Poucos cineastas dos EUA me despertam tanta simpatia
quanto Roger Corman, falecido esta semana, aos 98 anos. E isto sem ele ter
dirigido uma obra-prima sequer, sem nunca ter feito um filme que me produzisse
uma impressão profunda. Gosto dos filmes dele, em geral, mas se eu fizesse uma
dessas listas de Meus 100 Filmes
Preferidos não creio que nenhum deles fosse incluído.
Corman foi diretor, produtor, roteirista, e acima de tudo
um apaixonado pelo ofício de fazer e exibir filmes. Há muitos cineastas que têm
vontade de dirigir um filme, mas só presta se for um grande filme, um filme
admirável, um filme que abale as estruturas... Não era o caso dele. Avaliando
sua própria obra, ele vê nela títulos que vão de “ótimo” a “constrangedor”, mas
nunca pede desculpas ou se arrepende dos filmes ruins que fez. Por que? Acho
que talvez ele dissesse que cinema é como basquete ou beisebol. Num dia você
sai ganhando, no outro sai perdendo, o importante é não parar de jogar.
Filmar era uma espécie de esporte coletivo para Corman,
um cara inquieto, sorridente, brigão, extrovertido, arregimentador de pessoas,
resolvedor de problemas. Não tinha preconceitos intelectuais, o que significa
que podia fazer um filme de tremenda apelação comercial e depois um filme
inspirado em Freud, e ver os dois resultados com a mesma empatia.
Se eu tivesse mesmo
que escolher algo dele, ficaria com a série de filmes que ele fez usando a obra
de Edgar Allan Poe: House of Usher (1960),
The Pit and the Pendulum (1961), The Premature Burial (1962), Tales of Terror (1962), The Raven (1963), The Haunted Palace (1963), The
Masque of the Red Death (1964) e The
Tomb of Ligeia (1964).
A obra literária de Poe, nesses filmes, passou na esquina
e deu tchau. Corman aproveita apenas o título, alguns personagens e situações,
e constrói com eles um gênero que eu classifico como “Terror Ornamental”, ou
seja, é um filme fantasiado de filme
de terror. Não tem a intenção de aterrorizar, apenas de usar os clichês e as
convenções do gênero para divertir o público.
Em seu ótimo livro de memórias, How I Made A Hundred Movies in Hollywood And Never Lost a Dime (Da
Capo Press, 1998; lançado em 1990), ele narra como seus filmes de baixíssimo
orçamento eram feitos. Por exemplo: ele tinha uma verba de 20 mil dólares para
cenários, os quais, depois do filme, ficavam guardados no estúdio. Como o filme
seguinte começava a ser rodado logo depois (confiram as datas aí em cima), ele
somava a nova verba para cenários aos cenários do filme anterior (colunas,
arcadas, salões, escadarias, torres de castelo, etc.). E a cada novo filme esses
cenários iam se acumulando, de modo que a cada filme a produção parecia ser
mais cara, quando na verdade cada um tinha sempre a mesma quantia.
Stanley Kubrick era famoso por mandar repetir um take cem vezes até ficar satisfeito;
nesse mesmo período de tempo Corman rodaria um filme inteiro. Ele era o cara
que levava uma equipe de cinco técnicos e cinco atores para fazer um filme de
terror em 8 dias, num casarão abandonado. No fim de cinco dias o filme estava
rodado e ele dizia: “Vamos aproveitar e fazer outro?!” Escreviam o novo roteiro em uma noite, e
começavam a filmar na manhã seguinte.
Corman foi, de certa forma, um cineasta brasileiro. Sustentou
sua barraquinha dentro do estômago do Leviatã de Hollywood. Talvez a única
diferença em relação aos nossos udigrudis
seja a sua ausência de pretensões intelectuais, de política revolucionária. Ele
fez filme policial, de terror, filme de motoqueiro, filme de sacanagem, filme
de monstro, sempre com um olho na bilheteria e outro na platéia. E era um homem
inteligente, com leituras variadas.
Um dos seus melhores filmes, para mim, é O Homem dos Olhos de Raios-X (1963).
Aliás, não só para mim, mas para meu parceiro Lenine, que adora esse filme a
ponto de ter feito uma música inspirada nele:
https://www.youtube.com/watch?v=3JAokd455Vg
É a história de um cientista (Ray Milland) que adapta
seus olhos para terem visão de Raio-X e depois, desorientado com tudo que vê,
perseguido pela sociedade, acaba arrancando-os. O título foi-lhe dado de graça
por Jim Nicholson (da AIP, American International Pictures). Corman diz:
Ele é um cientista tentando deliberadamente desenvolver visão raio-X,
ou visão expandida. Essa visão vai progredindo cada vez mais até que no fim ele
tem uma experiência místico-religiosa, de poder enxergar o centro do Universo,
ou o equivalente a Deus. (...) Personagens de muitos dos meus filmes usam
óculos escuros: Paul Birch em Not of This Earth, e Xavier, Peter Fonda e
Bruce Dern em The Wild Angels. Enxergar,
olhos, visão – será isto um tema que
costura meus filmes, ou mera coincidência? Ou será que Prehistoric World
é similar a Raio X e a The Trip no sentido de que
mostram um homem disposto a explorar o que existe além do mundo visível,
limitado?
