sábado, 10 de janeiro de 2009

0735) Quem manda na linguagem? (27.7.2005)



Como todos sabem, o Governo Federal, através de uma de suas proliferantes secretarias, expeliu tempos atrás uma cartilha com expressões a serem evitadas, por serem consideradas ofensivas. O escritor João Ubaldo publicou contra essa tal cartilha um texto que teve bastante repercussão, e não repetirei aqui os argumentos dele, que são mais ou menos os que eu teria a oferecer. O episódio, no entanto, mostra o curioso dilema que vivemos. O que é mais importante numa democracia: a liberdade de expressão ou a guerra ao preconceito? São ideais nobres, mas contraditórios, e para defender um a gente tem que passar por cima do outro.

Li certa vez que nos EUA foi feita uma pesquisa de opinião. A certa altura, perguntava-se: “Todos os homens são iguais?”, e 90% das pessoas responderam que sim. Depois de algumas páginas, vinha outra pergunta: “Os negros são iguais aos brancos?”, e aí 92% responderam que não. O mais engraçado é que eu provavelmente teria caído na pegadinha. Ao ver a primeira pergunta, eu pensaria se todas as pessoas (“homens” aí englobando toda a espécie humana) são iguais diante de Deus (o que me parece óbvio) e da lei (o que pelo menos está na Constituição). No segundo caso, contudo, foi sugerida uma imagem visual, e basta visualizá-la para considerar que, nos termos propostos (uma pessoa com a pele preta é igual a uma pessoa com a pele branca?), o primeiro impulso é responder que não. É como se dissessem: os gordos são iguais aos magros?

Depois da ditadura militar, criou-se o mito de Liberdade, que já questionei muito aqui nesta coluna (p. ex., “O fantasma da liberdade”, 27-4-2004, “Liberdade demais atrapalha”, 28-4-2004, etc.). Fala-se que a liberdade é um valor absoluto, inquestionável – o que me parece um absurdo. A população que consegue ler jornal e revista, esta classe média que se julga a herdeira do mundo, encrespa quando se depara com o menor obstáculo: “Mas isso é um absurdo! Estão querendo restringir a nossa liberdade!” Quando você vive num “Capitalismo Selvagem sob Ditadura Militar”, os valores mais apregoados são a Segurança e o Patriotismo. Quando a coisa começa a feder, os militares saem de fininho (dizendo aos políticos civis: “Agora é a vez de vocês, e quando estragar, se virem”), e passamos para o “Capitalismo Selvagem Regulamentado por Lei”. E a palavra de ordem é Liberdade e Cosmopolitismo. Ou seja: todo mundo (empresas, principalmente) é livre para fazer o que quiser, é só ter na mão deputados e senadores suficientes para aprovar uma Lei autorizando.

A liberdade de expressão é sempre a liberdade de expressão daqueles que têm poder bastante para se impor pelas armas ou pelas leis. Liberdade “tout court” não existe. Liberdade de imprensa está sempre a serviço dos interesses de um grupo, mesmo que seja o mais puro e bem-intencionado dos grupos. Liberdade e Ordem são dois extremos: a vida está no equilíbrio entre os dois.

0734) O gato de Schrodinger (26.7.2005)



O “princípio da incerteza” é um dos conceitos mais discutidos da discutidíssima Física do século 20, e diz respeito à nossa dificuldade em observar e medir o comportamento das partículas sub-atômicas. Para ilustrá-lo, o físico Erwin Schrodinger concebeu um experimento. Certas substâncias radioativas têm exatamente 50% de probabilidade de emitir radiação no período de uma hora. O estado dessa substância depois de uma hora de iniciada a medição pode ser descrito através de uma equação matemática que expressa essa possibilidade dupla, este ser-ou-não-ser, este haver-ou-não-haver radiação.

