terça-feira, 2 de junho de 2009

1066) Palavras que comprometem (16.8.2006)


(desenho de Saul Steinberg)

Há um episódio, muito recontado, sobre Graciliano Ramos, que estava revisando um número da revista “Cultura Política” e deparou-se com um texto que dizia algo como: “Precisamos destacar, outrossim, a importância de tal e tal coisa...” Graciliano parou, releu, mordeu a ponta do lápis, aí riscou a palavra, dizendo: “Outrossim é a p. que p.” Estava coberto de razão. “Outrossim” é horroroso. Eu só não digo que tenho ojeriza a esta palavra porque detesto, com a mesma intensidade, a palavra “ojeriza”. Por que? Não sei, e admito que é mero preconceito, e recorro a equivalentes aproximados como “fobia”, “antipatia”, “aversão”.

Certas palavras são antipáticas porque são pretensiosas e vazias. “Ufanar-se”, no sentido de orgulhar-se: “Ufano-me do meu país, porque é o melhor país do mundo...” Palavras assim eu risco de pincel-atômico. “Exprobrar” é outra: “Estamos aqui para exprobrar este comportamento inaceitável...” Diga-se “condenar”, “reprovar”, qualquer coisa, menos isso. Outra que não suporto é “consentâneo”: “Um cidadão precisa ter um comportamento consentâneo com as normas morais e éticas...” Diga-se “de acordo com”, diga-se “em harmonia com”, “adequado a”, qualquer coisa, meus amigos. Menos isso.

O linguajar jurídico (desculpem, caros advogados) está cheio dessas palavras pomposas, que funcionam, no interior da classe, como sinalizadores de prestígio intelectual. Usá-las dá prestígio, porque dá a falsa impressão de que o cara é inteligente. Nada tenho contra o jargão técnico de uma profissão (palavras únicas, específicas, insubstituíveis); minha birra é com o palavreado oco e cheio de pose com que os redatores e oradores ficam se pavoneando diante uns dos outros, fingindo uma cultura verbal que na verdade não possuem, porque estão se limitando a repassar os clichês que os pavões da geração anterior lhes repassaram.

Recue, amigo, diante de quem usa o tempo inteiro palavras como “aviltar”, “conspurcar”. É um moralista cheio de retórica, e Deus me livre de abrir a tampa da alma de um desses sujeitos e olhar lá dentro. Já aprendi que quanto mais grandiloqüentemente moralista é o discurso de um cara, mais coisas ele está tentando varrer para baixo desse florido tapete.

Quem diz palavras desse tipo procura fazer com que elas funcionem como senhas. O sujeito as diz para ser tido como honesto e ser admitido neste seletíssimo clube (tão seleto que vive às moscas). São palavras que, na economia do vernáculo, custam os olhos da cara para adquirir. Nossa memória racial as associa a tribunos inconspurcáveis como Rui Barbosa ou Joaquim Nabuco. Lançado mão do vocabulário desses ilustres figurões, que Deus os tenha, o sacripanta de hoje tenta, por mimetismo verbal, assemelhar-se a eles, esconder-se à sua sombra, pegar carona nas suas imunidades parlamentares e oratórias. Desconfiem dos Gôngoras da tribuna, porque como regra geral não passam de Tartufos nos bastidores.

1065) Casas mal assombradas (15.8.2006)





Tudo pode ser explicado cientificamente. Ruídos estranhos à noite, então, nem se fala. O vento ao entrar por frestas estreitas produz silvos, produz chiados. Quando ele passa por algum trecho onde há pedaços de madeira meio soltos, eles vibram, tatalam, criam um som parecido com o do bater de asas de uma mariposa das grandes ou um morcego dos pequenos. 

Correntes de ar costumam derrubar pequenos objetos num aposento vazio: uma revista, um chapéu, um porta-retratos com a foto de alguém que já faleceu. Também são responsáveis por aquelas quedas momentâneas de temperatura que provocam um calafrio – aparentemente inexplicável, porque segundos depois a temperatura volta ao normal, e a pessoa sente-se arrepiada da cabeça aos pés.

Casas antigas, com assoalho ou paredes de madeira, têm sua respiração própria, composta de dilatações e contrações. 

A madeira se expande e se contrai o tempo inteiro, algo que não é percebido durante o dia, com pessoas em movimento, rádio ligado, ruídos constantes. Mas à noite, quando todo o resto silencia, conseguimos escutar aqueles estalos, aqueles rangidos, aqueles barulhos repentinos que nos dão a idéia de pés invisíveis mas pesados premindo as tábuas do andar superior.

