terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

5036) Brian Stableford, 1948-2024 (27.2.2024)




Uma perda muito triste para a literatura de ficção científica foi o falecimento, dia 24 deste mês, do inglês Brian Stableford, pouco conhecido aqui no Brasil, onde foi pouco traduzido. Há alguns títulos dele naquela antiga coleção de bolso da Ed. Bruguera, que ainda podem ser encontrados nos sebos. 
 
Stableford foi uma dessas máquinas infatigáveis de produzir textos, e o que admira na obra dele é que dentro da espantosa quantidade de livros que escreveu, traduziu, antologizou e editou haja tanta coisa de alto nível. 
 
Era daquela geração de ingleses que cresceu no pós-guerra, já se beneficiando da reconstrução do país mas sentindo pairar, ainda, a sombra do absurdo, a ameaça das novas tecnologias (como a bomba atômica) e o fatalismo ideológico da Guerra Fria. 
 
Uso com frequência um termo que foi popularizado por Stableford em sua obra Scientific Romance in Britain, 1890–1950 (1985). O “romance científico” é uma espécie de contrapartida européia à “ficção científica” que os norte-americanos popularizaram através de revistas como Amazing Stories, Astounding Science Fiction e outras.  




A diferença que Stableford estabelece é que antes do século 20, antes de surgirem os pulp magazines da década de 1920, havia na Europa uma tradição de romance científicos, na qual as revistas norte-americanas claramente se inspiraram, do ponto de vista temático, mesmo que não do ponto de vista estilístico. 
 
Quando Hugo Gernsback criou a revista Amazing Stories em 1926, ele colocou na capa três nomes essenciais, como inspiradores do nosso gênero que ele na época batizou inicialmente de “scientifiction”: o francês Jules Verne (com Off on a Comet), o inglês H. G. Wells (com “The New Accelerator”) e o norte-americano Edgar Allan Poe (“The Facts in the Case of Mr. Valdemar”). 
 
Ao mesmo tempo, a Inglaterra desenvolvia sua própria “narrativa científico-fantástica”, não sob a forma de revistas populares (inicialmente), mas através de romances escritos por autores que não se limitavam a esse gênero de narrativa: H. G. Wells, Edgar Rice Burroughs, Conan Doyle, William Hope Hodgson, M. P. Shiel e outros.
 
O gênero teve uma breve ascensão na virada do século 19 para o 20, uma queda durante e após a I Guerra Mundial, e depois outra breve ascensão no entre-guerras. 



Diz Stableford, em Science Fiction and Science Fact – An Encyclopedia (no verbete “Scientific Romance”, trad. BT):
 
O Romance Científico teve um lento retorno nos anos 1920, mas com aparições apenas ocasionais nas revistas populares, e concentrando-se nos livros. Um revigoramento de sua popularidade após 1930 tem relação direta com a agitação política da Europa, que tornava provável uma nova guerra. O tom dos romances científicos entre 1919 e 1939 ia de um alarmismo estridente até um pessimismo amargo. Os novos autores que deram prosseguimento à tradição wellsiana entre as duas guerras, além de [Neil] Bell e Fowler Wright, incluíam Olaf Stapledon, John Gloag, J. Leslie Mitchell, Katharine Burdekin (que também usava o pseudônimo de Murray Constantine), Muriel Jaeger, C. S. Lewis e Gerald Heard, embora a obra isolada de maior sucesso desse período seja o Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. 
 
Acho importante lembrar sempre esta tradição européia, porque aqui no Brasil vejo algumas pessoas dizerem que “a ficção científica foi inventada nos EUA em 1926”, o que é mais ou menos como dizer que os Beatles inventaram o rock-and-roll. 
 
Tudo que faz sucesso tem mais História por trás. 



Essas correntes literárias, como as correntes marítimas, tendem a convergir e se misturar lá na frente, mas a primeira metade do século 20 teve essas duas tradições com contornos bem marcados, o “scientific romance” na Europa e a “science fiction” dos EUA. Diz Stableford:
 
A diferença mais visível entre as duas, enquanto foram tradições separadas, era a total ausência, no Romance Científico, do mito da “Era Espacial”. Embora esses romances descrevessem expedições ao espaço, eles nunca retrataram tais expedições como o início de uma inexorável expansão colonial. (..) O Romance Científico era também visivelmente mais sombrio do que a FC, em virtude das profundas cicatrizes deixadas na Grã-Bretanha pela Primeira Guerra Mundial. (...) O Império Britânico estava em declínio terminal ao longo de toda a história do Romance Científico, e para os seus praticantes o futuro surgia como um encolhimento e não uma expansão de horizontes, e como um tempo de difícil sobrevivência, em vez de um triunfante progresso. 
 
O viés britânico do livro de BS sobre o “romance científico” foi mais uma questão de foco do que de xenofobia. O interesse pelo fantástico europeu-em-geral sempre esteve presente na sua obra, e produziu outra atividade em que ele praticamente não teve rival na Inglaterra, o da redescoberta e tradução (para o inglês) de obras de FC e do fantástico escritas em francês. 

 
O verbete pessoal dele na Wikipedia lista mais de 500 obras que ele traduziu, muitas delas de escritores pouco conhecidos até mesmo na França, embora na lista apareçam nomes como Rémy de Gourmont, Paul Féval, Camille Flammarion, Villiers de l’Isle Adam, Maurice Renard, J.-H. Rosny Ainé, Richard Bessière, Ponson du Terrail, Albert Robida e muitos outros.
 
Mergulhando nesse gigantesco filão do fantástico continental (como os ingleses gostam de dizer), ele editou também um sem-número de antologias, entre elas The Dedalus Book of Decadence (Moral Ruins) (1990), The Second Dedalus Book of Decadence (The Black Feast) (1992), The Dedalus Book of Femmes Fatales (1992), Tales of the Wandering Jew (1991) etc. 



Stableford foi editor assistente em The Science Fiction Encyxlopedia, que eu considero o trabalho mais confiável no gênero. Depois de duas edições em livro, a enciclopédia hoje está online, e o verbete sobre BS faz um bom resumo sobre sua obra colossal.
 
