domingo, 12 de maio de 2024

5061) Roger Corman, 1926-2024 (12.5.2024)



 
Poucos cineastas dos EUA me despertam tanta simpatia quanto Roger Corman, falecido esta semana, aos 98 anos. E isto sem ele ter dirigido uma obra-prima sequer, sem nunca ter feito um filme que me produzisse uma impressão profunda. Gosto dos filmes dele, em geral, mas se eu fizesse uma dessas listas de Meus 100 Filmes Preferidos não creio que nenhum deles fosse incluído. 
 
Corman foi diretor, produtor, roteirista, e acima de tudo um apaixonado pelo ofício de fazer e exibir filmes. Há muitos cineastas que têm vontade de dirigir um filme, mas só presta se for um grande filme, um filme admirável, um filme que abale as estruturas... Não era o caso dele. Avaliando sua própria obra, ele vê nela títulos que vão de “ótimo” a “constrangedor”, mas nunca pede desculpas ou se arrepende dos filmes ruins que fez. Por que? Acho que talvez ele dissesse que cinema é como basquete ou beisebol. Num dia você sai ganhando, no outro sai perdendo, o importante é não parar de jogar. 



Filmar era uma espécie de esporte coletivo para Corman, um cara inquieto, sorridente, brigão, extrovertido, arregimentador de pessoas, resolvedor de problemas. Não tinha preconceitos intelectuais, o que significa que podia fazer um filme de tremenda apelação comercial e depois um filme inspirado em Freud, e ver os dois resultados com a mesma empatia. 
 
Se eu tivesse mesmo que escolher algo dele, ficaria com a série de filmes que ele fez usando a obra de Edgar Allan Poe: House of Usher (1960), The Pit and the Pendulum (1961), The Premature Burial (1962), Tales of Terror (1962), The Raven (1963), The Haunted Palace (1963), The Masque of the Red Death (1964) e The Tomb of Ligeia (1964). 




A obra literária de Poe, nesses filmes, passou na esquina e deu tchau. Corman aproveita apenas o título, alguns personagens e situações, e constrói com eles um gênero que eu classifico como “Terror Ornamental”, ou seja, é um filme fantasiado de filme de terror. Não tem a intenção de aterrorizar, apenas de usar os clichês e as convenções do gênero para divertir o público. 
 
Em seu ótimo livro de memórias, How I Made A Hundred Movies in Hollywood And Never Lost a Dime (Da Capo Press, 1998; lançado em 1990), ele narra como seus filmes de baixíssimo orçamento eram feitos. Por exemplo: ele tinha uma verba de 20 mil dólares para cenários, os quais, depois do filme, ficavam guardados no estúdio. Como o filme seguinte começava a ser rodado logo depois (confiram as datas aí em cima), ele somava a nova verba para cenários aos cenários do filme anterior (colunas, arcadas, salões, escadarias, torres de castelo, etc.). E a cada novo filme esses cenários iam se acumulando, de modo que a cada filme a produção parecia ser mais cara, quando na verdade cada um tinha sempre a mesma quantia. 




Stanley Kubrick era famoso por mandar repetir um take cem vezes até ficar satisfeito; nesse mesmo período de tempo Corman rodaria um filme inteiro. Ele era o cara que levava uma equipe de cinco técnicos e cinco atores para fazer um filme de terror em 8 dias, num casarão abandonado. No fim de cinco dias o filme estava rodado e ele dizia: “Vamos aproveitar e fazer outro?!”  Escreviam o novo roteiro em uma noite, e começavam a filmar na manhã seguinte. 
 
Corman foi, de certa forma, um cineasta brasileiro. Sustentou sua barraquinha dentro do estômago do Leviatã de Hollywood. Talvez a única diferença em relação aos nossos udigrudis seja a sua ausência de pretensões intelectuais, de política revolucionária. Ele fez filme policial, de terror, filme de motoqueiro, filme de sacanagem, filme de monstro, sempre com um olho na bilheteria e outro na platéia. E era um homem inteligente, com leituras variadas. 



Um dos seus melhores filmes, para mim, é O Homem dos Olhos de Raios-X (1963). Aliás, não só para mim, mas para meu parceiro Lenine, que adora esse filme a ponto de ter feito uma música inspirada nele: 
 
https://www.youtube.com/watch?v=3JAokd455Vg
 
É a história de um cientista (Ray Milland) que adapta seus olhos para terem visão de Raio-X e depois, desorientado com tudo que vê, perseguido pela sociedade, acaba arrancando-os. O título foi-lhe dado de graça por Jim Nicholson (da AIP, American International Pictures). Corman diz: 
 
