sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

3434) Manifestações (28.2.2014)



1) Vamos torcer por um Brasil em que a gente tenha projetos-de-futuro diferentes e consiga se tratar com respeito e negociar com sensatez. 2) Os partidos de esquerda costumam sempre se fracionar à esquerda, porque quando crescem não conseguem mais conviver com a própria esquerda.  3) É engraçado você endeusar um vulto histórico, desencantar-se com ele, mas depois sair à rua para defender a estátua dele diante de um bando de milicianos subvencionados. 4) Uma noite de horror e fogueiras sem controle, uma noite de tropeções e queixo arrebentado, uma noite de ácido nos olhos mas de vergonha na cara. 

5) Se a rua é de todos, paciência, é deles também (identificar e demolir a contradição nesta afirmativa; depois recuperar a formulação original, relativizando-a mediante uma superpremissa de natureza ética).  6) Será possível produzir um estado policial meramente através do estímulo a protestos violentos, insuflando-os de fora, de modo a fazer aumentarem, por assim dizer, os anticorpos de combate?  7) Há uma enorme tensão na voz das pessoas que não sabem direito se ficam a favor disto ou daquilo, e uma sede de vingança cega no seu discurso quando finalmente encontram uma posição. 8) Uma multidão é como uma saca de feijão, não há dois indivíduos iguais. É mero preconceito seu achar que um caroço de feijão é igual a outro.

9) Quem nasceu primeiro, o ovo ou a serpente? 10)  As redes sociais funcionam como uma droga no corpo da sociedade, acelerando as sinapses, turbinando os estímulos, e periga a sociedade ficar mais viciada nelas do que os próprios indivíduos.  11) O processo de acanalhamento da política é essencial para manter fora dela todos os que não são canalhas e não gostam de conviver com canalhas, e desse modo os canalhas não precisam proibir a presença destes, pois um dia eles mesmos se afastarão. 12) Liberdade de expressão é o diálogo entre um estudante indócil e um capadócio de cassetete e capacete.

13) O principal objetivo do terrorismo é produzir um anti-terrorismo duzentas vezes maior. 14) Quebrar caixas eletrônicos para agredir os Bancos é como queimar santinhos para dar prejuízo ao Vaticano. 15) E se alguém encostasse o Brasil na parede e pedisse pra ver os documentos?  16) O fascismo não chega de repente como a guilhotina, chega volta-a-volta como o garrote vil.  17) No jornalismo ninguém tem mais credibilidade do que as fontes que cita, e em política ninguém é mais honesto do que os aliados que arregimenta. 18) O diabo é que algum dia isto aqui vai ser lido por um indivíduo fardado que vai acender um cigarro, reler tudo, continuar em dúvida, e depois dizer: “Pelo sim pelo não, traz ele aqui.”


quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

3433) Quando eu era criança (27.2.2014)


(Eu e Tide no carnaval)

Tem um blog impagável (http://coisasqueeuachavaqdoeracrianca.tumblr.com/) onde as pessoas contribuem com suas lembranças de infância, aqueles pequenos equívocos meio absurdos que toda criança comete por não entender direito o mundo dos adultos. Exemplos do blog: “Eu pensava que em hotéis só entravam homens, e em motéis, mulheres”; “Eu pensava que uísque 12 anos era para crianças de 12 anos tomarem”; “Eu achava que sexo oral era de hora em hora e sexo anal de ano em ano”, etc.

Bem... Eu me lembro que eu achava que a Terra boiava solta no espaço, junto com planetas e estrelas, e que por baixo de tudo havia o Oceano Atlântico, que se expandia até o infinito em todas as direções.  Outra: meus pais mandavam ter cuidado com giletes, dizendo que havia perigo de alguém se cortar, etc., de modo que sempre que eu via uma gilete de bobeira eu a pegava, me trancava no banheiro, quebrava-a em pedacinhos, jogava na privada e dava descarga. Quando pequeno, eu ouvira dizer que o Inferno era embaixo do chão, então quando eu via um buraco qualquer na terra eu me agachava para espiar, para ver como era o inferno.

Uma vez perguntei a minha mãe o que tinha dentro do corpo da gente, eu ficava apontando: “E aqui?”, e ela dizia: “O fígado”, etc., até que a outra pergunta ela respondeu distraída “o ovário”, e dias depois eu disse: “Não posso ir pra aula, estou com dor no ovário”. Ainda nos mistérios sexuais, eu lia nos contos da época coisas como “e daquele beijo apaixonado nasceu um dia nosso filhinho...” e imaginava que as mulheres engravidavam com um beijo, o que trouxe um suspense adicional a qualquer filme, pois bastava haver um beijo e eu ficava imaginando que a mocinha ia ser botada de-casa-pra-fora.

Uma vez, ouvindo uma novela de rádio, eu lamentei que não fosse TV para a gente ver as aventuras dos heróis na selva, e minha irmã Clotilde disse: “Não, se fosse TV a gente ia ver uma sala cheia de microfones e as pessoas lendo o texto em folhas de papel”, e eu achei a TV uma decepção. Minha Tia Adiza, que era solteira, morou conosco muitos anos, e como ela todo dia trocava de roupa e ia para o trabalho, tal como meu pai, eu perguntei a minha mãe se Tia Adiza era mulher ou homem.

Durante algum tempo acreditei que quando alguém era condenado a prisão perpétua ele ia para a cadeia e nunca mais morria. Uma vez discuti com Tide sobre a pronúncia do nome Washington, que eu dizia que era Uachínton e ela dizia que era Vasguitón.  Vendo filmes de guerra, eu cheguei à conclusão de que quando dois países entravam em guerra eles mandavam os respectivos exércitos brigar na África, que era uma espécie de continente baldio.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

3432) Entrevista (26.2.2014)



PERGUNTA – Sr. Braulio, o momento atual da literatura envolve impasses que, ao que parece, não estão sendo resolvidos de maneira satisfatória nem pela crítica, que, presa a critérios estabelecidos, demonstra pouca maleabilidade para acompanhar o fôlego criativo dos novos autores, nem pelos próprios autores, que apesar da garra e da adrenalina características das novas gerações tendem a perder de vista o específico literário e a dissipar suas energias em atividades extra-página, por assim dizer, tais como incontáveis sessões de autógrafos, palestras, aparições em talk-show da TV, participações em festas literárias e bienais do livro, realização de oficinas, manutenção de websaites, divulgação nas redes sociais, e todo um conjunto de práticas menos voltadas para a criação literária do que para a divulgação dos resultados dessa mesma criação. Para alguns, trata-se de uma tática de sobrevivência em que a literatura, sempre encurralada nas fatias mais estreitas da divisão do mercado, procura adotar para si uma postura mais agressiva através da ênfase em táticas da publicidade e da propaganda, o que traz a mente a filosofia de trabalho de alguns filmes de Hollywood, que destinam 100 milhões de dólares para a feitura do filme e 150 milhões para a sua divulgação.  Ora, isso acaba criando um aparente impasse entre duas funções paralelas com que qualquer escritor em qualquer época sempre se defrontou, a necessidade de produzir livros e a de divulgá-los, sabendo-se que qualquer uma delas estará sempre subtraindo da outra tempo, esforço e energia. O que se coloca diante dos autores, no entanto, parece ser algo mais complexo do que a mera organização do tempo de trabalho, porque salta aos olhos o fato de que escritores mais afeitos às tarefas propagandísticas do que ao fazer literário parecem estar colhendo frutos mais substanciais do que aqueles que não se sentem muito à vontade em aparições públicas diante de platéias e de câmeras, seja por timidez, seja pela fadiga resultante dos incessantes compromissos, viagens, idas e vindas, etc., seja até por uma compreensível irritação diante da expectativa, que parece também ser típica dos leitores de hoje, de que um escritor seja também uma espécie de showman ou de garoto-propaganda de si mesmo.  O senhor acha que, neste contexto, caberia aos autores em geral uma atenção maior ao desenvolvimento da própria escrita, a fim de que a literatura não venha a se tornar, como parece estar ocorrendo em outras atividades como o próprio jornalismo, um território dominado pelos mais fluentes, os mais extrovertidos, os mais semelhantes aos atores de cinema e de televisão?  RESPOSTA – Sim.


terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

3431) Estação Botafogo (25.2.2014)




O Cineclube Estação Botafogo (sinto muito, só sei chamá-lo assim) está ameaçado de fechar, por dívidas e outros problemas.  Ele foi no Rio de Janeiro, nos anos 1980, o que a Cinemateca do MAM tinha sido quinze anos antes. Multidões superlotavam aquela calçada estreita para rever Blade Runner numa época em que ele não estava acessível na torneira de cada computador. Íamos todos atraídos pelos mesmos filmes, filmes imprevisíveis que imantavam pessoas afins. Foi saindo de uma sessão de Billy Liar de John Schlesinger que encontrei com Homero de Carvalho (hoje na Fiocruz) e o poeta/publicitário Ulisses Tavares, meu “primo”, e pude fazer esta apresentação histórica: “Homero, este é Ulisses. Ulisses, este é Homero”; e fomos tomar cerveja. 

Nos distantes anos 1980 não havia a atual proliferação de bares dali até a Praia de Botafogo, e os poucos balcões disponíveis eram tão disputados quanto as últimas poltronas nas sessões de despedida (quando uma cópia em celulóide cujo certificado de censura estava para vencer era exibida pela última vez antes de ser incinerada. O mundo já foi mais absurdo.)

O Estação, contudo, não é apenas a memória afetiva de todos nós. Era para mim, recém-chegado ao Rio, a revelação de uma realidade empresarial que jamais teria passado pela minha cabeça.  Coincidiu com outras iniciativas da rapaziada carioca que fizeram um sucesso estrondoso, tais como o Circo Voador e o Planeta Diário, todos decolando quase ao mesmo tempo. Era possível fazer sucesso e ganhar dinheiro fazendo o que cada um gostava, e atraindo um público capaz de gostar também e de entender tudo. 

O Estação precisa sobreviver.  O mercado precisa dele, precisa de grupos capazes de criar os sucessos do futuro, e não apenas de realimentar os blockbusters que já chegam pagos lá de fora. Foram as sessões no Estação que fizeram Down by Law de Jim Jarmusch ser batizado em português Daunbailò, porque os fãs não admitiam outro nome.  E senti ali a força que um movimento de fãs, intenso, diversificado, pode exercer num mercado onde se aposta somente no que é “tiro certo”.  Não penso apenas no passado distante; onde mais eu teria podido ver They Live e Holy Motors em 2013, senão ali? 

Festivais, mostras, coleções de livros, revistas de cinema, tudo se expandiu ao mesmo tempo pela existência comprovada e crescente daquele mercado. E as outras salas e outras redes de exibição acabaram sendo beneficiárias desse público. Não é o público do Homem Aranha ou X-Men, mas é um público que hoje permite filmes mais complexos e de apelo menos ruidoso se manterem em cartaz e darem dinheiro inclusive aos concorrentes do Estação.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

3430) Histórias de espiões (23.2.2014)



O romance de espionagem teve seu “boom” a partir dos anos 1960, auge da Guerra Fria, mas já vem de longe. Se brincar, remonta até a Baronesa de Orczy e suas aventuras do “Pimpinela Escarlate” ajudando nobres a fugirem da guilhotina durante a Revolução Francesa.  Muitos escritores ilustres não apenas escreveram romances de espionagem, como também trabalharam como espiões para a Inglaterra – foi o caso de Somerset Maugham na I Guerra Mundial e de Graham Greene na segunda.

É de Maugham o romance Ashenden – o Agente Secreto (1928), na verdade um “fix-up” – conjunto de narrativas unificadas mediante um personagem, tema ou ambientação.  (O livro serviu de base para o filme homônimo de Hitchcock.) O protagonista é um escritor convocado para ajudar o Serviço Secreto britânico na Europa durante a Guerra. Suas missões incluem vigiar pessoas, facilitar contatos, mas também ajudar na execução de um ou outro agente inimigo. Não é uma leitura para os fãs de Ian Fleming ou de John Le Carré, que turbinaram a dramaticidade do gênero em termos de suspense, intensa movimentação, enredos intrincados como armações de xadrez. Maugham se baseou em suas experiências, e o livro tem aquele teor meio vago e inconcluso dos acontecimentos da vida real.

Quem foi grande fã do livro foi Raymond Chandler, para quem (em 1949) o romance de Maugham estava “muito à frente de qualquer outra história de espionagem já escrita”, e chegou a pedir ao seu editor inglês uma cópia autografada (e conseguiu). Disse ele: “É como se houvesse o tempo inteiro algo vago e sinistro por trás das cortinas. Na maioria dos outros livros, você apenas tem medo do cara com um revólver.”

Além do jogo político-ideológico, sempre tenso e interessante, o romance de espionagem, melhor do que qualquer outro, explora essa sensação imprecisa de perigos invisíveis, intenções duplas ou triplas por trás de cada ação, dúvida constante sobre cada personagem. Em Ashenden, a espionagem é o reino do mistério constante, onde o agente segue as instruções sem saber ao certo para que servem, ou o quê, precisamente, está em jogo.

A trilogia recente de William Gibson, da qual já foram traduzidos aqui Reconhecimento de Padrões e Território Fantasma, recupera essa sensação de aventuras individuais arrastadas em conspirações globais invisíveis, as tramas “vagas e sinistras” a que Chandler se refere.  A onipresença da Web como instrumento de manipulação resulta em histórias como “Maneki Neko” (1998) de Bruce Sterling, em que, como Ashenden, o protagonista cumpre ações que não entende, para dar seguimento a uma manobra internacional onde não passa de um simples peão.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

3429) O que não vou ver (22.2.2014)


Peguei um táxi em João Pessoa e fui conversando com o motorista. O celular tocou, ele cortou a ligação, e começamos a falar sobre a utilidade dos celulares. Daí a pouco estávamos imaginando como seriam os celulares do futuro. E nesse momento Zé Antonio, ou Zeca (como ele é mais conhecido) falou: “Quer saber de uma coisa?  Todo mundo tem saudade do tempo antigo, do que já passou.  Pois eu não.  Eu tenho saudade do que eu não vou ver.”  E eu entendi na hora, porque é exatamente isso que eu sinto às vezes: a nostalgia de saber que depois da minha morte o avanço da ciência vai continuar, novas descobertas e invenções vão surgir, coisas interessantes vão pipocar por todos os lados, diariamente, e eu não vou estar aqui para arregalar os olhos feito um menino e dizer: “Eita!”