Isto para não falar nas criaturas que as grandes casas, e até os apartamentos modernos, costumam abrigar. 

Baratas parecem silenciosas, mas só quando as vemos cruzando os ladrilhos de cerâmica das paredes ou do assoalho. Elas produzem ruído quando correm por dentro dos armários, desequilibrando os talheres empilhados uns sobre os outros, fazendo roçagar as folhas de jornal que forram as prateleiras embaixo da pia, roçando de encontro aos ruidosos sacos plásticos que nas casas modernas se amontoam em todos os recantos. 

Baratas são responsáveis por muito daquele burburinho inquietante que percorre a madrugada; para não falar nos ratos.

Luzes estranhas? Reflexos dos faróis dos carros que passam na estrada, lá longe. Portas que se abrem sozinhas? O vento, mais uma vez. Uma pilha de panelas e pratos que desmorona com estardalhaço, numa cozinha deserta? Mais uma vez a mudança de temperatura, que contrai minimamente a louça ou o metal, até fazer colapsar o amontoado inteiro. Objetos colocados num lugar, que aparecem em outro? Distrações, quebras de memória.

Silhuetas ectoplásmicas, fosforescentes, que brotam sob o dossel da cama? Efeito da brancura dos lençóis sobre uma retina fatigada e sensível. Rostos cadavéricos e mãos descarnadas que surgem na vidraça, querendo entrar? Mera ilusão de ótica, alterando a imagem das árvores e das cercas lá fora. 

Criaturas de pesadelo que agarram nossos cabelos, rasgam nossas roupas, cravam em nós seus caninos aguçados e suas unhas recurvas? Meras alucinações, estados alterados da consciência, mistura imprudente de uísque, cachimbo e romances góticos após a meia-noite, horário em que, vamos e venhamos, certos portais da Mente deveriam permanecer fechados.







1064) A Enciclopédia Galáctica (13.8.2006)



Nunca pensei que veria, no meu tempo de vida, algo parecido com a Enciclopédia Galáctica sonhada por Isaac Asimov, ou com o que B. R. Bruss assim descreve em sua space-opera O Grande Ser (Editora Vecchi, 1963): “Esta conversa desenrolava-se numa das inúmeras dependências do Centro de Arquivos Históricos Galácticos,cujos prédios enormes cobriam várias centenas de hectares do que fora outrora o Arizona. O Centro fora fundado mais de dezoito mil anos antes e desde então fora ampliado de forma espantosa. (...) Saltaram na entrada do vasto salão onde se achava “Josefa”. Centenas de homens trabalhavam em silêncio ao redor da gigantesca máquina. (...) Não era a própria Josefa quem fornecia informações históricas. Sua tarefa era fornecer referências e enviar informações a outras máquinas, as quais eram, de alguma forma, a memória histórica da Galáxia. No Centro havia duas ou três mil máquinas, algumas de dimensões consideráveis”.

A World Wide Web de hoje concretiza este sonho dos escritores. Uma das melhores coisas da FC é ver o quanto suas previsões se realizam pelo avesso. O exemplo mais citado pelos historiadores é o fato de que milhares de autores previram o desembarque do homem na Lua, mas nenhum imaginou que isto seria visto no mundo inteiro através da TV. Arrisco a hipótese de que é mais fácil prever o desenvolvimento da Astronáutica, que é de natureza mais concentrada, mais afunilada, do que o desenvolvimento das telecomunicações, que precisam se disseminar entre a população, e mantêm com ela um “feed-back” mais intenso de influências mútuas.

A Enciclopédia Galáctica imaginada nos anos 1950 se inspirava na imagem do computador gigantesco, do tamanho de um edifício. Imaginava-se que quanto mais potente um “cérebro eletrônico” (como eram chamados), maior seria. Ledo engano. Os computadores cresceram para dentro, e não para fora. Não cresceram no sentido da expansão, mas da subdivisão, do particionamento, do aproveitamento em escala micrométrica das menores unidades possíveis do material que compõem seus chips e suas unidades de armazenamento. Leio no jornal que acaba de sair o novo chip da Intel, um tal de “Core 2 Duo”, com capacidade equivalente a 291 milhões de transistores. E é desse tamanhinho.