SF-Encyclopedia:
https://sf-encyclopedia.com/entry/stableford_brian_m
 
Não me lembro de ter lido nenhum romance dele, mas li uma boa quantidade de contos, todos excelentes. Stableford tinha estudos aprofundados em Biologia, e durante muitos anos ele cultivou uma linha de histórias de especulações biológicas, envolvendo mutações, simbioses, engenharia genética e outros processos de transformação, e de criação de tipos de vida inesperados. Um conto dele cujo título sempre me divertiu é “The Growth of the House of Usher” (“O crescimento da Casa de Usher”, em Interzone, # 24, Summer 1988), uma reversão da história de Edgar Allan Poe. 
 
Um autor contemporâneo que explora bem esta linha é Jeff Vandermeer, principalmente com sua trilogia “Comando Sul” (Aniquilação, Autoridade e Aceitação, e mais um quarto volume a sair este ano).







sábado, 24 de fevereiro de 2024

5035) "True Detective 04: Night Country" (24.2.2024)



 
Desde o romance gótico do século 18 a narrativa fantástica começou a opor duas visões do mundo, representadas por dois personagens típicos: o Crente e o Cético. (Às vezes uso um parâmetro mais explicativo: o “Mulder” e a “Scully”.) Em geral, a história termina com as convicções do Cético sendo abaladas e a confirmação de que o sobrenatural existe. Ou pelo menos, quando se encerra sem “bater o martelo”, com um recado indireto, uma advertência de que “existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa filosofia”. 




Tenho interesse especial numa variante desse tipo de narrativa, que mistura a racionalidade do romance detetivesco clássico com a irrupção do irracional no mundo. Este é o tema da antologia que organizei em 2014 para a Casa da Palavra, Detetives do Sobrenatural, onde a mentalidade analítico-científica é posta à prova o tempo todo. 
 
Em True Detective 04: Night Country (escrito e dirigido por Issa López) o Cético é a detetive Liz Danvers: branca, pragmática, autoritária, irritadiça; o tipo que se impacienta diante de qualquer menção a animismo e reage de maneira sarcástica, agressiva. O Crente é a detetive Evangeline Navarro: de raça inuit do Alaska, vigorosa, igualmente pragmática, reservada, compassiva, tentando administrar uma herança nativa incompleta (ela recebeu um nome “evangélico” e desconhece seu nome tribal). 



(Kali Reis e Jodie Foster)

 
Cada época elege temas, imagens, situações recorrentes, que acabam constituindo uma espécie de memória coletiva. Diretores deixam-se impressionar por imagens que viram em outros filmes e acabam trazendo essas imagens de voltam quando dirigem seus próprios filmes – transformadas, retocadas, recompostas. E dialogando umas com as outras. 
 
Às vezes, quando examinamos obras de 100 ou 200 anos atrás, deixamos de perceber certas coisas porque são diálogos com obras que eram contemporâneas ao seu autor – e que hoje ninguém lembra, ninguém sabe, eram obras menores e foram esquecidas. 



(a diretora e roteirista Issa López)

A roteirista/diretora Issa López cita como influências nesta temporada o filme de John Carpenter The Thing (“O Enigma do Outro Mundo”, 1982), onde uma base de cientistas na Antártica é atacada por um alienígena predador e incompreensível. As referências são muitas e óbvias. 
 
Referências narrativas igualmente ominosas vêm da série O Terror (David Kajganich, baseado no livro de Dan Simmons) e do misterioso evento da Expedição Dyatlov, um grupo de cientistas e estudantes russos que morreu nas montanhas da Sibéria. (O detalhe da língua arrancada à vítima é tipicamente Dyatlov. O mesmo para a explicação fajuta das autoridades sobre “avalanche + hipotermia” para a morte do grupo.) 
 
Sobre este caso:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Incidente_do_Passo_Dyatlov
 
Todas as histórias baseadas em regiões polares e geladas acabam se parecendo, mas creio que não seja exagerado notar a afinidade de Night Country com os quadrinhos 30 Days of Night (Steve Niles & Ben Templesmith, 2002), em que vampiros aproveitam os trinta dias sem sol para infernizar um vilarejo do Alasca; e Takla, série islandesa de Baltasar Kormakur e Sigurjon Kjartansson (2021), onde nas vizinhanças de um vulcão gelado começam a aparecer pessoas que haviam morrido mas retornam em carne e osso. 



 
Não são apenas as semelhanças de ambientação gélida, assombrações inexplicáveis, mortes horripilantes. Night Country  mostra uma dupla de she-cops duronas, vulneráveis, antipatizadas por uns e protegidas por outros, numa cidadezinha onde todo mundo se conhece e ambas têm que prestar contas de um passado. Bem na linha de Mare of Easttown (com Kate Winslet) e da xerife com sangue índio (Tamara Podemski) na primeira temporada de Outer Range (aquela série faroeste-fantástico em que Josh Brolin descobre um abismo-portal em sua fazenda). 
 
Toda esta enumeração é apenas para reafirmar o que falei acima: há tipos humanos, situações fantásticas, ambientes insólitos, que reaparecem durante algum tempo em dezenas de obras diferentes, e isto acontece por duas razões principais. 
 
A primeira é que o público reage bem; esses elementos parecem corresponder a algum tipo de arquétipo inconsciente que nos fascina, nos inquieta, nos repele e ao mesmo tempo nos atrai. A segunda é que, pelo mesmo motivo, roteiristas e diretores, quando estão reunidos em torno de uma mesa escolhendo elementos para começar a compor uma narrativa, apontam um deles com o dedo e dizem algo tipo: “Vamos usar isto aqui. Já foi usado, mas ainda pode render pra caramba. Ainda dá pra tirar uma cem coelhos dessa cartola”. 



 
São temas que fazem parte desta imensa paella narrativa que coloca numa tigela imensa o horror, a narrativa policial, a fantasia, a ficção científica. A presença invisível mas opressiva de entidades sobrenaturais que causam o Mal no mundo. A sobrevivência de forças ancestrais que tiveram sua terra invadida e pressionam há séculos para expulsar os invasores. A volta dos mortos, porque nesse sistema de crenças simbólicas nenhuma pessoa morre enquanto existir alguém que pense nela. Os ajustes de contas com erros do passado, que parecem ter sido deixados para trás mas estão à nossa espera na próxima esquina. O choque sempre cruel entre as crenças dos civilizados e as crenças dos primitivos, e não se sabe quais são as mais brutais. A violentação da Natureza pela cegueira predatória de bilhões de criaturas que precisam de comida e água todo dia. 
 