A saudade é uma sensação de perda (como dizia Pinto do Monteiro – “saudade só é saudade quando morre a esperança”), e não é só o passado irrecuperável que a gente perde, é também o futuro inatingível. E ninguém pode nos proibir de chamar “saudade” a essa angústia pela perda de um futuro que, por definição, vai nos sobreviver. É uma saudade antecipada que brota em quem gosta da vida, quem acompanha as coisas do mundo – seja os campeonatos de futebol, os filmes que ganham o Oscar, as eleições, as conquistas espaciais, os novos livros, as novas músicas... Que infinidade de coisas boas eu não vou perder, somente porque não estarei mais aqui?

Numa coluna de anos atrás (aqui: http://bit.ly/1gAye5F) sobre o Tempo, propus uma definição pessoal: “O Passado é tudo aquilo que ocorreu antes do meu nascimento. O Presente é tudo que começou a ocorrer desde então. E o Futuro é tudo que irá ocorrer após o instante da minha morte.”  Nosso Tempo de vida é um presente contínuo (pois a única realidade que de fato experimentamos é o presente, o aqui-e-agora), inundado de referências do passado e de expectativas pelo futuro.  Quando temos saudade da infância temos saudade de um “passado presente”, pois somos capazes de lembrar dele agora. E quando pensamos no que vamos fazer no ano que vem, é um “futuro presente”, que já nos alegra com suas coisas boas ou já nos influencia com seus problemas.

Futuro mesmo é o que virá depois. Luís Buñuel, em seu livro de memórias Meu Último Suspiro, dizia que gostaria de, depois da morte, poder se levantar do túmulo de 10 em 10 anos, ir à banca, comprar o jornal, e voltar para o cemitério lendo e dando risadas das novas formas da estupidez humana.  O autor de O Fantasma da Liberdade também sentia essa saudade do que nunca chegaremos a ver, dos séculos infinitos cuja porta está para sempre trancada diante da nossa cara.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

3428) A Vida e os Tempos de Mauricinho Caô (21.2.2014)



Cap. 1 – De como Mauricinho Caô nasceu de 7 meses em berço de ouro, e foi criado como príncipe-de-gales até os 7 anos, na mansão de seu pai, dono de uma indústria de semáforos, em Vila Mariana.  

Cap. 2 – De como as incompetências governamentais e a condição de capitalismo periférico em um país subdesenvolvido (segundo o pai dele) conduziram a família à ruína, ao desespero, e a uma casa de um só andar e apenas quatro quartos em Vila Madalena.  

Cap. 3 – De como a “nova vida, mais realista” (segundo a mãe dele) teve influência direta no cardápio, no mobiliário e no figurino de todos da família, menos no de Mauricinho, que, sendo o caçula, continuou sendo tratado a pão-de-ló pelos pais e pelas três irmãs mais velhas e eternamente solteiras. 

Cap. 4 – De como o destino dele foi determinado quando conheceu seu primeiro motel aos 22 anos, ao lado da filha de um deputado, que tinha 38 e era mais fatal do que um Smith & Wesson. 

Cap. 5 – De como Mauricinho esteve à altura desse combate e nos anos seguintes não fez outra coisa senão voltar a travá-lo, com socialites de variada estirpe, até virar assessor em Brasília com belo salário, verba de representação e ajuda-de-custo/moradia.  

Cap. 6 – De como alguém teve a infeliz idéia de conseguir para Mauricinho uma vaga de assessor diplomático de embaixada, logo onde, no Afeganistão. 

Cap. 7 – Dos primeiros doze meses que Mauricinho passou naquele inferno de sol, poeira e novas experiências olfativas.  

Cap. 8 – De como Mauricinho foi raptado sem querer por extremistas talibãs , que nada queriam com ele, queriam apenas a van em cujo portamalas ele se escondeu  ao começar o tiroteio durante a travessia do deserto de Kalamashiri.  

Cap. 9 – De como, descoberto, Mauricinho pediu pelo amor de Alá que não o matassem, e jurou fé no Alcorão com tamanho fervor que os hirsutos e maltrapilhos guerrilheiros se entreolharam, se comoveram, e o cobriram de beijos de solidariedade islâmica.

Cap. 10 – De como a chegada de Mauricinho coincidiu com uma complicada conjunção lunar e sideral que prometia algo como um messias (segundo algumas versões) ou farta colheita de papoulas (segundo outras).  

Cap. 11 – De como Mauricinho deixou a barba crescer, visitou Meca, aprendeu a usar armamento pesado, impressionou os talibãs com seu conhecimento de Geografia, reuniu um exército de dez mil homens e invadiu o Paquistão, onde foi fragorosamente derrotado, conduzido a Guantánamo, interrogado, e, sabe Deus como, perdoado no ato, condecorado pelo presidente Obama, e retornou ao Brasil como representante de uma firma de escuta eletrônica sediada, logo onde, em Vila Mariana.


3427) Autores meticulosos (20.2.2014)




(manuscrito de Kafka)

Li na adolescência uma frase de Kafka que volta e meia recordo. Era mais ou menos assim: “Escrever é trabalhoso.  Quando consigo colocar uma palavra no papel, não tenho senão esta, e tudo recomeça.”  

Para autores assim, como o próprio Kafka, Raymond Chandler, Georges Perec, escrever é como levantar um muro. Tem que fabricar um tijolo. Colocá-lo no lugar. Depois fabricar o tijolo seguinte. E por aí vai.  

É o contrário da impressão que eu tenho de certos autores (Nelson Rodrigues, Henry Miller, Jack Kerouac, Chesterton, Walter Gibson que escrevia a série The Shadow) para os quais escrever é sinônimo de abrir uma torneira: já está tudo pronto para ser escrito, o único trabalho é controlar o fluxo.

De um lado da rua, moram os autores meticulosos cuja escrita é um avanço penoso mas seguro, onde a cada dia de trabalho são produzidas algumas linhas, mas pelo menos se supõe que serão definitivas. 

Na calçada oposta moram os autores fluentes, caudalosos, que redigem dezenas de páginas num dia de atividade veloz e ininterrupta. Estes – descontando-se, sempre, os que visam apenas a quantidade sem qualidade – parecem ter um mecanismo automático de escolha que faz sua prosa fluir sem maiores considerações caso-a-caso. Quase como se, tendo descoberto uma maneira original, espontânea e variada de dizer o que pretendem, eles já a tivessem automatizado a ponto de produzi-la sempre que necessário, sem muita reflexão.

Robert Silverberg (autor de Uma pequena morte, Crônicas de Majipoor) conta que teve duas fases distintas em sua carreira. Na primeira foi de uma produtividade recorde: 

“Eu escrevia com espantosa rapidez, vendendo quinze histórias em junho de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (incluindo uma serialização em três partes) no outro mês.”  

Tempos depois, ele dizia: “Tornei-me como os outros mortais, e tenho que redigir duas, ou três, ou às vezes dez versões de cada página antes de poder fazer a datilografia final.”

Silverberg foi promovido da energia perdulária da pulp fiction para a contractividade criadora da arte. Tornou-se um artista mais denso e mais complexo,  para os que acham que quanto mais cerebral mais artístico – questão ainda em aberto. 

A autoconsciência do autor que recebe o upgrade de uma pulp fiction para uma New Wave paga o preço de uma teorização filosófica para cada frase. Por que este plano e não outro?, perguntava Jean-Luc Godard, brechtianamente, estancando o fluxo do delírio e mandando os diretores pensarem. Por que esta palavra? pergunta Kafka. 

