segunda-feira, 13 de julho de 2020

4599) Sete começos de conto policial (13.7.2020)




UM
                Meu primeiro encontro com o homem que destruiu minha vida foi num restaurante do Rio de Janeiro. Eu estava de saída, numa noite de quinta-feira, e parei junto a uma mesa onde reconheci o Dr. Túlio Andrade, que no ano anterior tinha defendido minha empresa numa causa cível qualquer. Cumprimentamo-nos e ele me apresentou os dois amigos que jantavam com ele. Um deles não lembro mais; o segundo era um homem magro, enrugado, de olhar inexpressivo, que apertou minha mão com aparente má vontade. Era Sálvio Revoredo, e quinze dias depois a polícia me acusaria de ser a pessoa que cortou sua garganta e o fez sangrar até morrer num terreno baldio de Nova Iguaçu.





DOIS

O detetive fez um sinal de silêncio para a cliente, levantou-se, abriu a janela deixando entrar os ruídos da rua, ligou o rádio num rock estridente e voltou à escrivaninha.
– Antes de qualquer declaração, deixe-me avisar: não me diga nada que possa comprometê-la. Fale como se houvesse um júri e um juiz aqui conosco.
A mulher ergueu os olhos para o teto, os ângulos da parede. Apertou a bolsa elegante com mãos trêmulas.
– Acha que pode haver microfones?... – disse.
– Nunca se sabe. Não afirme nada. Fale sempre no condicional. Então, pelo que entendi, se esse senhor tivesse mesmo sido assassinado... Teriam sido então seis tiros?
– Sim – disse ela, com mais segurança. – Teriam sido seis, e seriam poucos.





TRÊS

                Eram precisamente 06:51 da manhã quando Brenton, o mordomo de Stokely House, entrou na biblioteca para recolher, como fazia todas as manhãs, a bandeja que Sir Godfrey costumava ter à mão durante a noite para beber um pouco de uísque e mordiscar alguns frios enquanto escrevia. Ele foi até a mesa próxima à escrivaninha, varreu cuidadosamente com a mão alguns farelos esparsos e os colocou dentro do copo onde via-se um restinho de líquido cor de âmbar. Ergueu a bandeja e já se encaminhava para a porta quando viu, do lado oposto do grande sofá, duas pernas estendidas no tapete e dois pés calçando as pantufas de Sir Godfrey. Deteve-se, estupefato. Hesitou um pouco, e decidiu levar primeiro a bandeja para a cozinha, antes de verificar o que acontecera.




QUATRO

No ano 655 da era Ch’an, pouco antes da terceira lua cheia, a brisa que soprava perto das margens do Yun Chih veio naquela noite carregada de gritos, choros, imprecações. As lanternas amarelas e vermelhas que clareavam o Pavilhão da Melodia Sem Fim mostraram a partida súbita do senhor daquelas terras, o nobre Wang Su, que abotoava às pressas sua túnica militar, enxugava as mãos e o rosto numa toalha que jogou sobre os arbustos, tinta de sangue, e deu ordem ao cocheiro para que fosse embora dali.
Lá dentro, no claustro das concubinas, nove delas ajoelhavam-se aos prantos em torno do corpo inerte da décima, que tinha o rosto desfigurado de pancadas e um punhal cravado na garganta. Não era a primeira vez que o brutal suserano praticava tais violências, que mantinham todas elas com o peito opresso e a alma em terror. Mas nessa noite Ling Su Li pousou sobre o peito ainda morno da amiga uma mão fervorosa, e murmurou em voz baixa algo que há anos trazia preso dentro de si. E a segunda pousou a mão sobre a sua, e fez o mesmo, e depois a terceira, e a quarta – todas sacramentando o fato de que daquela noite em diante tudo continuaria aparentemente igual ao que sempre fora, aguardando o retorno costumeiro do tirano, mas que entre elas, aquele local funesto passaria a se chamar o Pavilhão da Sussurrada Jura.
  




CINCO

Não existe roubo impossível, não existe segurança inexpugnável. Era essa a palavra de ordem que pairava na mente de três homens discretamente vestidos, que passavam de mão em mão um poderoso binóculo, à janela do vigésimo-sexto andar de um hotel de Paris. Dali, num ângulo de 45 graus, podiam ver o quarteirão inteiro, os tetos, os pátios internos, e a última casa, de três andares, no final do Impasse Lenormand, a casa onde havia um cofre, o cofre onde havia uma caixa, a caixa onde havia um escrínio que seria de apenas um dos três. Ali foi confirmado o prazo de um mês, ali foi selada a aposta, e despediram-se com apertos de mão respeitosos e sem sorrisos.




SEIS

Ela cruzou a sala com passos lentos e sentou numa poltrona diante da minha. Cruzou as pernas. Usava uma sandália rósea, brilhante, e em volta do seu tornozelo cintilava uma correntinha de minúsculos elos de ouro.
– O que é isto? – perguntei, segurando seu tornozelo e passando a ponta dos dedos, de leve, pela corrente.
– Chama-se anklet – disse ela, acendendo um cigarro.
– Que coisa mais linda – disse eu, acariciando mais.
– Cuidado – disse ela, dando uma baforada. – Dá azar.
– Se dá azar, por que usa? – perguntei.
– Não é a quem usa – disse ela. – Dá azar a quem pega.





SETE

Às 17:30 de uma quinta-feira de junho de 2006, o sr. José Benício Morais de Lima, 44 anos, solteiro, representante de vendas, deixou o quarto-e-sala onde morava sozinho no Rio de Janeiro e pegou a ponte-aérea para São Paulo, como fazia três ou quatro vezes por mês. Era um homem magro, olhos azuis, lacônico, discreto, e viajava sempre com pouca bagagem. Nunca conduzia armas de fogo. Estas ficavam guardadas embaixo de uma tábua em seu apartamento.
Às 21:14 da mesma noite de quinta, o sr. João Batista Medeiros Luna, 44 anos, casado, representante de vendas,  chegou em sua casa em Vila Madalena, São Paulo, onde ao abrir o portão do jardim foi recebido com um beijo por sua esposa Lúcia Helena e com algazarra pelos filhinhos Laís e João Jr. Era um homem magro, olhos azuis, lacônico, discreto, e viajava algumas vezes ao Rio todo mês, para cumprir contratos.