Night Country puxa para si cada um desses temas tão batidos e tão essenciais, e os requenta e os revigora à sua maneira, ao ambientá-los no Alasca, na cidade fictícia de Ennis (talvez uma homenagem a Garth Ennis, autor de Preacher, The Punisher, etc.).




 
O Alasca é um corpo estranho que os EUA ocuparam por motivos estratégicos/geográficos, mas não sabem direito o que fazer com ele. É como uma Lua remota e um tanto lucrativa, habitada por descendentes de astronautas e por humanóides locais, soturnos, desconfiados. São os inuit, nome que aos meus ouvidos roseanos-trocadilhescos guarda ressonâncias de “nuit” (=noite) e de “inoui” (=inaudito, nunca-ouvido, desconhecido).
 
O “night country” do título, o País da Noite, é o labirinto de cavernas geladas onde alguém pode se deparar tanto com um monstro quanto com um laboratório secreto, mantido pelo equivalente moderno das hidras-de-7-cabeças – as megacorporações que transformam em zumbis seus funcionários, seus cientistas, seus executivos todo-poderosos. 



 
“Tsalal”, a estação científica onde ocorre o massacre do primeiro capítulo, é um nome extraído da Narrativa de Arthur Gordon Pym (1838), de Edgar Allan Poe, uma história ambientada na região antártica, perto do Polo Sul. É o nome de uma ilha por onde passam Pym e seus companheiros, nome retomado depois na continuação do livro escrita por Jules Verne, A Esfinge dos Gelos (1897). As séries de TV praticam uma obsessiva referencialidade, em que nomes próprios servem como indicadores de afinidade, de influência, uma espécie de sinalização de que “tudo isto se situa no mesmo universo de idéias”. 
 
Essa referencialidade funciona, em obras de ficção, como as citações bibliográficas num “paper” acadêmico. Podem servir como sugestão de aprofundamento, mas o texto principal precisa ter “sustança”, ou substância. Night Country tem uma boa proposta, uma realização meio atabalhoada (em que “o longo braço da coincidência”, como diria Hercule Poirot, precisa quebrar uma série de galhos), e inúmeras cenas excelentes como pequenas peças dramáticas onde o elenco se mostra à altura. 
 
Os problemas da série são do roteiro: implausibilidade, soluções de conveniência, etc. E quando os personagens pretendem se referir a forças cósmicas, ou a arquétipos cataclísmicos do universo, usam um vocabulário (“o tempo é um círculo plano!...”) ginasiano. Pode soar portentoso a um leitor de horror, mas um leitor de ficção científica cobre o rosto. Esse “mumbo-jumbo” que não diz nada já apareceu em momentos da temporada 01 da mesma série, e na série alemã Dark (que era até muito boa, pelo meu gosto) quando os escritores repetiam sem cessar alguns chavões sobre Espaço e Tempo, mas aparentemente não sabiam direito o que estavam tentando exprimir, se é que estavam. 
 
Night Country, para mim, foi uma boa temporada desta série, até porque não fico cultivando expectativas, pelo contrário. Em termos de verossimilhança narrativa, não está muito distante da maioria do repertório da DarkFlix. O lado humano, dos conflitos inter-pessoais, é o que conduz a narrativa, e com isto ela acaba virando uma alegoria satisfatória do mundo de hoje. 
 
Sabemos que há uma catástrofe tremenda em curso, não entendemos direito suas razões (ou julgamos entendê-las por completo, o que é ainda pior), nos deparamos o tempo inteiro com carnificinas monstruosas e crimes impensáveis, e só nos resta tocar o barco da vida pessoal e do trabalho diário, e aguardar os acontecimentos. Não há nenhuma força superior, boa ou má, tomando conta do mundo. E, como diz Navarro, “estamos todos sozinhos, mas Deus também está sozinho”. 






quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

5034) As minhas vacas (21.2.2024)

 
 


Quando eu tinha doze ou treze anos, na casa em frente à nossa morava um homem que criava duas vacas leiteiras. A casa dele não existe mais, ou melhor, existe no mesmo sentido em que o Maracanã continua existindo no Rio de Janeiro. A estrutura original foi removida, e em seu lugar aplicou-se uma jaqueta arquitetônica, um dente artificial que aproveita a raiz do dente anterior.  
 
Era uma casa larga, de frente para a nossa, mas num nível levemente inferior, porque o Alto Branco é uma colina de inclinação suave, onde tudo desce na direção da Avenida Canal, antes de se reerguer novamente rumo ao centro da cidade. 
 
A poeira do sótão das lembranças me faz às vezes misturar os nomes das famílias que moraram ali, mas ao enfiar a mão no baú da memória o nome que me vem é o de Seu Rodoval. A casa tinha um espaço largo na parte lateral, um beco-coberto, por onde eu e os filhos dele entrávamos para chegar à vacaria, nos fundos. 
 
Ali, tinha um quintal com algumas árvores, com muros baixos e um matagal brabo do lado de fora. E nos fundos da casa havia dois cochos não muito largos onde as duas vacas passavam a maior parte do tempo. Foram poucas as vezes em que me aproximei daqueles seres desmedidos, alienígenas, de corpo maciço e quente, e olhos negros, líquidos, com toda a tristeza e a resignação do mundo. 
 
Eram mansas, e eu ficava brincando com os outros garotos, enquanto algum dos mais velhos pegava a foice, afiava na aresta do degrau de pedra e começava a cortar palma para dar de comer às bichinhas. A palma é um cactáceo (vejam só, eu nessa época já sabia o que era um cactáceo), uma planta achatada e arredondada que serve de alimento ao gado. Como todos os cactos, tem muita fibra, e guarda líquido nos seus internos. A superfície externa tem alguns espinhos pequenos, coisa que a boca da vaca tira de letra. 
 
Zé de Seu Rodoval pegava a foice e ficava fatiando a palma, jogando dentro do cocho ou então estendendo para que a vaca comesse na mão dele. Eu também cheguei a me atrever, peguei um desses pedaços e estendi para a comensal mais próxima. Ela refugou com a cabeça; mas foi para espantar alguma mosca, e então esticou o pescoço e abocanhou prudentemente o pedaço de palma que eu lhe estendia, deixando bem claro que não tinha intenção de arrancar a minha mão resoluta e trêmula. 
 