E depois de longas assembléias com seus heterônimos ele concorda que a palavra é mesmo aquela. Escreve-a no papel. E tudo recomeça.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

3426) Lima Barreto: ser doutor (19.2.2014)




Tempos atrás houve um bafafá num edifício residencial do Rio porque um morador, que era juiz ou advogado, discutiu com um empregado do prédio por algum motivo, e se irritou quando o rapaz o chamou de “Seu Fulano” em vez de “Doutor Fulano”. 

O caso foi parar na polícia, na imprensa e nos tribunais, onde finalmente surgiu uma sentença afirmando que ninguém era obrigado a chamá-lo de doutor somente porque ele tinha curso superior. (Há um certo consenso de que “doutor” não é quem é advogado ou médico: é quem tem doutorado, e fim de papo.)

Nesse titulozinho se esconde, por um lado, a empáfia dos bem-nascidos a quem sempre se destinou o ensino superior no país, e, por outro, a ânsia de ascensão social dos humilhados e ofendidos que acham que um anel no dedo e um diploma na parede irão branquear sua pele e europeizar seu sobrenome. 

Ninguém exprimiu com mais ironia essa sofrida ilusão do que Lima Barreto (ele também mulato e pobre) em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), quando o personagem prepara sua ida para o Rio de Janeiro, onde pensa ter garantido um emprego e a possibilidade de custear seus estudos. 

Diz Isaías, no capítulo 1:

“Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor... Nas dobras do pergaminho da carta, traria presa a consideração de toda a gente. Seguro do respeito à minha majestade de homem, andaria com ela mais firme pela vida em fora. Não titubearia, não hesitaria, livremente poderia falar, dizer bem alto os pensamentos que se estorciam no meu cérebro. (...)  Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polifórmicos... (...) De posse dele, as gotas de chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor?”

Não há como não perceber, no episódio do prédio carioca, a razão da ansiedade com que esse bacharel arrogante exigia dos demais o tratamento mágico. Como tantos brasileiros, como o alferes de Machado em “O espelho” (que sem o uniforme tornava-se invisível) ele próprio achava que não era nada, e que só o título poderia resgatá-lo do nada.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

3425) O entretenimento (18.2.2014)



O entretenimento é aquela parte da cultura (“cultura” entendida aqui como “qualquer sinal da presença humana no planeta”) que nada questiona, nada exige: só quer dar prazer.  É uma atividade legítima, mas pode se tornar tão viciante quanto esses tiragostos químicos tipo Cheetos, Pringle, Ruffles, etc.: coquetéis de estimulantes do paladar, concebidos para gerar um consumo compulsivo.

Qualquer entretenimento é cultura, e qualquer atividade cultural pode servir de entretenimento. A música, p. ex., vem servindo como entretenimento “gratuito” através de shows em praça pública, mediante cachês astronômicos.  Se uma prefeitura paga 300 mil reais por um show não vai ter verba para apoiar folguedos populares, realizar festivais de curta-metragem (o “cinema que não dá lucro”), patrocinar mostras de teatro, realizar concursos literários, etc. O tal entretenimento vira um câncer da cultura, crescendo descontroladamente e ameaçando o resto. Ele se expande porque essa é a natureza de qualquer indústria de grande retorno financeiro. No caso dos governos, o retorno é eleitoral: divirta o povo e ganhe o seu voto; faça o povo pensar e você tem um problema em mãos. Sempre foi assim.

Não sou contra o entretenimento. Ele é a beirinha de cultura que resta aos exaustos, aos esgotados, aos embrutecidos por um dia inteiro de trabalho estafante e sem sentido, sem falar nas horas intermináveis de ida e volta nos trens desconfortáveis e nos ônibus repletos. Se eu passasse o dia assim, quando chegasse em casa de noite não ia querer ler um romance difícil. Ia desabar na frente da TV, que ainda é a forma mais simples de coma induzido.

O entretenimento, porém, se esgota em si mesmo, não deixa nada além do alívio momentâneo que produz. Passado o alívio, retornam os problemas de sempre, e continuamos sem saber como encará-los. Existe, porém, uma cultura que encara esses problemas. Para ser apreciada, ela requer a mobilização plena do nosso espírito, da nossa inteligência, da nossa empatia, da nossa emoção, da nossa capacidade de levar a vida a sério e questionar as coisas. 

Não sou contra a festa, mas a vida não é só festa. (A não ser que você seja filho de um milionário mão-aberta.) A festa ajuda a viver, para quem tem uma vida sofrida: perguntem a quem faz maracatu ou coco na Zona da Mata. Mas esse entretenimento pode se adensar em um tipo de cultura que nos envolve de todas as formas, nos estimula e nos desperta aquela inquietação boa de quando a gente começa a intuir respostas para as perguntas importantes da vida. O entretenimento ajuda o tempo a passar mais depressa; a cultura garante que ele não passe em vão.


domingo, 16 de fevereiro de 2014

3424) Os começos de Lovecraft (16.2.2014)




(Ilustração: Abigail Larson)


A gente fala de vez em quando sobre “como começar um conto” (ou um romance), sempre de acordo com aquela idéia de que é preciso fisgar o leitor desde o início, impedir que ele pule adiante e vá ler outra coisa.  

É um conselho que se encontra em muitos manuais respeitáveis de escrita, com exemplos ilustres que volta e meia estou citando aqui; mas para mim é um típico recurso da pulp fiction, da ficção popular voltada para fatos insólitos e adrenalina turbinada. 

H. P. Lovecraft, o criador dos Mitos de Cthulhu, tem alguns exemplos bem típicos, recordados neste pequeno apanhado de D. T. Wynne (http://bit.ly/LIH3yY) sobre algumas aberturas famosas dos seus contos.

Lovecraft começa “O Horror de Dunwich” (1929) dizendo: 

“Quando um viajante que cruza a parte central de Massachusetts toma o caminho errado na encruzilhada da estrada de Aylesbury, pouco depois de Dean’s Corners, ele penetra numa região deserta e intrigante.”  

O conceito essencial da história é que o viajante mergulha no desconhecido sem o perceber, meramente por ter escolhido o lado errado numa bifurcação.  A obscuridade do destino é ressaltada pela precisão geográfica das coordenadas. Tudo é conhecido mapeado, tudo está sob controle, mas... se o cara pegar o desvio errado...

O começo de “The Descendant” (1938) é um dos mais impactantes que conheço: 

“Em Londres existe um homem que grita todas as vezes em que tocam os sinos das catedrais”.  

Mais uma vez o horror e o estranho vêm grudados como sanguessugas a um conceito relativo à ordem (os sinos das igrejas funcionam como relógio, como veículo de mensagens, etc.), trazendo ainda por cima a conotação religiosa.

Um dos seus contos mais famosos, “O Chamado de Cthulhu” (1928) começa com uma de suas frases clássicas de desdém pela Razão: 

“A coisa mais misericordiosa do mundo, creio eu, é o fato de a mente humana ser incapaz de correlacionar tudo quanto ela contém.”  

Para Lovecraft, vivemos num mundo absurdo e maligno, mas felizmente não o percebemos – porque só temos olhos para os fatozinhos banais da nossa vida diária.