(How I
Made A Hundred Movies..., pág. 117-119, trad. BT)
É significativo que um filme de Corman nunca tenha ganho
um prêmio importante, mas ele tenha recebido inúmeros prêmios como diretor e
produtor. Sua contribuição não é através de obras de alto impacto, mas do
impacto reiterado, diversificado, incessante, abridor-de-caminhos, de dezenas
de filmes de baixo orçamento onde ele literalmente pegava uma câmera, chamava
uma rapaziada e dizia “vamos ver o que sai daqui”.
Pouco profissional? Não acho. Certa vez, Corman filmou no
Sul do Pacífico (um “filme de avião”) sem perder um dia, mas uma equipe que
chegou depois da dele enfrentou chuvas torrenciais. Ele explica que sempre teve
consigo manuais de pilotos de companhias aéreas, sempre atualizados, indicando
as probabilidades de chuva. Quando seu amigo Francis Coppola anunciou que estava
indo filmar Apocalypse Now nas
Filipinas, ele foi o único a avisar: “Cuidado,
a estação das chuvas lá é de maio a novembro.” Não deu outra.
E ainda assim, ele diz que quando estava filmando
histórias de aventuras aéreas o roteiro era dividido em três partes: Dia Azul, Dia Nublado e Dia Qualquer
Coisa. E se defende:
Eu tinha sete combates aéreos para filmar, e esses livros eram minha
bíblia. Quem foi que disse que as batalhas da I Guerra só ocorriam em dia de
sol? Ninguém ficava esperando por uma “luz boa”. Mas eu tinha que manter
a consistência num mesmo combate, e usávamos os livros para segurar a
continuidade. O Dia Qualquer Coisa era para os combates que começavam
com céu azul, digamos, e os aviões voavam para dentro das nuvens. Nunca perdi
um dia de filmagem, a não ser quando choveu.
(pág. 173)
Sua esposa desde 1970, Julie Halloran, dizia:
Na primeira vez em que saímos para jantar, ele disse: “Estou
super-ocupado agora, mas em duas semanas minha vida vai estar sob controle
novamente.” E isto tem sido a vida da gente desde então. A única coisa que
varia é o período em que ele acha que vai ter a vida sob controle de novo;
nunca é menos que uma semana, nem mais do que um mês. Mas ele está sempre
super-ocupado.
(pág. 232)
Corman definia seu próprio estilo com precisão, sem
modéstia, sem empáfia:
Com esses filmes eu consegui reunir alguns dos elementos definitivos do
meu estilo: enredos surpreendentes a partir de premissas um tanto macabras;
cortes rápidos, câmera fluida e móvel; composição visual usando a profundidade
de campo; personagens pouco convencionais, bem esboçados; e boas interpretações
do elenco dos “Atores Corman”.
(pág. 62)
Diz-se por aí que cada grande cineasta trouxe para o
cinema alguma coisa que só ele poderia ter trazido, e ninguém mais. Corman
nunca fez grandes tentativas de adentrar o majestoso salão do Cinema de Arte. Foi
sempre o artista de rua que fica entretendo o pessoal da fila, enquanto os
portões do Big Show não se abrem, e muitas vezes se torna a lembrança mais
vívida que aquele público vai levar para casa ao fim da noite.
Quando estava se preparando para filmar The Trip (o famoso filme em que Peter
Fonda experimenta LSD), Corman decidiu experimentar a droga ele próprio. Ele
comenta: “Eu sempre andei com uma turma
de malucos, e sempre fui o mais careta da turma”. Ele chamou seus melhores
malucos e os levou para um parque, perto de uma cachoeira.
Resolvi ficar deitado. E então o ácido bateu. Passei as sete horas
seguintes de rosto para baixo, no chão, embaixo de uma árvore, sem me mexer,
absorvido pela viagem mais maravilhosa que se pode imaginar. Entre outras
coisas, tive ali a certeza de ter inventado uma nova forma de arte. Essa nova
forma era o mero ato de pensar e de criar, e ninguém precisaria de livros ou de
filmes ou de músicas para comunicá-la; qualquer um poderia simplesmente deitar
no chão, em qualquer lugar, de rosto para baixo, e a obra de arte seria
transmitida através da Terra, da mente de seu criador diretamente para a mente
do público. Até hoje acho que isto poderia funcionar, e seria uma coisa
maravilhosa. Pense nos custos que poderíamos economizar somente com produção e
distribuição!
(pág. 146)