As vacas eram personagens importantes na economia doméstica da rua, mas não figuravam muito nos meus planos, nem nos planos dos outros meninos, Zé, Boaventura e os mais novos. Nosso negócio era jogar pelada na própria rua, que na época tinha uma extensão de oito ou dez casas e era de terra batida. (Nossa rua só veio a ser calçada pela Prefeitura quando eu já morava fora de Campina, já estava casado e pai.) 




(Rua Estilac Leal, no Alto Branco) 

O jogo de pelada era feito de ponta a ponta da rua e, como sempre, as regras platônicas do futebol eram submetidas ao leito-de-Procusto dos meios de produção da vida real. Por exemplo, de um lado da rua a hipotética “linha lateral” era o mato, e cada bola que um pé puxava de volta dava origem a uma negociação ferrenha, saiu, não saiu. 
 
Do lado oposto era mais tranquilo, porque havia a continuidade dos muros das casas, que eram todas emendadinhas umas nas outras. A bola chutada para aquele lado batia no muro e voltava, então continuava em jogo. 

Quero render minha homenagem (talvez até póstuma) a Zé de Seu Rodoval, que era um cara troncudo, alourado, sardento, com físico de estivador, apesar de naquela época ter menos de vinte anos. Zé não era um craque, mas fez um gol, ali mesmo, em frente às nossas casas, que não esqueci até hoje. 
 
Foi num dia em que ele dominou a bola e partiu para o ataque, foi bloqueado por dois zagueiros adversários – mas nesse instante viu que o goleiro se apavorou e correu para cima deles, na esperança de catar a bola. Zé chutou a bola em diagonal para a linha lateral, ou seja, o muro, onde ela ricocheteou e, numa carambola perfeita, entrou rolando no gol vazio. 
 
Gol mais original do que este, só mesmo o gol de Pedro Beiçola. 
 
Houve uma confusão dentro da pequena área (termo platônico, é claro) quando Pedro Beiçola tentou cabecear, foi empurrado, caiu, a bola bateu lá e cá, e ele, caído quase dentro do gol, estendeu as pernas, prendeu a bola entre os tornozelos, e com um impulso inesperado ergueu as pernas no ar com bola e tudo, e com bola e tudo despencou o corpo para dentro da linha do gol. 
 
Tudo isso aconteceu há cerca de seis décadas, mas serve para mostrar como o futebol é imprevisível, inesgotável, e inesquecível. 
 
Tínhamos a nossa turma, que além de jogar bola gostava de brincar de bandido, de jogar barra-à-bandeira... E lembrei agora do que um dia aconteceu entre Zé e seu irmão Boaventura, que tinha mais ou menos a minha idade. Eles eram uns meninos meio brutos. Eram boa praça mas tinham costume de resolver questão na porrada. E um dia formou-se um alarido na rua, em frente à nossa casa. Minha mãe, que estava na cozinha, foi ao terraço, enxugando as mãos num pano de prato. 
 
Eu estava no quarto lendo, não dei atenção. Ela voltou um tempão depois com a má notícia:  Zé tinha pegado uma briga com Boaventura e deu uma pancada com uma pedra nas costas do irmão, que ficou caído, com suspeita de fratura na coluna vertebral!  Paralisia, pro resto da vida! 
 
Isso me assustou, meti os pés, corri na casa dele para ver, mas não autorizaram, tinham carregado o menino para dentro, a ambulância já tinha sido requisitada. Minha mãe, que vivia um melodrama italiano 24 horas por dia, passou a noite fazendo suas tarefas e suspirando: “Um menino tão bom, tão brincalhão, ficar reduzido a uma cadeira-de-rodas pelo resto da existência!...” 
 
Senti que a ocasião era grave e pedia de mim uma atitude. 
 
Esqueci de dizer que essa fase, dos treze anos, foi a minha fase místico-religiosa. Tudo eu resolvia por meio de rezas e promessas, principalmente os jogos do Treze, que eu assistia no Estádio Presidente Vargas, ou acompanhava pelo rádio da sala, sempre com papel e lápis na mão, para anotar as dezenas (as centenas) de Pai-Nossos, Credos e Ave-Marias que eu prometia a cada ataque do Treze, cada ataque do adversário, cada escanteio, cada falta, cada bola cruzada. 
 
Era uma contabilidade furiosa e muda, porque tudo eu prometia em silêncio, de mim para mim, dez Pai-Nossos, não, quinze! Vinte!  A bola entrava, a bola saía, o placar ia se formando, e no final de tudo eu tinha algumas horas de oração de que me desincumbia de maneira sonambúlica enquanto tomava banho, trocava a roupa, escovava dentes, penteava cabelo, tomava sopa – um murmúrio indistinto como um canto gregoriano, e acelerado como uma narração de jogo por Joselito Lucena da Rádio Borborema. 
 
Habituado a subornar com preces a divindade, resolvi fazer uma promessa para salvar Boaventura do seu destino de paraplégico. Resolvi inovar. Em vez de rezas, fiz uma promessa corajosa: “Para Boaventura ficar bom, prometo ficar um mês SEM LER!”. Formalizei o compromisso com um pelo-sinal e um nome-do-pai, e fui dormir. 
 
Não dormi nada, porque minha consciência cartesiana não deixou. A certa altura, me veio uma pergunta com minha própria voz: “Um mês sem ler? E como vai ser no colégio?!”  Abri o olho no escuro, liguei de novo para Deus e avisei: “Com exceção dos livros do colégio! Tudo bem?”  Deus, como sempre, calou e consentiu. 
 
Meu amigo ficou acamado um tempo, mas a cada dia as notícias eram melhores, ele foi ao hospital, depois voltou, a gente ia visitá-lo, eu ficava conversando no quarto, muito formal, como no tempo em que minha mãe fez cirurgia no Pedro I. Hospital exige gravidade, a gente fica pensando na vida e comendo maçã. 
 