Um dos meus favoritos é o começo de “O Inominável” (1939), onde o narrador diz: 

“Estávamos sentados sobre um arruinado túmulo do século 17, ao fim da tarde de um dia de outono no velho cemitério da cidade de Arkham, e estávamos especulando sobre o Inominável”.  

Aqui está, mais do que o terror, o espírito antiquado e seiscentista do autor, e a revelação de seu temperamento. Ele era alguém que, num fim de tarde dourado e tranquilo, sentava-se ao lado de um amigo para remexer nas entranhas do Universo, e descobrir a fonte primordial do Estranho, do Bizarro, do Inesperado.




sábado, 15 de fevereiro de 2014

3423) A testemunha (15.2.2014)



Tive um pesadelo terrível. Eu vinha por uma rua tranquila, e dois carros bateram num cruzamento. Um deles arrancou um samboque do paralamas do outro, mas o motorista manobrou, aprumou o carro e fugiu. A motorista do outro desceu, nervosa.  Pegou a bolsa e tirou o celular para ligar. Nisso um rapaz arrebatou-lhe a bolsa e saiu correndo.  Algumas pessoas o perseguiram, mas ele subiu numa árvore, pulou um muro, acabou fugindo.  Eu me vi minutos depois numa delegacia, como testemunha.

Policial: “O senhor viu o acidente e o furto?”. Eu: “Sim, senhor.”  Ele: “Como foi?” Eu: “Ela ia na preferencial, mas o outro carro avançou, bateu no dela e fugiu.”  Ele: “Que carro era?”.  Eu: “Um carro cinzento, esse cinza-prateado.”  Ele: “Qual era a marca?”.  Eu: “Não sei.”  Ele: “Era de duas ou de 4 portas?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Nacional ou importado?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Tá bom, como era a aparência do carro, o formato dele?”  Eu: “Era um desses carros novos, desenho elegante, carro de passeio mesmo.”  Ele: “E as rodas, como eram?”.  Eu: “Tipo redondas, com pneus.”  Ele: “Quem vinha dirigindo, homem ou mulher?”  Eu: “Não olhei.”  Ele: “Reparou na placa?”. Eu: “Não.”  Ele: “Tá bom. Viu o assaltante roubar a bolsa?”  Eu: “Sim.”  Ele: “Que tipo de bolsa era?”  Eu: “Bolsa de mulher”.  Ele: “Sim, mas que estilo? Era uma dessas Louis Vuitton, ou bolsa comum?”  Eu: “Não sei bem. Pode ter sido uma Louis Vuitton comum.”  Ele: “Por onde o assaltante fugiu?”  Eu: “Subiu numa árvore e pulou para dentro de um muro.”  Ele: “Naquela calçada tem uma mangueira e um flamboiã.  Cada uma dá para um quintal diferente. Em qual das duas ele subiu?”  Eu: “Não sei, são iguais.”  Ele: “O senhor não sabe a diferença entre uma mangueira e um flamboiã?”  Eu: “Não senhor.”  Ele: “Então dane-se, pode acordar.”  Acordei.

O pesadelo consiste no fato de que eu só distingo três tipos de veículo: carro, ônibus e caminhão. Se a elucidação do assassinato de Kennedy dependesse de eu dizer em que marca de carro o assassino fugiu, estaria sem solução até hoje (como aliás está mesmo).  Alguém poderá pensar que não sou muito afeito ao mundo automobilístico por ser um sujeito simples, do interior, próximo à natureza. Mas em termos de natureza eu não distingo nada.  O meu mundo florestal se divide em três espécies: árvore, coqueiro e palmeira, e se insisto no detalhe é pelo orgulho de por volta dos 35 anos ter começado a perceber a diferença entre as duas últimas.  Daí minha admiração pelas pessoas que sabem a diferença entre um Palio e um Vectra, ou entre um juazeiro e uma acácia. Eu lhes perdoo não saberem a diferença entre André Breton e Zé Limeira.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

3422) Jardins imaginários (14.2.2014)



(Ilustração: Roberto Kusterle)

Discutindo um projeto do autor Norman Spinrad, o editor Lou Aronica (Bantam Books) observou que em histórias fantásticas bem sucedidas “a história emocional é realista, não importa se os acontecimentos que produziram as emoções o sejam ou não.”  O que Aronica diz (e que Norman Spinrad aproveita para comparar com o Realismo Mágico latino-americano) é que a semântica da história pode ser fantástica, mas a sintaxe deve ser realista, deve reproduzir a sintaxe das emoções humanas. As pessoas temem o poder de um mago, de um cientista, de um artista genial, porque temem o poder. A pessoa está lá para dar um recheio semântico a essa estrutura. Tensão e descarga. Perplexidade, alumbramento, raciocínio e decifração do mistério. Suspense e resolução. Imagens arquetípicas capazes de despertar o riso, o temor, a compaixão, a simpatia, o entusiasmo. Essa é a sintaxe emocional do romance que, sendo verdadeira, sendo semelhante à da vida, nos torna capazes de entender e aceitar as histórias. Não importa se elas estão povoadas de alienígenas fulvos, magos ectoplásmicos, chapeleiros doidos ou insetos pensantes.

Talvez fosse algo assim que Marianne Moore tinha em mente quando num poema famoso se referiu a “imaginary gardens with real toads in them”, jardins imaginários cheios de sapos verdadeiros. (Mario Quintana referiu-se certa vez a “falsas confidências e sentimentos verdadeiros”, o que é uma fórmula parecida.) Basta a existência vulgar, cotidiana e plebéia desses sapos para pingar um realismo indelével no jardim mais metido a fantasioso.  Eles entram na receita como uma garantia de verdade, um contrapeso de matéria real, irrecusável, do tipo é-pegar-ou-largar. 

Um jardim com sapos é um jardim com surpresas, com armadilhas, com perigos. Não é um jardim para “wish fulfillment”, para a gratificação plena de desejos sem que nenhum preço seja pago.  O que deve ter encantado muitos leitores do fantástico latino-americano é o modo espontâneo como nossos melhores autores conseguem subordinar o jardim aos sapos; dobrar a verossimilhança superficial dos fatos da fábula até deformá-los pela presença dos campos gravitacionais poderosos que são as emoções, as crenças e os impulsos de-dentro-para-fora dos seus personagens.

Existe uma lógica subjacente aos textos de Garcia Márquez, Cortázar, Astúrias, etc., a lógica de uma verdade subjetiva que o leitor aceita, e aceita inclusive quando essa lógica abusa das leis da probabilidade ou rompe as convenções de espaço e tempo. Se o sentimento é verdadeiro, pouco importa o que o provoca.  Se o sentimento é verdadeiro, o que o provoca nem precisa ser possível.


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

3421) O destino do McGuffin (13.2.2014)



 Estive fazendo uma pequena lista dos finais clássicos para história de aventura (inclusive SF, policial, etc.), onde está em jogo um McGuffin qualquer – uma fórmula secreta, código criptográfico, dinheiro roubado, uma obra de arte rara, etc..  Subentende-se que o herói e um ou mais grupos de bandidos disputam para ver quem fica com o objeto. (“McGuffin” é o termo criado por Alfred Hitchcock para designar esses objetos misteriosos, que têm pouco interesse em si mesmos, mas são alvo de uma disputa de vida-ou-morte que movimenta a narrativa. Um McGuffin clássico: O Falcão Maltês.