Ele é um cientista tentando deliberadamente desenvolver visão raio-X, ou visão expandida. Essa visão vai progredindo cada vez mais até que no fim ele tem uma experiência místico-religiosa, de poder enxergar o centro do Universo, ou o equivalente a Deus. (...) Personagens de muitos dos meus filmes usam óculos escuros: Paul Birch em Not of This Earth, e Xavier, Peter Fonda e Bruce Dern em The Wild Angels. Enxergar, olhos, visãoserá isto um tema que costura meus filmes, ou mera coincidência? Ou será que Prehistoric World é similar a Raio X e a The Trip no sentido de que mostram um homem disposto a explorar o que existe além do mundo visível, limitado?
(How I Made A Hundred Movies..., pág. 117-119, trad. BT)
 
É significativo que um filme de Corman nunca tenha ganho um prêmio importante, mas ele tenha recebido inúmeros prêmios como diretor e produtor. Sua contribuição não é através de obras de alto impacto, mas do impacto reiterado, diversificado, incessante, abridor-de-caminhos, de dezenas de filmes de baixo orçamento onde ele literalmente pegava uma câmera, chamava uma rapaziada e dizia “vamos ver o que sai daqui”. 



Pouco profissional? Não acho. Certa vez, Corman filmou no Sul do Pacífico (um “filme de avião”) sem perder um dia, mas uma equipe que chegou depois da dele enfrentou chuvas torrenciais. Ele explica que sempre teve consigo manuais de pilotos de companhias aéreas, sempre atualizados, indicando as probabilidades de chuva. Quando seu amigo Francis Coppola anunciou que estava indo filmar Apocalypse Now nas Filipinas, ele foi o único a avisar: “Cuidado, a estação das chuvas lá é de maio a novembro.” Não deu outra. 
 
E ainda assim, ele diz que quando estava filmando histórias de aventuras aéreas o roteiro era dividido em três partes: Dia Azul, Dia Nublado e Dia Qualquer Coisa. E se defende: 
 
Eu tinha sete combates aéreos para filmar, e esses livros eram minha bíblia. Quem foi que disse que as batalhas da I Guerra só ocorriam em dia de sol? Ninguém ficava esperando por uma “luz boa”. Mas eu tinha que manter a consistência num mesmo combate, e usávamos os livros para segurar a continuidade. O Dia Qualquer Coisa era para os combates que começavam com céu azul, digamos, e os aviões voavam para dentro das nuvens. Nunca perdi um dia de filmagem, a não ser quando choveu.
(pág. 173) 



 
Sua esposa desde 1970, Julie Halloran, dizia:
 
Na primeira vez em que saímos para jantar, ele disse: “Estou super-ocupado agora, mas em duas semanas minha vida vai estar sob controle novamente.” E isto tem sido a vida da gente desde então. A única coisa que varia é o período em que ele acha que vai ter a vida sob controle de novo; nunca é menos que uma semana, nem mais do que um mês. Mas ele está sempre super-ocupado. 
(pág. 232)
 
Corman definia seu próprio estilo com precisão, sem modéstia, sem empáfia:
 
Com esses filmes eu consegui reunir alguns dos elementos definitivos do meu estilo: enredos surpreendentes a partir de premissas um tanto macabras; cortes rápidos, câmera fluida e móvel; composição visual usando a profundidade de campo; personagens pouco convencionais, bem esboçados; e boas interpretações do elenco dos “Atores Corman”. 
(pág. 62)
 
Diz-se por aí que cada grande cineasta trouxe para o cinema alguma coisa que só ele poderia ter trazido, e ninguém mais. Corman nunca fez grandes tentativas de adentrar o majestoso salão do Cinema de Arte. Foi sempre o artista de rua que fica entretendo o pessoal da fila, enquanto os portões do Big Show não se abrem, e muitas vezes se torna a lembrança mais vívida que aquele público vai levar para casa ao fim da noite. 




Quando estava se preparando para filmar The Trip (o famoso filme em que Peter Fonda experimenta LSD), Corman decidiu experimentar a droga ele próprio. Ele comenta: “Eu sempre andei com uma turma de malucos, e sempre fui o mais careta da turma”. Ele chamou seus melhores malucos e os levou para um parque, perto de uma cachoeira.
 
Resolvi ficar deitado. E então o ácido bateu. Passei as sete horas seguintes de rosto para baixo, no chão, embaixo de uma árvore, sem me mexer, absorvido pela viagem mais maravilhosa que se pode imaginar. Entre outras coisas, tive ali a certeza de ter inventado uma nova forma de arte. Essa nova forma era o mero ato de pensar e de criar, e ninguém precisaria de livros ou de filmes ou de músicas para comunicá-la; qualquer um poderia simplesmente deitar no chão, em qualquer lugar, de rosto para baixo, e a obra de arte seria transmitida através da Terra, da mente de seu criador diretamente para a mente do público. Até hoje acho que isto poderia funcionar, e seria uma coisa maravilhosa. Pense nos custos que poderíamos economizar somente com produção e distribuição!
(pág. 146)