Com uma semana de promessa minha vida tinha se transformado num inferno, porque no meu movelzinho do quarto havia duas ou três pilhas de livros de bolso para ler, era Futurâmica, era Agente Secreto FX-18, era Irving Le Roy... Eu matava a vontade lendo os livros do colégio, até que não aguentei mais. 
 
Convoquei Deus para uma reunião e expliquei: “O senhor deve ter visto que hoje de tarde eu estava lendo a História das Invenções de Hendrik Van Loon e a História da Raça Humana de Henry Thomas. Não são livros do colégio, mas são livros de estudo, certo? Vamos considerar assim: livros de estudo, pode”. 
 
Nunca fui sertanejo, que morre mas não quebra, quebra mas não entorta. Sempre tive esse caráter meio escorregadio, negociador, conciliador, disposto a regatear milagres com Deus desde que fosse para o bem de todos e felicidade geral da nação. 
 
Para encurtar a história, duas semanas depois estava Boaventura lépido e fagueiro correndo atrás da bola, e eu de olheiras fundas sem poder pegar o livro novo de F. Richard-Bessière ou de Bruno Fischer, enganando Deus com a leitura de alguma enciclopédia ou biografia (“livros de estudo”). 
 
E por trás de tudo isto eu chegava ao terraço e via os meninos de Seu Rodoval tangendo e guiando as duas vacas na sua saída eventual para não-sei-o-quê. Ainda hoje não entendo se as vacas são como os cachorros, que todo fim de tarde precisam sair para passear. 
 
E quando eram recolhidas à vacaria eu aparecia novamente ali, para sentir aquele cheiro de palha azeda, aquele cheiro de bosta de vaca que faz bem à saúde, para ver os estremeções da pele com que elas afugentavam algum inseto perfurador, para olhar aqueles olhos cuja expressão eu reencontraria depois nos versos de Caetano Veloso cantados por Maria Bethania, e que eu entendi com profundidade autobiográfica. 
 
Link
https://www.youtube.com/watch?v=shoYZ26Nr6o
 
Eram apenas duas vacas, e nem sequer eram minhas. Tornaram-se minhas porque dos que alisaram com a mão o seu pelo não restam muitos vivos, e me vejo hoje com mais este compromisso, de mantê-las vivas na lembrança de quem bebeu seu leite. 
 
Chamavam-se Estrelinha e Quixabeira. Estrelinha, porque era preta, e tinha a manchinha branca no meio da testa. 
 
Quantas pessoas, neste dia, neste instante, ainda se lembram delas? Meu irmão, minhas irmãs? Os meninos de Seu Luís, os meninos de Fred? Lembro eu, e celebro seus nomes. Não há nada como um nome para ancorar uma lembrança no cais, impedir que ela enfune velas e parta feliz rumo ao lugar para onde todas as lembranças acabam indo, mais cedo ou mais tarde. 

 


 
 






domingo, 18 de fevereiro de 2024

5033) "Anatomia de uma Queda" (18.2.2024)



 
Este filme multi-premiado e muito debatido tem uma porção de qualidades que bastam para justificar esse trelelê todo. Direção (Justine Triet), fotografia, elenco, tudo muito competente, e para mim a prova disto é que comecei a ver o filme às 3 da manhã e só fui dormir quando acabou. Se um filme me prende desta forma, alguma qualidade ele tem. Muitos clássicos e muitos blockbusters já me mandaram para o travesseiro após 15 minutos de teste. 
 
Sandra (Sandra Hüller) e Samuel (Samuel Theis) são um casal de escritores que mora nas montanhas, no interior da França, perto de Grenoble. Ela é acusada de assassinar o marido, que caiu-ou-se-jogou-ou-foi-jogado de um terceiro andar, no chalé isolado em que vivem com o filho, um garoto de 11 que ficou cego após um acidente. 
 
Segue-se uma longa batalha de tribunal, um promotor (Antoine Reinartz) altamente disposto a conseguir uma condenação, uma porção de provas circunstanciais que apontam todas para a culpa de Sandra, e o esforço do seu advogado (que é super na-dele, mas salta aos olhos que é perdidamente apaixonado pela cliente) para tirá-la do buraco.   



(Swann Arlaud, o advogado, e Sandra Hüller, a acusada)


O filho do casal, Daniel (Milo Machado-Graner) é o vértice dessa história toda, e o terror calmo e lúcido do garoto diante dessa ominosa possibilidade (“minha mãe assassinou meu pai”) ajuda a manter toda a narrativa equilibrada sobre esse fio-de-aranha de indecisão. Assassinou? Não assassinou? Essa é a grande questão do filme (há outras, menores, importantes), mas vê-se que desde o princípio (ao que tudo indica) os roteiristas (a própria diretora Triet, com Arthur Harari) decidiram não “bater o martelo”. Não tem resposta final. Eles deixam a interpretação a cargo do público. 
 
Eu tenho um gosto especial por filmes que não dão resposta final, não solucionam o mistério, não carimbam um desfecho dizendo “foi assim, não foi assado”. Por que? Talvez porque quando isso acontece o filme nunca se fecha em nossa mente, a gente leva o filme para casa, dorme com ele, acorda pensando nele... Aos poucos ele vai cedendo lugar a novos acontecimentos, mas sempre que alguma coisa faz barulho aquela luzinha na memória se acende. 



Uma luzinha que se acendeu na minha memória foi Dois São Culpados (“La Glaive et la Balance”, André Cayatte, 1962). Este é um dos mais curiosos filmes de tribunal já feitos. Há um sequestro e assassinato cruel de um garoto. Os dois sequestradores, mascarados, são perseguidos pela polícia e se escondem num farol. A polícia cerca o local, e prende três rapazes que encontra lá dentro (interpretados por Anthony Perkins, Renato Salvatori e Jean-Claude Brialy). 
 
Cada um dos três diz mais ou menos a mesma coisa: “Eu estava aqui no farol, passeando, e de repente apareceram esses dois caras, fugindo de alguém”. Nenhum tem álbi. Todos precisam de grana. O roteiro consegue encaixar bem os detalhes, e cria um ótimo suspense com essa situação inusitada: dois são culpados, um é inocente. Mas qual? 
 