Um final típico: o herói fica com o objeto, e o entrega às autoridades (no caso de um McGuffin de interesse nacional).  Ou então: o herói fica com o objeto, e o entrega a uma pessoa que tinha direitos sobre ele (a família do falecido dono, etc.).  Estes são dois happy-ends convencionais.

Uma terceira versão seria: o herói ilude tanto os bandidos quanto as autoridades, e fica com o objeto para si.   Este é um final feliz típico de heróis fora-da-lei: Arsène Lupin (de Maurice Leblanc), O Santo (de Leslie Charteris), etc.  Outra variante: Um dos bandidos apossa-se do objeto, tenta fugir, e é destruído junto com ele.  Usado geralmente como um final moralista, “o-castigo-da-ambição”. Também uma maneira prudente de eliminar um McGuffin (em histórias de FC) que, continuando a existir, traria enormes impasses à verossimilhança da história.

Mais uma: O bandido apossa-se do objeto, mas nesse instante percebe que o objeto não era nada do que se imaginava: era algo maligno, ou com sistema-de-proteção, que destrói quem violar seu segredo (os espíritos que saem da Arca, em Caçadores da Arca Perdida).  Um final clássico e muitas vezes realizado com elegância dramática é aquele onde, na luta para ficar com o objeto, ele escapa das mãos de todos e é destruído ou fica inacessível (o dinheiro espalhado na piscina em Gangsters de Casaca, o ouro espalhado no meio da rua em 7 Homens de Ouro).


Variantes meio catastróficas são aquelas onde alguém (o herói ou bandido) ao se apoderar do objeto percebe que ele não vale mais nada (a fórmula está ilegível, o dinheiro é obsoleto e sem valor, o conteúdo do cofre fora esvaziado há séculos, etc.), ou então casos clássicos em que o bandido apossa-se do objeto e, ao perceber que vai ser alcançado pelo herói, o destrói (“Se não for meu, não será de ninguém!”): Conan Doyle, O Signo dos Quatro.  O McGuffin, conforme teorizado por Hitchcock, é aquele elemento essencial à história, sem o qual a história não aconteceria, mas a história nunca é sobre ele, e sim sobre as pessoas que acreditam nele. 


3420) Isqueiros do Vietnam (12.2.2014)


Os soldados norte-americanos que lutaram no Vietnam criaram todo um folclore próprio em torno de drogas, de música, de episódios de combate, etc.  O saite Juxtapoz (http://bit.ly/1gfD0Ug) faz uma interessante exposição dos isqueiros usados por eles durante a guerra, isqueiros onde eles tinham o hábito de gravar seus nomes e postos, além de imagem, frases, etc.  Hoje esses isqueiros (cujos donos morreram ou voltaram para casa, e cujos objetos pessoais se dispersaram) são procurados por colecionadores de “memorabilia”; arranhados, manchados, amassados, são resíduos humanos de uma situação absurda à qual eles tentavam se adaptar da melhor maneira possível, cada um de acordo com seu temperamento.

Um deles grava em seu isqueiro: “A sucking chest wound is nature’s way of telling you you’ve been ambushed” (“Uma ferida aberta no seu peito é o modo da natureza avisar que você foi emboscado”).  Outro isqueiro diz, numa provocação aos vietnamitas: “Let me win your heart and mind or I’ll burn your god damn hut down” (“Me deixe conquistar seu coração e sua mente, senão eu toco fogo na sua maldita choupana”).  Todo soldado em combate precisa dizer a si mesmo o tempo todo que é durão e que não está com medo, mas poucos serão tão assertivos quanto o que gravou no isqueiro: “Yea though I walk through the valley of the shadow of death I fear no evil for I’m the evilest son of a bitch in the valley”; parodiando o famoso Salmo 23, ele diz: “Embora eu caminhe pelo vale da sombra da morte eu não temerei o mal, porque sou eu o filho-da-puta mais mau que tem no vale.”

Não só as bravatas dos guerreiros, existe também um certo menosprezo pelos pacíficos: “We the unwilling, trained by the unskilled, to do the impossible for the ungrateful ten minutes too late” (“Nós somos os relutantes, treinados pelos despreparados, para fazer o impossível em favor dos ingratos, com um atraso de dez minutos”). Outro afirma: “You have never lived till you’ve almost died for those who fight for it life has a flavor the protected will never know” (“Você nunca viveu se nunca chegou quase a morrer por aqueles que lutam; para eles a vida tem um sabor que os que protegemos nunca conhecerão”).

Frases curtas e definitivas: “Fighter by day, lover by night, drunkard by choice, marine by mistake” (“Guerreiro de dia, amante de noite, bêbado por escolha, fuzileiro por engano”). Ou então: “If I ever look like I give a damn call a dog” (“Se em algum momento parecer que eu me importo, chame um cachorro”). E a nostalgia final de algum californiano anônimo numa praia asiática: “You can surf later” (“Você pode surfar depois”).

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

3419) A morte da Rainha (11.2.2014)



(foto: Mike Wells)

Era de madrugada, com uma chuvinha fina, quando bateram com força à minha porta, gritando.  A Rainha estava morrendo, e precisavam de mim. Pulei da cama, enfiei uma roupa às pressas, peguei meus apetrechos e segui o anão uniformizado, com dragonas, capacete e um sabre arrastando no chão.  Ele me acompanhou através do labirinto de becos e ruelas até a ladeira onde, numa casinha de alvenaria modesta, a Rainha estava vivendo após o fim do reino. Ele abriu e segurou para mim o portãozinho do jardim, seguimos a alameda por entre as flores e entramos na casa onde havia luzes acesas e o murmúrio das visitas.

Abriram passagem e eu sentei na borda da cama.  Não a via há duas semanas, e assim que meu olho bateu nela percebi que não duraria mais que algumas horas.  Ela pegou minha mão nas suas, lembrou meu nome, como sempre, contou alguma coisa antiga sobre minha família.  O sacerdote veio, preparou o ritual, arrumou todos em semicírculo. A Rainha apertou minha mão esquerda com força naquela mãozinha esquelética de mulher com mais de cem anos.  Com a mão direita apoiada em minha mesinha portátil, fui escrevendo de uma em uma as Senhas, que o Sacerdote repassava aos presentes, cada qual beijando e guardando a sua entre preces.

Ela lembrou-se de flores e de insetos dos jardins do palácio onde foi menina, falou do seu medo de múmias, reproduziu um gemido de engrenagem de moenda, enumerou famílias, espólios, currículos, recitou versinhos libertinos e resumiu em dez frases uma complexa história de aventuras. A cada trecho ouvido, eu meditava e depois escrevia a Senha, que era rapidamente distribuída; e a cada momento eu percebia na minha mão esquerda a mão dela diminuindo, um galhinho de mato que vai virando um graveto. À medida que ela falava, ia sumindo.  Por duas vezes o Sacerdote aplicou o estetoscópio, e sinalizou para continuarmos. 

Depois de quarenta Senhas ela já não tinha mais de vinte centímetros de altura. A voz era precária mas nítida, e quando ela soava o quarto ficava um túmulo.  Ela ia falando e se esvaindo, como se sacrificasse substância do corpo para que a voz se mantivesse plena. Eu já segurava sua mãozinha entre as pontas do polegar e do indicador, mas a sentia ainda morna, ainda pulsando, e fantasiava que se eu não a estivesse tocando ela já teria sumido.