O tamanho reduzido dos computadores de hoje faz com que, em vez de cobrirem “centenas de hectares do que fora outrora o Arizona”, eles se espalhem em minúsculos fragmentos, que antes eram chamados “computadores pessoais”, e agora são mais e mais chamados de “meu celular”. O computador, o nosso familiar PC doméstico (ou Mac, para os mais sofisticados) foi a imagem dessa revolução nos anos 1980. O modem, o aparelhozinho capaz de nos plugar na rede neuronial da World Wide Web, foi o seu símbolo nos anos 1990. Agora, de 2000 em diante, é o celular, cuja função de telefone recua cada vez mais para dar lugar às funções de Monitor de Acesso à Enciclopédia Galáctica.

1063) World Wide Web (12.8.2006)


(Tim Berners-Lee)

Tomei café, liguei o computador, e fui no Expecting Rain, um saite dedicado a Bob Dylan, gerenciado e mantido por um cara da Noruega. Fui ver se tinha algum comentário sobre o disco novo. Lá fiquei sabendo que neste mês de agosto a World Wide Web, ou WWW, está completando quinze anos de existência. Foi em agosto de 1991 que Tim Berners-Lee divulgou as informações necessárias para que se criassem links instantâneos entre documentos situados em computadores em diferentes partes do mundo, conectados entre si por redes telefônicas. Ou seja: o equivalente a você pegar o telefone, discar uma série de algarismos, e o telefone tocar na casa de um amigo seu que mora na China. O primeiro servidor (o local onde se arquiva um número indefinido de páginas linkadas) foi montado em dezembro daquele ano, na Universidade de Stanford.

Uma vez li uma entrevista com Tim Berners-Lee e o repórter lhe disse: “Você poderia ser um milionário se tivesse explorado comercialmente o que criou. Por que não quis?” E ele disse: “Pra que ser milionário, quando você pode mudar o mundo?” Os jovens de hoje não sabem, mas trinta anos atrás “mudar o mundo” era o sonho da maioria dos jovens (os jovens de hoje acham que ser milionário é mais interessante, e de preferência sem trabalhar). Berners-Lee é um dos poucos cidadãos que podem dizer que mudaram o mundo. Não o fez sozinho, claro, mas, como Colombo, ou Newton, ou os Irmãos Lumière, ou Santos Dumont, foi através dele que o conhecimento acumulado da Humanidade deu o salto qualitativo para uma nova descoberta.

Em tempos normais eu não passo menos de quatro ou cinco horas por dia conectado à WWW. Lendo jornais e revistas, principalmente. Eu não dependo apenas do “Jornal Nacional” da Globo para saber o que está se passando. Tem bombardeio no Líbano? Posso consultar toda manhã o saite da TV Al-Jazeera (http://english.aljazeera.net/HomePage) para ver um ponto de vista árabe, ou o saite do Haaretz (http://www.haaretzdaily.com/) para ver um ponto de vista judeu. Qualquer um de nós pode ler qualquer jornal importante do mundo, todo dia. Basta ir num computador (pode ser o de um café, ou do colégio) botar o nome do jornal no Google, e clicar no link.

Em tempo de blogs, que podem ser atualizados a qualquer momento, os blogs de jornalistas profissionais podem nos dar informações essenciais sobre os fatos à medida em que eles se desenrolam. Sobre política brasileira, eu olho com freqüência o blog de Ricardo Noblat, em Brasília (http://noblat1.estadao.com.br/noblat/visualizarConteudo.do). Mas as opções são inúmeras. Dê um pulo, coleguinha, no saite Cyberjournalists (http://www.cyberjournalist.net/cyberjournalists.php?NF=1) onde há links para mais de 400 blogs de jornalistas, especializados em qualquer assunto, espalhados pelo mundo inteiro. E eu sou tão saudosista que lembro com carinho dos tempos em que eu juntava dinheiro para comprar a revista “Time” toda semana!

1062) A prosa e seus formatos (11.8.2006)




(a antologia de Marcelino Freire)

Aqui no Brasil a gente cresce num ambiente editorial de pouca formalidade, onde conceitos são usados sem muita definição. Nos EUA é diferente. Para certas coisas, os americanos são mais cartesianos do que os franceses. 

No caso da classificação dos textos em prosa, por exemplo, aqui no Brasil se considera que “conto” é uma história curta, “novela” é uma história maiorzinha e que “romance” é uma história longa. Uma classificação empírica que é usada informalmente pela maioria das pessoas que escrevem, e por muitas que publicam.