A obra de André Cayatte tem uma porção de filmes de tribunal, e merece uma atenção sob este aspecto: a dificuldade de se saber a verdade quando tudo que temos são testemunhos, impressões pessoais e depoimentos de segunda mão. Como decidir sobre a vida e a morte de uma pessoa, com base no que outras pessoas dizem sobre ela? 
 
Cayatte dirigiu um díptico que nunca assisti, mas parece interessante: Jean-Marc ou La Vie Conjugale (1964) e Françoise ou La Vie Conjugale (1964). Os dois filmes contam a história de um casal sob o ponto de vista do marido (Jacques Charrier) e da esposa (Marie-José Nat). 
 
É sempre isto: a versão de cada um, a narrativa de cada um, a interpretação de cada um. O sistema judiciário ergue as mãos para o céu quando lhe trazem impressões digitais, imagens de câmeras de segurança, mancha de pólvora ou de sangue na mão do suspeito. Sinais mais ou menos inequívocos de que Fulano é culpado. Mas, o que fazer quando não se tem certezas físicas, e é preciso recorrer ao que outras pessoas acham que pode ter acontecido?




Um dos grandes trunfos do roteiro de Anatomia de Uma Queda é seu multi-lingüismo. A esposa é alemã, o marido morto era francês, os dois se comunicam em inglês. Cada palavra pesa. De tempos em tempos o debate se cerra em torno do significado de uma palavra, que o promotor que ouvir de um jeito (como “sedução”) e a testemunha insiste em interpretar de outro. A acusada, Sandra, recebe a determinação de falar em francês, já que o julgamento ocorre na França, mas volta e meia ela pede licença e pula para a língua inglesa para explicar melhor o que sente – e isso bota em atividade os tradutores simultâneos. Quem sai ganhando com a mudança? É golpe? É estratégia? 
 
Acabei me lembrando de um postulado meio radical de George Steiner, citado por Douglas Hofstadter em Le Ton Beau de Marot (1997): 
 
Deste modo, um ser humano pratica um ato de tradução, no pleno sentido da palavra, quando recebe uma mensagem verbal de outro ser humano. (...) Resumindo: no interior de uma língua, ou mesmo entre duas delas, qualquer comunicação humana é sinônimo de tradução. Um estudo da tradução é um estudo da linguagem. (trad. BT) 


 

Neste filme, uma mulher alemã é acusada de matar o marido e tem que se defender em duas línguas estrangeiras, seja o inglês que usava para conversar com ele, seja o francês que é a língua falada pelo juiz, pelo promotor, pela corte em geral. 
 
Para tornar ainda mais movediço esse terreno, tanto ela quanto o marido eram escritores profissionais, inventavam histórias, manipulavam personagens, escreviam coisas que não necessariamente reproduziam seus sentimentos e seus pensamentos. 
 
Um sub-tema acusatório que surge durante o julgamento é o de que ela teria plagiado um livro do marido, livro que ele jogou no lixo por desgosto, mas do qual ela salvou uma idéia “de umas 20 páginas” que desenvolveu mais tarde, criando outra narrativa, um romance de 300 páginas, que foi um sucesso, elogiado pela crítica... E o marido acabou se sentindo prejudicado. Com razão? Sem razão? 



(Antoine Reinartz, o promotor)
 

Anatomia de Uma Queda é um mistério criminal, é um drama de tribunal, é a história do naufrágio de um casamento, mas a costura que une todas estas dinâmicas é a palavra, o modo como se usam as palavras, como elas são cuidadosamente escolhidas para produzir efeitos específicos nas pessoas, e como elas têm que ser exaustivamente analisadas para que alguém possa tomar decisões a partir delas.    
 
Tribunais se fundamentam na palavra, no que é irremediavelmente pronunciado. Vale o que foi dito em voz alta. E gravado em fita magnética. E registrado pelas estenógrafas. Mas (como diz a ré a certa altura) nem sempre o que a gente grita em voz alta numa discussão é a totalidade do que a gente sente. Como diz o bolero: “A gente briga... Diz tanta coisa que não quer dizer...”  O que a gente diz é sintoma do inconsciente, mas o consciente está justamente à procura de um antídoto para isto, está tentando convencer o inconsciente de que ele está errado.  
 
O filme é mais um que mostra como réus e testemunhas se preparam para enfrentar a Corte: sendo interrogados de modo exaustivo pelos próprios advogados, para não serem apanhados de surpresa, para escolherem bem o vocabulário, para evitarem termos que podem servir de “gatilho” para deflagrar uma acusação. 
 
A mescla entre palavra e realidade é mostrada nos trechos em que vemos em flash-back a vítima, Samuel. 

Primeiro, na briga que ele gravou no celular e que é reproduzida para os jurados e o público – só nesse momento a narrativa mostra o marido e a esposa “em carne e osso”, discutindo. No momento da briga física, porém, a imagem volta ao tribunal; ouvimos os baques, as pancadas, mas não temos certeza de quem está batendo em quem, e mais uma vez temos apenas a palavra dela quando diz que o marido, em desespero, estava dando socos no próprio rosto, na própria cabeça. 


 
Depois, é o depoimento do filho, relatando a conversa que teve com o pai no carro, quando o pai lhe aconselhou a ficar preparado para a morte do cão, que era inevitável – e o garoto percebe que era sobre a própria morte que o pai falava. Mas nesta cena ouvimos apenas a voz do garoto. A imagem do pai, em sincronismo labial perfeito, diz o que o garoto nos disse que ele disse. Podemos confiar no garoto?  As “aspas”, as frases atribuídas a outra pessoa, nunca foram tão bem relativizadas como nesta cena. 
 
Acreditar é um ato da vontade, não da razão. Anatomia de Uma Queda mostra que, na ausência de provas físicas, científicas, incontestáveis, temos o direito de acreditar no que nos convém, ou, mais precisamente, no que se harmoniza melhor com as nossas experiências prévias, e com as nossas expectativas futuras. 
 
O filme nos acompanha para casa, após a sessão, e nega a resposta confortável que a maioria dos filmes nos oferece: “Fulano é inocente”, “Fulano é culpado”. Em quantos casos de culpa e inocência, na vida real, temos certeza da verdade? Em quantos casos não acabamos acreditando naquilo em que, para nós, é mais seguro acreditar? 