Morreu antes de sumir; estava do tamanho de um fósforo queimado.  Todos se despediram, prepararam um lanche, aliviados, comeram e foram embora.  Eu e o Sacerdote esvaziamos um porta-jóias, colocamos o restinho dela lá dentro, e quando o dia amanheceu saímos para o jardim e a enterramos junto do relógio de sol.


domingo, 9 de fevereiro de 2014

3418) As estrofes da prosa (9.2.2014)



(Nabokov, O original de Laura)

O último livro deixado (incompleto) por Vladimir Nabokov foi O original de Laura. O livro existia apenas em forma de textos curtos em cartões pautados, essas fichinhas retangulares que a gente encontra em qualquer papelaria, em diferentes tamanhos.  Houve uma polêmica sobre autorização, mas afinal, publicou-se o livro (a edição brasileira é da Alfaguara, tradução de José Rubens Siqueira), com a reprodução de cada cartãozinho manuscrito.

Há escritores que fazem isso atribuindo um número ou sigla para cada episódio da ação, escrevendo-os em cartões e pregando todos na parede, onde é mais fácil brincar com sua ordem cronológica.  Em ambos os casos existe a percepção clara, antes mesmo de começar a escrever, que aquilo é uma unidade em si mesma, algo para ser trabalhado com sua própria sequência de efeitos.  Como acontece com uma estrofe na poesia.

Raymond Chandler também usava cartões, para disciplinar a prosa. Disse ele em 1957: “Eu faço todo o meu trabalho em papel amarelo, folhas cortadas ao meio, datilografadas ao longo do eixo maior, espaço triplo.  Essas páginas devem ter entre 125 e 150 palavras, e são tão curtas que a gente não consegue ser prolixo.  Se não houver alguma substância num trecho desse tamanho, tem alguma coisa errada.”

Chandler talvez pensasse tanto em termos de prosa quanto de enredo, mas mesmo um autor de prosa acelerada e pouco refletida como A. E. Van Vogt costumava dividir suas histórias em blocos de 800 palavras de pura ação; chegado esse limite, era preciso dar uma reviravolta na narrativa.  Van Vogt avisa (no seu ensaio “Complications in the Science Fiction Story”, 1947) que são 800 para ele, mas para outro escritor podem ser seiscentas ou mil. 

Muitos praticantes na FC do século passado tinham essa visão de uma história em blocos. Nenhum a teorizou tão bem como Lester Dent, o criador de Doc Savage, que em 1936 publicou um texto, conhecido como “Master Plot”, que forneceu sua fórmula mágica para histórias em torno de 6 mil palavras (tamanho ideal, achava ele).  Para Dent, a história se dividia em quatro segmentos bem nítidos (que ele explica em detalhe) com 1.500 palavras cada um. Diz ele que depois recebeu 780 cartas de jovens escritores agradecendo-lhe por terem seguido sua fórmula e conseguido vender sua primeira história de pulp fiction. (Sim, tudo isto está na Web.)

Nestes exemplos meio ao acaso dá para perceber que o burilamento do estilo talvez exija unidades bem menores, como as de Nabokov e Chandler, enquanto que a narrativa de pura aventura respira melhor adotando um ritmo de segmentos assim, mais largos, onde ela se desenvolva mais solta.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

3417) O ladrão (8.2.2014)



O ladrão é um personagem clássico das histórias de aventuras.  Meu preferido talvez seja o "Ladrão de Casaca”, Arsène Lupin, criado por Maurice Leblanc, grande sucesso popular da França entre 1905-1935.  Arsène Lupin é o mais intrigante e o mais complexo desses “cambrioleurs” das altas rodas. São indivíduos charmosos e perigosos infiltrando-se entre políticos, nobres e milionários, confrontando todos, travando duelos de morte, aplicando-lhes golpes, e sempre se dando bem. Criptógrafo, boxeador, rei dos efeitos especiais (disfarces e máscaras eram com ele mesmo), Lupin era uma resposta francesa ao inglês Sherlock Holmes, e na obra de Leblanc há mesmo um volume de embates detetivescos entre os dois (sob o nome de Herlock Sholmes, devido a reclamações de Conan Doyle).

Lupin foi o primeiro de uma série de ladrões literários que vivem de roubar diamantes e letras de câmbio valiosíssimas (mas ele não hesita quando tem a chance de levar todos os quadros de um castelo). O Raffles, de E. W. Hornung, era também um desses sedutores jamesbondianos, circulando de black-tie em Mônaco ou cruzando a Sibéria. Uma contribuição norte-americana bem sucedida foi Simon Templar, “o Santo”, criado por Leslie Charteris.  O Santo teve seu próprio pulp magazine (no Brasil, chamava-se Meia Noite); suas aventuras são mais plausíveis (e menos imaginativas) do que as de Lupin.

Ao contrário do guerreiro, cuja função é bater de frente e destruir o outro, o ladrão quer apenas driblar, esquivar-se, ficar sempre um passo adiante da lei, e divertir-se no percurso. Cary Grant no Ladrão de Casaca de Hitchcock (o título brasileiro de To Catch a Thief deve ter sido dado por algum leitor de Lupin) descobre meio surpreso o poder sedutor que o furto e a finta exercem sobre algumas mulheres.  (Praticamente todos os citados até agora foram grandes conquistadores; o inverso de Holmes.) 

Uma variante desse “trickster” são os ladrões hoje popularizados nos videogames onde se atravessam telhados, se acham passagens secretas, se furtam chaves de portões e se tem acesso ao local onde é necessário praticar a façanha. Videogames como Thief (1998-2014, vários títulos) tiram o ladrão dos tempos modernos e o levam para um passado que tem um pé no “Lankhmar” de Fritz Leiber, onde Fafhrd e o Grey Mouser são dois ladrões de capa e espada.  O ladrão cabe em todas as épocas e todas as culturas. Suas aventuras podem ser bélicas ou policiais, sobrenaturais ou criptográficas, mas nelas a violência é uma necessidade do realismo. O objetivo real da história é a antiga arte de entrar onde é proibido, achar o que estava oculto, arrebatar o que era protegido, cuidar do que estava preso.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

3416) As horas de sono (7.2.2014)




(ilustração: Winsor McKay)


Quando eu era pequeno, um dos grandes mistérios do mundo era o que acontecia ao mundo após as 8 da noite.  Essa era a hora em que eu era mandado para a cama. Fui crescendo, o limite foi se ampliando, o mundo foi ficando maior e havia até as noites de festas em que ficávamos todos acordados, a casa toda acesa e cheia de gente, até meia noite ou mais.  

Qualquer pessoa prática dirá que o melhor sono é das dez da noite às seis da manhã. Dormindo-o, devemos acordar com a impulsão de um cavalo de turfe e a energia de um pequinês.  Só que... os que não abrem mão da madrugada não veem problema nenhum em dormir as mesmas oito horas de todo mundo, só que transferindo-as para a faixa das quatro da manhã ao meio-dia.

As indústrias e a eletricidade cortaram o dia em dois.  Antigamente, no tempo das candeias, dos lampiões de azeite, das velas nos castiçais, a noite ocupava quase metade da vida, mas foi sendo retalhada a golpes de incandescência, e hoje, nas grandes cidades, nunca mais existiu a noite intacta, primordial.  O que passa naquele céu é uma noite sonâmbula, insone, esvaída do seu poder em mil filetes de luz. 

