sábado, 14 de fevereiro de 2015

3737) Erro de leitura (14.2.2015)



(ilustração: Debbie Millman)

Falo aqui de vez em quando sobre certos erros ou distrações que acabam nos dando idéias criativas.  Interferências do Acaso, produzindo uma idéia que nunca teria nos ocorrido pelos canais costumeiros.  São muitos os exemplos de coisas que interpretamos erradamente e que equivalem a um ato de criação.  É claro que nem todo erro nos dá uma boa idéia, mas o importante é ficar atento ao processo.  Muita coisa boa já surgiu dele, e o exemplo que cito sempre é “O Evangelho segundo Jesus Cristo” de José Saramago. O livro surgiu depois que ele leu erradamente, ao passar por uma banca de revistas, algumas palavras isoladas, que pareciam formar esse título.  Não era; mas o título lhe pareceu interessante, e o livro todo surgiu daí.

Eu estava assistindo um documentário e no fim apareceu um letreiro, todo em letras caixa alta (maiúsculas), dando informações sobre as pessoas abordadas no documentário.  Dizia que elas estavam “produzindo um ovo”, e que “o lucro com a venda do ovo” seria empregado nisso e naquilo... Prestando mais atenção, percebi que a palavra não era OVO, era DVD.  Um caso parecido foi o do cartaz de uma peça, que li à distância; o título era FREUD (havia um retrato dele) mas eu li FREVO, porque o traçado das letras era muito parecido. (Caberá uma analogia entre o frevo como dança instintiva e o modo como o inconsciente se manifesta?) 

No interior do Nordeste vi uma placa na beira da estrada anunciando o HOTEL PAN DRAMA, título que achei original até perceber que era apenas “PANORAMA”.  Quem também não escapou da minha ficção miópica foi o livro de Laurentino Gomes, “1808” que de longe imaginei ser intitulado “ISOS” e fui olhar de perto para saber que diabo era aquilo.  Mas não é só comigo: meu amigo Pedro Ribeiro comentou um dos meus artigos sobre este tema, “O erro poético”, dizendo que no primeiro relance imaginou ter lido “O perro erótico”, o que não deixa de ser um tema pedindo para ser mais bem desenvolvido. (Alguma alusão inconsciente a “El Perro Andaluz” de Luís Buñuel, será?)

Não é só a vista, é também o ouvido.  Alguém me disse que passou no Largo da Carioca e viu um camelô oferecendo aos brados um “computador do Al Gore”, o que o fez dar meia-volta para checar e descobrir que era “Dual Core”.  Na  Paraíba, a polícia rodoviária executou durante anos a “Operação Manzuá”, nome de uma armadilha para pegar peixes, na qual o peixe entra mas não consegue sair; já vi gente explicando, com a maior segurança, que se tratava da “Operação Mãos ao Ar”. E assim vamos nós, treslendo, tresouvindo, errando e inventando, usando o Acaso como trampolim para o Inesperado, pois “a vida só presta reinventada”.