(Swann Arlaud, a diretora Justine Triet, Sandra Hüller, Milo Machado-Graner)






quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

5032) Há dez mil anos atrás (15.2.2024)




Existe no mundo de hoje uma “Polícia do Idioma” que George Orwell não foi capaz de imaginar quando escreveu a sua distopia 1984, há mais de 70 anos atrás. 
 
É uma polícia – ou melhor dizendo uma milícia, porque eles mesmos resolveram sair prendendo e arrebentando, sem que ninguém os contratasse – que cismou de encontrar erros em tudo que vê pela frente. São as Palmatórias do Mundo, cuja especialidade é castigar quem comete erros. Na verdade, não são fanáticos do acerto, são fanáticos do castigo. 
 
Eu cometo meus erros de português a três por dois, e em geral é por desconhecimento mesmo: eu não sabia que o certo era dizer X e dizia erradamente Y.  Me refiro a erros factuais, indiscutíveis (do meu ponto de vista). Quando me cutucam, corrijo e procuro me lembrar na próxima vez. 
 
Outras vezes são erros que se devem ao que chamamos de pensamento contra-intuitivo. Eu escrevo um errado que me parece certo, e vem uma pessoa e explica que devo escrever um “certo” que ao meu ouvido é errado. Até me esforço, mas não acostumo. Vida que segue. Escrevo como acho melhor. Podem me tirar um ponto na prova. 

O que eu gostaria de comentar agora é um dos termos mais escorregadios da nossa língua, que é o famoso “a’. Nós temos: 
 
1)      O “a” que serve como artigo definido: a porta / a janela / a parede. 

2)      O “a” que serve como preposição: Entreguei o prato a Fulano / minha casa fica a uma quadra do shopping / pergunte isso a minha mãe. 

3)      O “à” com acento grave, indicativo da crase, quando os dois “aa” anteriores se misturam num só: vamos à praia / andar à toa / viagem à França.

4)      E como se não bastasse, temos o “há” do verbo haver, que se pronuncia igual aos três anteriores: escrevi isto há um ano / há muita gente esperando / isto é tudo que há na gaveta. 
 
Uma maioria respeitável da população brasileira, comigo no meio, de vez em quando escorrega ao lidar com esses sósias. 
 
Uma coisa que sempre me incomodou foi redigir frases assim: Gosto de computador, mas também gosto de escrever a mão. Penso logo que esse “a” tem função de artigo. Eu estou escrevendo alguma mão? Mão de quem? Estou desenhando uma mão? Por isso prefiro escrever, para deixar tudo mais claro: Gosto de escrever à mão.  Mesmo que não haja nenhuma razão gramatical para esse acento. 
 
É o mesmo caso da expressão “à distância”: Fiquei observando tudo à distância, sem ser percebido. Tecnicamente falando, esse acento só deveria aparecer se eu estivesse me referindo a uma distância clara, precisa: Observei tudo à distância de vinte metros.  Mas continua parecendo estranha, aos meus olhos e ouvidos, uma frase assim: Não tenho muita simpatia com o ensino a distância. 
 
Transcrevo a explicação (que bate com a minha impressão pessoal) do websaite Língua Brasil, com o respectivo link:
 
https://www.linguabrasil.com.br/nao-tropece-detail.php?id=43
 
--- Tenho certa resistência em grafar ensino a distância, sem o acento grave indicativo de crase, como é comum encontrar nos documentos exarados pelo MEC. Alguns autores classificam tal ocorrência como crase facultativa. Podia comentar? Prof. José T. B. Neto, Umuarama/PR 
 
RESPOSTA – Não está errado o Ministério da Educação. Mas eu, assim como o professor, prefiro usar o acento – nessa e em outras locuções adverbiais femininas que indicam circunstância. O motivo é que a ausência do acento pode deixar o texto ambíguo. Em “ensinar/estudar a distância”, por exemplo, fica-se com a impressão de que é a distância que está sendo ensinada ou estudada. É o mesmo caso de viu a distância, escreveu a distância, curou a distância, fotografe a distância, permanece a distância [= a distância permanece] e assim por diante, que parecem melhor quando craseadas: viu à distância, escreveu à distância, curou à distância, fotografe à distância, permanece à distância. 
 
Em casos assim (vejam como a Língua é uma coisa curiosa) o acento grave não indica a crase – indica apenas que aquele “a” é uma preposição. Intuitivamente, o brasileiro vê o “a” sozinho como artigo (“convidei a comadre Sebastiana”), e quando sente que o “a” é preposição tem o impulso (geralmente equivocado) de mandar um acento grave: “já expliquei isso à você”. 
 
Outro caso que me deixa desconfortável é o de expressões como “há um ano atrás”. A regra básica a respeito disto é que quando é uma coisa situada no passado, usa-se “há”: Comprei este carro há quatro anos.  E quando é uma coisa situada no futuro, usamos “a” (preposição): Vou trocar de carro daqui a dois meses. 
 
Segundo os defensores da pureza da língua, esta regra já basta para esclarecer tudo, e portanto é errado dizer: Comprei este carro há quatro anos atrás. É desnecessário juntar na mesma frase a forma “há” e o termo “atrás” – ambos indicam passado, portanto um dos dois é desnecessário. 
 
Quando me cobram isto, eu digo: “É pleonasmo, é reforço, eu estou reafirmando de maneira inequívoca que é um fato passado; é um exagero normal da linguagem, como dizer ‘vi com os meus próprios olhos’.” 



Neste caso, contudo, me parece que a raiz do problema está na linguagem falada. A linguagem escrita, pela diferença gritante de grafia, nos permite distinguir entre “há” e “a”. Mas na linguagem falada, os dois sons são idênticos. Eu digo em voz alta: Comprei este carro há quatro anos, mas, no momento mesmo em que digo, tenho (até eu, o dizente) a sensação de estar dizendo: Comprei este carro a quatro anos. E aí, para reforçar minha intenção correta, coloco o “atrás”, para que não fique nenhuma dúvida de que me refiro a um fato passado. 
 
Certo? Errado?  O critério de certo-e-errado é essencial para a Língua, e se eu não pensasse assim não quebraria tanto a cabeça tentando acertar. Mas há momentos em que mais importante do que o rigor gramatical é a clareza na informação. A comunicação sem mal-entendidos e sem solavancos. A possibilidade do entendimento imediato sem digressões e sem pausas para explicar um detalhe. 
 