Schrodinger sugeriu que puséssemos um gato vivo numa caixa fechada, e que a emissão radioativa desencadeasse um mecanismo que mataria o gato. Uma hora depois do gato posto ali, a equação matemática que descreve o experimento nos diz que o que há dentro da caixa é um gato metade morto, metade vivo. As duas possibilidades se equivalem, e só ao abrirmos a caixa, e constatarmos o que aconteceu, faremos com que uma delas se concretize e a outra se evapore. Enquanto a caixa não for aberta (enquanto o observador não interferir com o fenômeno observado) é preciso ficar lidando com o conceito de um gato meio-morto, meio-vivo.

A parábola do “Gato de Schrodinger” (porque pra mim isto é uma parábola equivalente às do Novo Testamento) é um exemplo do curioso mundo da Física Quântica, onde não existem realidades, e sim probabilidades, e é nossa interferência quem faz essas probabilidades se inclinarem numa ou noutra direção. Eu posso sugerir outras parábolas igualmente eficazes (corrijam-me os físicos, caso eu esteja errado).

Por exemplo, a parábola do Pênalte Decisivo. Na decisão do Campeonato, o time A joga pelo empate para ser campeão; o time B, pela vitória. O jogo está 0x0 e no último minuto (já incluídos os descontos) é marcado um pênalte a favor do time B. Ou seja: se o pênalte for convertido, B é campeão; se for desperdiçado, A é campeão. Talvez as probabilidades não sejam rigorosamente iguais. É mais fácil converter um pênalte do que perder; mas imaginemos também o nervosismo do cobrador... Enfim: a equação matemática desse momento do jogo proclama a existência sólida, palpável, com 50% de chances para cada lado, de dois Universos contraditórios e mutuamente excludentes (ou seja, um não pode existir ao mesmo tempo que o outro): A campeão, B campeão. A bola foi colocada na marca, o goleiro retesa o corpo e abre os braços, o atacante começa sua corridinha rumo à bola...

É um momento quântico. Duas probabilidades inconciliáveis são, naquele instante, absolutamente possíveis, e estão coexistindo no mesmo espaço físico. Dentro de alguns segundos, uma delas será real, a outra desaparecerá para sempre. É assim o mundo da matéria. Cada vez que observamos algo, fazemos com que uma coisa “tenha acontecido”, e todas as outras probabilidades “tenham deixado de acontecer”.

0733) A difração quântica (24.7.2005)




Infelizmente o Prêmio Nobel só é concedido em vida, e imagino que minhas principais contribuições à Ciência só sejam devidamente avaliadas daqui a um século. É pena, mas não me incomoda, porque é pelo bem da Humanidade que tenho estas idéias. 

A mais recente delas consta de uma conferência intitulada “Concerning Quantum Diffraction at the Peripheral Regions of Consciousness”, porque conferências deste nível, claro, são proferidas em inglês, para platéias internacionais. Em português, daria algo como “A Propósito da Difração Quântica nas Regiões Periféricas da Consciência”.

O princípio básico é simples: a existência dos objetos materiais (incluindo seres humanos) está na razão direta do número de mentes que se relacionam com eles. Trocando em miúdos: quando mais pessoas agem em função de algo, mais concreto e real este algo se torna. 

Tive esta idéia certa vez em Olinda, quando saí com uns amigos e parei numa ruazinha onde havia quatro bares, quase lado a lado. Três deles estavam repletos de gente, mesas cheias, calçadas cheias, rapaziada tomando cerveja encostada nos carros. O quarto bar (que na verdade era o terceiro, pela ordem) estava vazio: mesas imaculadamente brancas, garçons de braços cruzados olhando o movimento lá fora. 

Entramos num dos bares (havia uma mesa à nossa espera) mas não me contive e perguntei por que não íamos para “aquele outro bar, vazio, aqui ao lado”. A resposta foi: “Que bar?”. Ninguém o tinha visto. Era um bar novo, que tinha acabado de abrir, e ninguém tinha se dado conta da existência dele.