Uma pesquisa de Roger Ekirch, professor de História na Virginia Tech (EUA), sugere que no tempo dos nossos trisavós as pessoas não costumavam dormir uma noite ininterrupta.  Dormiam durante três ou quatro horas, depois levantavam, passavam duas ou três horas acordados, e depois deitavam-se para dormir de novo até o amanhecer. 

As referências foram colhidas na literatura, documentos de tribunais,  documentos pessoais, os pequenos registros conservados daquele tempo.  As pessoas falam disso como algo de conhecimento comum e sabido por todos. Um médico inglês escreveu que o melhor momento para estudo e atividades contemplativas era entre o “primeiro sono” e o “segundo sono”.  Chaucer, nos Contos de Canterbury, mostra um personagem indo se deitar para o seu “primeiro sono”. 

E o que faziam nessas horas? pergunta Ekirch no seu livro Day’s Close: Night in Times Past. E responde: o que era de se esperar. Muitos ficavam deitados, às vezes lendo. Outros rezavam; havia preces especiais dedicadas a essa parte do dia.  Outros iam fumar, conversar entre si. 

Esse intervalo era também o momento preferido para o sexo. Outros chegavam a sair para visitar os vizinhos.  Tudo indica que a luz elétrica e a maior segurança foram aumentando a atividade social noturna, e os dois períodos de sono foram misturados em um só.  

Hoje eu vejo pessoas irem dormir cedinho, acordar meia noite, tocar rock até as quatro da manhã, e depois dormir de novo.  Como diria Jessier Quirino, “normal normal normal.”





quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

3415) A Ordem e o Caos (6.2.2014)




As grandes batalhas cósmicas nos romances de Fantasia eram batalhas morais entre o Bem e o Mal.  Variam os sistemas éticos, mas a guerra é essa.  

Aqui, torna-se mais claro um equívoco que muitos moralistas, muitos autores e muitos leitores praticavam, e ainda praticam.  Dizem eles que a luta do Cosmos é para o Bem destruir o Mal.  Está errado.  O Mal faz parte da estrutura atômica e molecular do Bem. Deve se submeter ao Bem, e não a si próprio.  

O Bem não precisa destruir o Mal, aliás nenhum dos dois pode destruir o outro.  Eles têm um equilíbrio como o de cavaleiro e cavalo. O Bem doma o Mal.

Já outras fantasias mostram a batalha entre a Ordem e o Caos. Um trecho do Universo onde exista apenas Ordem (se isso é fisicamente possível!) é um espaço morto, e onde houver apenas Caos, idem idem.  

O mundo é um equilíbrio dinâmico constante entre milhões de sistemas físicos, químicos, biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, etc., interagindo, competindo, cooperando e se influenciando sem parar.  Um sistema estagnado, onde nada acontece, precisa de uma injeção de Caos para voltar à vida.  Um sistema totalmente aleatório, browniano, precisa produzir padrões de estabilidade e de Ordem, para se alimentar deles, captar sua energia, e reinvesti-la de novo.  É assim que as formas físicas crescem.

O Senhor dos Anéis é um misto dos dois. Uma história cheia de discussões morais, claro, onde J. R. R. Tolkien, embora não faça uma alegoria religiosa tão explícita quanto a que seu amigo C. S. Lewis fez na série Crônicas de Narnia, conta uma história de fundo moral. 

Tolkien dá a ela um interessante volteio narrativo: para destruir o símbolo do Mal, é preciso ir de encontro ao Mal, ir à borda do motor ígneo de sua energia, seu núcleo radioativo, a montanha-vulcão de Mordor.  É preciso ir ao coração das trevas. 

Essa luta é também uma luta entre a Ordem e o Caos. De posse do Anel de Poder, Sauron, o Homogêneo, transformará o Universo num “continuum” indiferenciado multidimensional com um buraco-negro no centro. Ele e seu Anel sugarão todo o Poder para esse centro-vórtice onde tudo colapsa em ausência, estendendo atrás de si um manto de entropia exponencialmente maior. 

O Mal é uma monocultura hegemônica. O Bem é feito de pequenas coisas sem objetivos maiores e com necessidades específicas. Hobbits, anões, ents, humanos, elfos, gigantes, cavalos, elefantes, árvores, frutas, as águas dos rios e assim por diante.  

O Bem é a cosmodiversidade. O Mal (Sauron) parece desejar uma Singularidade de pixels cinzentos, parece desejar uma Ordem superior, mas acaba criando o Caos por superconcentração.






quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

3414) O gato fantasma (5.2.2014)




Eu tenho um gato fantasma, que não existe e não está aqui, mas que mesmo assim caminha e se esquiva por entre minhas poltronas, meus livros empilhados no chão, minha cadeira de balanço.  

Às vezes julgo vê-lo como uma mera silhueta esgueirando-se entre uma porta e outra.  Já tirei todas as provas de sua existência para poder ter a certeza que tenho agora.  Ele existe, mas não é um gato desse mundo. 

Uma das experiências cruciais eu a fiz com meus próprios olhos, meio acometidos daquelas manchas escuras internas que dão a impressão de estarem flutuando no ar à nossa frente, só que próximas, desfocadas, boiando na lâmina aquosa do globo ocular, e é por isso que elas se mexem tanto, não como bichinhos que fervilham, mas como borrões flutuantes que os movimentos dos nossos olhos fazem ricochetear sem som de um lado para o outro, batendo, perdendo impulso, como petecas de badminton que são jogadas para longe e cujo voo, mal partiu, desfalece e míngua.  

A experiência consistiu de uma combinação de lâmpadazinha de bolso, espelhos e rebatedores de luz em pontos estratégicos da casa. A luz num certo feixe e num certo ângulo parecia realçá-los, então sempre que eu julgava ver o gato acendia a luzinha e zerava o foco no próprio olho, para ver se havia manchinhas-do-globo-ocular, cujos movimentos eu estava atribuindo a uma assombração.

Não duvido que numerosos casos de fantasmas entrevistos ou pressentidos (seu nome é Legião, porque são muitos) se devam a essas aberrações oftalmológicas, que fazem tal parte de nós que nem temos consciência delas. 

Mas o gato continuou a ser visto de relance: imiscuindo-se para dentro de um armário (que, ao exame, revelou estar sem gato algum); saltando à noite da pia para a geladeira; enrodilhado entre o teclado e o monitor aceso, e sumindo assim que entrei dois passos na sala; desarrumando à sua passagem os vasos de plantas no patiozinho de trás.  

Eu sempre estava perto, mas sempre olhando para outro lado. Quando o pressentia, virava-me, mas me restava somente uma réstia de sua passagem, o lance final de uma ausência que meu olhar descobria.

Como uma sombra sem corpo, ou uma linha negra solta no ar desenhando um gato, ou um fotograma borrado de um movimento de luz que a gente julga ver num aposento vazio.  

Nunca me derrubou um jarro, nunca me rasgou um livro, nunca fez porcarias pela casa afora, nunca morreu como os outros. Vive solto aqui na casa e não solto em lugar nenhum, e todos os dias me presenteia com fugas e esquivas e saltos de cavalo sobre o tabuleiro e teleportes instantâneos, por todos os lugares onde um gato de verdade passaria e onde nada passa mais.