O verbo “haver”, tão simpático, é um verbo danado de irregular. Parece ter sido inventado por M. C. Escher – é cheio de esquinas abruptas, desvios inesperados de som, de grafia e de sentido, e todas as vezes que a gente bota ele na conversa se arrisca a ir parar num beco sem saída. Não e de admirar que o brasileiro, em geral, prefira substituí-lo pelo seu primo-pobre, o verbo “ter” quando lhe veste o sentido. Tem muita gente que faz assim, e se safa. 



(M. C. Escher, "Relativity")
 
 




segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

5031) Uma biblioteca ou uma livraria? (12.2.2024)



 
Uma frase famosa de Jorge Luís Borges diz: “Sempre imaginei o Paraíso como uma espécie de biblioteca”. 
 
Borges tinha a inteligência de repetir de tempos em tempos suas melhores frases, para diferentes públicos e em diferentes contextos, pois sabia que esta é a melhor maneira de dar à frase uma vida longa. 
 
Em todo caso, o texto mais confiável e mais conhecido, no presente caso, é o seu comovente “Poema de los Dones”. Os poemas de Borges são republicados em diferentes livros. Tenho versões deste em El Hacedor (1960) e em El Otro, El Mismo (1969). 





 
No poema, ele diz:
 
Lento en mi sombra, la penumbra hueca
exploro con el báculo indeciso,
yo, que me figuraba el Paraíso
bajo la especie de una biblioteca.
(“Poema de los Dones”, 1955) 
 
Ao poema é atribuída a data de 1955. Ele parece ter sido escrito em função de dois eventos: a cegueira definitiva em que mergulhou o escritor, e a sua nomeação para a Biblioteca Nacional, após a queda do ditador Perón, que tanto perseguiu sua família. Ele se refere assim a este período em suas anotações memorialísticas Perfis
 
A por-tanto-tempo-esperada revolução veio em setembro de 1955. Depois de uma noite de ansiedade e insônia, quase toda a população saiu às ruas, aplaudindo a revolução e gritando o nome de Córdoba, onde a maior parte da luta ocorrera. Estávamos tão empolgados que por algum tempo nem percebemos a chuva que nos encharcava até os ossos. 
(Perfis, Ed. Globo/MEC, 1971, trad. Maria da Glória Bordini, p. 112) 
 
Todos conhecemos essas noites e dias de êxtase cívico, e mesmo o sarcástico Borges experimentou estas felicidades quase infantis de tão sinceras. Talvez seja a isto que ele se refere em seu “Outro Poema dos Dons”, uma espécie de “Gracias a la Vida” em que o poeta agradece as coisas que lhe deram alguma alegria, e diz a certa altura: “Gracias quiero dar... (...) por ciertas vísperas y días de 1955”. 
 
(...) Duas amigas minhas, muito estimadas, Esther Zemboraim de Torres e Victoria Ocampo sonharam com a possibilidade de eu ser indicado para a direção da Biblioteca Nacional. (...) Poucos dias antes, minha mãe e eu andáramos até a biblioteca à noite para dar uma olhada no edifício, mas sentindo-me supersticioso, recusei-me a entrar. “Não antes de conseguir o emprego”, disse. (p. 112-113) 
 

(A antiga B
iblioteca, na Rua México)
 

Borges foi nomeado, exerceu o cargo (na antiga sede da BN, na Rua México), mas já estava cego. Estava no Paraíso e fora dele. Como talvez ocorreu com Dante Alighieri, que encontrou no Paraíso a sua amada Beatriz, mas quem sabe, talvez tivesse preferido encontrá-la aqui mesmo, na prisão carnal. 
 
Não escapou ao autor de O Aleph a ironia dessa dádiva contraditória, o recebimento simultâneo de “oitocentos mil livros e a escuridão”. Ele abre o poema citado dizendo: 
 
Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
esta declaração da maestria
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite. 
(trad. Josely Vianna Baptista)
 
É típica da serenidade que Borges procurava manter essa expressão “Ninguém rebaixe a lágrima”: esse “a” não é artigo, é preposição (como em “Foi promovido a diretor”). Desmanchado em prosa vulgar, o verso diz: “ninguém apequene, a ponto de transformar em choro, isto que me aconteceu”. 
 
O detalhe interessante é que “biblioteca”, em inglês, é “library”, e como Borges é abundantemente citado em inglês, muita gente entra em contato com essa frase via língua inglesa ou então via o “inglês-traduzido-ao-pé-da-letra”, essa planta daninha que está invadindo a nossa língua brasileira como a algaroba invadiu o Sertão e o eucalipto invadiu a África do Sul. 


Em A Personal Anthology (Grove Press, 1967), a estrofe é traduzida assim:
 
Within my darkness I slowly explore
the hollow half light with hesitant cane,
I who always imagined Paradise
to be a sort of library.
 
E em consequência de tudo isto as pessoas atribuem ao argentino a frase: “Sempre imaginei o Paraíso como uma espécie de livraria”. 
 
E isto produz um espelhamento interessante dessa idéia, porque livraria e biblioteca são duas coisas muito próximas e ao mesmo tempo opostas.Tirando por baixo, a biblioteca é para quem precisa ler livros de graça, e a livraria para quem pode pagar para ler um livro. 



Há uma certa tentação em ver nessa dicotomia uma oposição entre “comercialismo x não-comercialismo”. Sempre que vejo essa transcrição fico imaginando como seria a livraria do Paraíso. Quem estabelece os preços? E qual o critério? Qualidade? O livro de Borges será vendido por mil dólares, e o meu por cinco? 
 
Livraria e Biblioteca não são empresas antagônicas, antes são complementares, e se ajudam mutuamente. O que há de interessante neste deslize tradutório é o fato de alguém – um leitor de Borges, ou jornalista, ou professor, ou cristão sincero – ser capaz de imaginar o Paraíso como um estabelecimento comercial, onde as recompensas espirituais, da indulgência à beatificação, estão sempre disponíveis, mas é preciso antes dar uma passadinha no caixa. 
 
Afinal, é a isto que está se reduzindo a experiência religiosa entre nós. (Resisto a imaginar que a Borges, o rei do duplo sentido, não terá passado despercebido logo este.)