que lhe dá o poder de ser obedecido por sujeitos de terno Armani ao volante de um BMW. Assim são os mandatários de qualquer país. Eles mandam, gesticulam, dão ordens veementes. Os caras ao volante estacionam onde querem... e vão à mesa.

2229) “As melhores coisas do mundo”(30.4.2010)

Este filme de Laís Bodanzky (em cartaz na Capital) é um dos filmes brasileiros mais simpáticos dos últimos tempos, um filme sobre adolescentes que fala sem preconceitos sobre sexo, drogas e rock-and-roll. Fala sobre homossexualismo, sobre pais que se separam deixando os filhos apavorados; fala sobre garotos e garotas que experimentam drogas, e que se envolvem em fofocas e maledicências via celular. E fala de uma maneira equilibrada, descontraída, sem lições de moral. Me digam qual é o jovem que dá ouvidos a um adulto que tenta dar-lhe lições de moral. Ele pode prestar atenção e dizer “sim senhor” por uma questão de afeto e respeito. Mas na hora de agir, seja lá em que for, vai agir de acordo com a totalidade das informações que tem, com a totalidade das influências que recebe. E aí, meu amigo, é uma área onde os pais não podem ter controle total. A última geração de pais que teve esse controle foi no Sertão, cem anos atrás. O filme tem roteiro de Luiz Bolognesi e se baseia numa série de livros juvenis escritos por Gilberto Dimenstein e Heloísa Prieto. A história é basicamente o que acontece ao longo de alguns meses com dois irmãos, Pedro e Mano, que estudam no mesmo colégio, e cujos pais, professores universitários, acabaram de se separar. Pedro é mais velho, já transou, tem namorada fixa, faz música, faz teatro. Mano é mais novo, ainda é virgem, não tem namorada, está aprendendo violão quando na verdade queria tocar era guitarra, é apaixonado por uma garota bonita que sai com todo mundo menos com ele. A história tem pequenos episódios que vão desenvolvendo essa situação inicial, e o mais notável do filme é a espontaneidade que existe nos diálogos, nas ações, no contracenar de uma turma de atores muito jovens, simpáticos, descolados. A maior parte do filme acontece dentro do colégio, e é interessante ver como as aulas são apenas um pano-de-fundo. São algo que acontece ali, mas o que é realmente importante para essa galera (e como isso é verdade!) é o que ocorre no recreio, na chegada ou saída das aulas, nos intervalos, até mesmo nas conversas e torpedos trocados durante a aula. O que é o colégio, nessa idade? É um bode que alguém amarrou no meio da sala. Um dia o bode vai ser tirado dali. Enquanto isso, tenta-se aproveitar ao máximo o resto do tempo que não é ocupado pelo bode. Era assim que eu pensava quando adolescente, e algo me diz que, com variantes, é isso que a galera de hoje continua pensando. As melhores coisas do mundo é bom pela fluência narrativa, pela verdade emocional dos atores, pelos diálogos rápidos e criativos, mas acima de tudo porque não fala de drogas e de sexo, mas de escolhas éticas. A todo instante esses garotos e garotas de 14 ou 15 anos estão sendo forçados a fazer escolhas éticas que têm uma importância de vida ou morte para eles. A adolescência é uma idade em que o mundo se acaba dez vezes por dia, e o pior é que no dia seguinte começa tudo de novo.