Direis agora: “Tresloucado amigo! Isto aconteceu há mais de 20 anos, quando vivias na farra, enchendo a cara sabe Deus do quê!” E eu vos direi: “Claro, mas é uma observação empírica, primeiro critério de qualquer demonstração científica que se preze”. 

A banca de revistas na esquina continua a existir porque todo dia a vemos, a reconhecemos, vamos até lá, compramos o “Jornal da Paraíba”. E nossos vizinhos, e os transeuntes casuais, fazem o mesmo. Isto reforça a realidade dessa banca, aumenta a probabilidade quântica de que na manhã seguinte ela esteja lá, como sempre esteve.

Quer uma prova? Moradores de rua. Ninguém os conhece, ninguém na verdade os vê. 

Faça um teste. Olhe para aquele canto: há um casal de velhos deitado sobre folhas de papelão. Tire a vista por dez segundos, olhe de novo: há uma criança roendo um pão seco. Tire a vista, volte a olhar em um minuto: há três meninos cheirando cola. 

No espaço de segundos, essas criaturas são aleatoriamente substituídas, por um mecanismo quântico do Universo. Bilhões de criaturas geradas randomicamente, nenhuma das quais se fixa, nenhuma se mantém existindo – porque não as vemos, não as registramos e (bora, rapaz, fala a verdade) tiramos a vista delas com a secretíssima esperança de que quando olharmos de novo elas terão sumido para sempre, sem que a gente precise mover uma palha.







0732) As 7 histórias fundamentais (23.7.2005)



De seis em seis meses, um professor de Literatura ou um roteirista de cinema publica um livro enumerando “As 7 histórias fundamentais”, ou “Os 18 enredos básicos”, ou “As quatro situações dramáticas” ou “Os 11 elementos narrativos”. Variam as quantidades, varia a receita, mas a intenção é sempre a mesma: fazer com as idéias narrativas o mesmo que os químicos fizeram com os elementos, os astrônomos fizeram com os planetas, e os zoólogos e botânicos fizeram com as espécies animais e vegetais. Nestes casos deu certo, em outros nem tanto: aí estão até hoje os coitados dos físicos tentando recensear partículas, e coçando a cabeça ao perceber que ao recenseá-las acabam inventando-as.

Algumas coisas são contáveis, outras não. Aprendemos na escola que algumas grandezas são descontínuas, como maçãs, laranjas e pirulitos; e outras são contínuas, como a areia, a água e o ar (se bem que grãos de areia, gotas dágua, etc., são grandezas descontínuas, e há uma importante sutileza envolvida nesta distinção). Para mim, esse papo de “partículas subatômicas” é um beco sem saída, porque a impressão que tenho é de que o que eles chamam de partícula não passa de um corte transversal numa onda (assim como, na Geometria, um ponto pode ser interpretado como uma linha vista de frente).

Mais inútil ainda é esta tentativa de codificar situações dramáticas ou “plots” básicos. Em alguns casos, surgem rótulos como “Combater o Monstro”, que serve para definir tanto Moby Dick quanto Drácula. Mas para mim estas mesmas narrativas poderiam se encaixar noutros rótulos. Moby Dick poderia, por exemplo, ser classificada como “A Viagem do Aprendiz”: todas aquelas narrativas em que um sujeito jovem e inexperiente (Ismael) se engaja numa viagem ou jornada liderada por indivíduos maduros e experientes, durante a qual alcançará a maturidade emocional e o conhecimento do mundo. A esta mesma categoria pertencem obras (e personagens) como A Companhia Branca de Conan Doyle (a história de Aleine Edricson), O Nome da Rosa (Adso de Melk), O Senhor dos Anéis (Frodo), A Ilha do Tesouro (Jim Hawkins) e Guerra nas Estrelas (Luke Skywalker).

