sexta-feira, 12 de maio de 2023

4941) Minhas Canções: "Chegada" (12.5.2023)




Já escrevi aqui neste Mundo Fantasmo alguns artigos tentando explicar minha concepção do que é rock. Não me refiro apenas ao rock-and-roll ingênuo e cinquentão (=dos anos 50) de Bill Haley e Seus Cometas, mas a tudo que aconteceu depois dele, e de Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, The Clash... Et coetera. 
 
O rock, para mim, é primeiro que tudo uma junção de um elemento branco (a tecnologia eletro-eletrônica) com um elemento negro (a pulsação rítmica). Depois, vêm muito mais coisas; mas eu acho que a base é isso aí. 
 
Ou, como já escrevi algures: 
 
O rock norte-americano é a eletrificação das formas de música rural brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois, as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel” das igrejas batistas da população negra urbana. 
 
Do ponto de vista técnico, as palavras-chave são eletrificação e reprodução-ampliada, porque uma coisa é você tocar um ritmo bem sacudido de forma acústica, alcançando uma platéia de algumas centenas de pessoas, e outra coisa é você tocar o mesmo ritmo sacudido de forma eletrificada, alcançando centenas de milhares – em Woodstock, na Praia de Copacabana, num desses mega-festivais que rolam por aí.
 
Aqui no Brasil, um dos grandes saltos musicais que minha geração presenciou foi o crescimento de uma música eletrificada, feita no Nordeste, tendo por base os ritmos populares como o maracatu, o baião, o cavalo marinho, o coco e por aí vai. É o nosso rock. É a nossa eletrificação do ancestral. 
 
Chamamos de “rock brasileiro” a música feita pelas jovens bandas brasileiras como resposta ao rock estrangeiro: dos Mutantes aos Paralamas do Sucesso, de Renato e Seus Blue Caps à Blitz, da Bolha à Legião Urbana, todos pegaram o som estrangeiro e fizeram com ele o que cabia no seu balanço. Esse Rock-BR (no qual incluo a chamada Jovem Guarda) é uma resposta nossa à síntese norte-americana, injetando nela elementos próprios. 
 
Poderíamos também chamar de “rock brasileiro”, com certa propriedade, essa eletrificação dos ritmos populares. É a nossa síntese. Não somente o maracatu e o coco, mas o samba também. Só que se alguém vai falar de rock brasileiro não vai pensar em samba-rock, não vai pensar em Jorge Ben em primeiro lugar. 
 
Anos atrás, em 2003, fui procurado pela produção do Maracatu Várzea do Capibaribe, do Recife, pedindo uma música para o disco novo. Mandei esta canção, que foi gravada pelo cantor Abissal, acompanhado pelo Maracatu e pela rabeca de outro parceiro, Siba. O CD é Abissal e os Caboclos Envenenados, e dele participam outros talentos como Elias Paulino, Silvério Pessoa, Mestre Barachinha, etc. 
 
O maracatu eletrificado é uma das maneiras que encontramos para inventar nosso próprio rock. Quando Chico Science e a Nação Zumbi começaram a tocar no Brasil inteiro, Ariano Suassuna era Secretário de Cultura, e isso gerou uma infinidade de discussões sobre as afinidades e as desafinidades entre o Movimento Armorial e o Mangue Beat. Ariano, que admirava a pessoa e o talento de Chico, dizia: “Ele mistura o rock com o maracatu, e acha que com isso está valorizando o maracatu, mas está valorizando é o rock, que é muito inferior”. 
 
Não há muito o que discutir, pois acho normal alguém não gostar de rock, ou não gostar de maracatu, e quem diz isso sou eu, que gosto dos dois.
 
O maracatu não tem raízes em Campina Grande. Meu DNA de infância traz a sanfona do forró, a viola dos repentistas, os ganzás dos emboladores; traz o bolero de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra; traz o samba carioca de Miltinho e Roberto Silva e o samba paulista de Adoniran Barbosa e dos Demônios da Garoa, e traz até o rock – porque a minha infância foi carimbada pelo que tocava em rádio, naqueles tempos pré-música-na-televisão. 
 
O maracatu me chegou mais tarde, uma referência distante que vinha se aproximando como um exército de tambores em marcha. Através dos meus parceiros recifenses, como Zeh Rocha, Lenine, Lula Queiroga e outros, aprendi a duras penas a reproduzir a quebrada do bombo – e acabei compondo alguns maracatus, dos quais este aqui foi gravado, e vale como amostra. 
 
 
 
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https://www.youtube.com/watch?v=OxByri35iBQ&ab_channel=ThiagoQueiroz
 
 
CHEGADA (Letra e música: BT)
Gravação: Abissal & Várzea do Capibaribe
 
São tambores de chamada
motores da força e luz
jogando eletricidade nos terreiros.
Guitarras de feiticeiros
vibrando embaixo do som
da avenida que surgiu de madrugada. 
 
São cabeças coroadas
de fumaça de vulcão
e uns olhos de lua cheia na lagoa.
É um milhão de pessoas
no mesmo raio de sol
e o baque dos pés no chão da noite inteira. 
 
Chegou na tela do mundo
chegou na letra da mão
chegou no colo da fera
chegou no X da paixão;
chegou no brilho da faca
chegou no lixo da feira
chegou no arranco do grito
chegou no chão da ladeira;
chegou um rosto e um nome
nascendo dentro de mim
e continuando assim a vida inteira.




(Maracatu Real Várzea do Capibaribe)