Poucas narrativas se enquadram em apenas uma categoria; geralmente são contos ou fábulas. Narrativas complexas como romances ou filmes têm uma sucessão de temas entrelaçados, e assemelham-se às obras sinfônicas. Mas a tentativa de classificar as situações dramáticas essenciais acaba nos mostrando que algumas delas se repetem em obras de natureza muito diferente – como Inteligência Artificial de Spielberg e o Pinóquio. Mais interessante ainda é quando começamos a descobrir que tais situações são como as partículas sub-atômicas: quanto mais mexemos nelas mais elas se multiplicam, e mesmo as que já conhecemos acabam ficando diferentes quando as olhamos de lado, ou contra a luz. Vamos recenseá-las, não para demonstrar que são poucas, mas para comemorar o fato de serem ilimitadas.

0731) O núcleo duro (22.7.2005)



Conversávamos sobre política, e alguém falou que tal ou tal atitude era típica do “núcleo duro do PT”. Veio a pergunta: “Aliás, que história é esta de núcleo duro? Por que este nome?” E o filho adolescente de um dos caras, que estava por perto, perguntou curioso: “Esse negócio de núcleo duro é o mesmo que hardcore?” Acharam graça, mas o garoto estava coberto de razão. A palavra “hardcore” (“hard”, duro; “core”, núcleo) é freqüentemente associada a rock-and-roll, mas é um conceito amplo que pode se aplicar a tudo. Daí existir pornografia hardcore, ficção científica hardcore, e assim por diante.

“Hardcore” expressa a essência concentrada de alguma coisa, seja um movimento político ou um estilo de arte. É um núcleo duro, resistente, difícil de partir ou de dissolver. Como aquelas frutas cujo caroço parece uma pedra: um pêssego, uma ameixa, uma manga. Esse núcleo duro é a última coisa que se manterá inteira depois de todo o restante da fruta ter sido arrancado, mastigado, moído, cortado na faca ou no dente. É a última trincheira, a derradeira fortaleza, o último bastião de resistência. São os fundamentalistas.

Comparar esse núcleo com o caroço de uma fruta sugere também outra idéia. É através desse “núcleo duro” que a fruta se reproduz e a espécie se perpetua. Enquanto um único “núcleo duro” sobreviver, será possível a existência de milhões de frutos. O hardcore é, portanto, o repositório do DNA daquele fenômeno a que estamos nos referindo.

Sou péssimo analista político. Não porque seja burro, mas porque sou crédulo, tudo que ouço num discurso eu acredito. Não vou meter minha enxada torta na seara alheia; há gente muito mais qualificada do que eu para interpretar os fatos políticos mais recentes do país. Mas como minha seara é a da linguagem, quero fazer uma sugestão sobre o termo “núcleo duro”.

A imprensa se refere ao “núcleo duro do PT” como sendo aquele grupo de velhos companheiros que até pouco tempo ocupavam posições na cúpula do Partido e do Governo: José Dirceu, Luís Gushiken, José Genoíno, Silvinho Pereira, etc. Não sei se o tesoureiro Delúbio fazia parte desse grupo, porque voto no PT há vinte anos e só agora ouvi falar nele. O que temos visto nos últimos tempos, contudo, me autoriza a considerar que esses senhores não são o “PT hardcore” de jeito nenhum. Não são o caroço, não são a semente. São, na melhor das hipóteses, a casca: aquela superfície exposta e visível, a primeira a ser descartada depois que alguém abocanha o fruto.

O núcleo duro do PT, ironicamente, abandonou o PT: é aquela rapaziada como Heloísa Helena, Luciana Genro e Babá. Lembro que no ano passado sugeri aos repentistas o mote: “Heloísa, Babá e Luciana: / isto é tudo que resta do PT”. Se alguém expressa o PT, com seus erros e acertos, qualidades óbvias e defeitos evidentes, é esse pessoal. Esses, sim, são o núcleo duro do PT. Os outros, bem, os outros estão demonstrando que são políticos profissionais.