Aqui no Brasil temos o hábito de contar os textos em termos de laudas, ou páginas: “Me mande um artigo de três laudas”, “Escrevi um conto de quinze laudas” e assim por diante. Já os americanos contam por palavras: “Semana passada escrevi um conto de cinco mil palavras”, “Fulano de Tal publicou este ano um total de duzentas mil palavras, entre contos e romances”. 

Contar o número de palavras num texto é uma coisa meio espinhosa. Antes dos computadores, havia um cálculo médio de palavras por linha, que era multiplicado pelo número de linhas para ter o total por página, que por sua vez era multiplicado pelo número de páginas do manuscrito (ou datiloscrito, para ser mais exato). 

Hoje, com o computador, é mais fácil. Para quem usa Word, basta clicar em “Arquivo”, e no menu clicar em “Propriedades” e em seguida em “Estatísticas”: vai aparecer um pequeno boxe dando o número de páginas, parágrafos, linhas, palavras, caracteres e caracteres com espaços.

O mercado editorial americano é tão grande que precisa ter classificações nítidas. Uma classificação básica dos textos em prosa é a seguinte: 

Conto (“short story”), até 7.500 palavras; 
Noveleta (“novelette”), entre 7.500 e 17.500 palavras; 
Novela (“novella”), entre 17.500 e 40 mil palavras; 
Romance (“novel”), de 40 mil palavras em diante. 

E não me perguntem sobre essa distinção entre “novella” e “novel”, ou por que “romance” em inglês se diz “novel”: é um emaranhado tão grande que eu precisaria de várias colunas para discutir.

Só para ajudar no cálculo, lembro ao leitor que estes meus artigos têm uma média de 500 palavras. Um conto, portanto, tem até 15 vezes esta extensão, e assim por diante. 

Podemos ter também o “mini-conto” (“short-short story”), que não tem uma extensão fixa mas em geral tem um tamanho menor que o presente texto. Alguns grupos de escritores costumam praticar o “drabble”, histórias que têm exatamente 100 palavras. 

Há pouco tempo, o escritor Marcelino Freire editou em São Paulo uma antologia de mini-contos que podiam ter no máximo 50 letras (embora não houvesse limite de caracteres para o título, o que fez Millôr Fernandes, espertamente, produzir um conto curtíssimo com um título quilométrico). 

A extensão de um texto é sempre um desafio. Um escritor competente deve ser capaz de contar a mesma história em uma frase, em um parágrafo, em uma página, em dez páginas e em duzentas páginas.






1061) Meus caros poetas (10.8.2006)





(poema de Drummond)

Sou um consumidor compulsivo de poesia, em forma de livros, revistas, suplementos literários, saites na Web, sem contar com o material que recebo à minha própria revelia pelo Correio. Como já falei aqui, a maioria não me toca de modo especial, nem no intelecto, nem nas emoções. 

Ler um poema alheio é como ver a foto de uma família alheia: “Esta foto é de minha mulher e meus dois filhos. Que tal? Você acha que minha família é boa? Gostou? ” O que podemos dizer, caros poetas? Eu prefiro dizer que gostei, afinal de contas, é a família do cara. É o poema do cara. Custa nada dizer que gostou?

Às vezes, contudo, a gente gosta. Tem poemas que parecem despregar-se do autor e pertencer a um patamar diferente deste onde vivemos nós: o patamar da Linguagem. 

Isto não quer dizer que a Linguagem seja superior à vida real, mas que ela está num nível um pouco mais abstrato do que este onde existimos, e é nesse nível dela que os produtos dela precisam ser avaliados.

Às vezes cai na mão da gente, por exemplo, um livro de correspondências. Lemos a carta que um desconhecido do século 19 escreveu para alguém. Pode ser uma carta comum, cuja leitura nos deixe indiferente e nos faça dar de ombros. Mas pode ser uma carta que tenha algo diferente, e aí não importa quem é ou quem foi o autor, ou o destinatário. É uma carta escrita em 1820 por um cara que não existe mais, mas tem algo nela que continua existindo. 

Este algo é a linguagem, e não estou me referindo a ser “bem escrita”, com vocabulário rico e com exibições de estilo. Pode até ser uma carta feita com dificuldade, cheia de erros de português, mas é bem escrita porque diz coisas importantes. As tais coisas importantes que a Literatura nos traz parecem sê-lo pelo seu conteúdo, mas, se a gente prestar atenção, vai ver que esse conteúdo foi tornado mais vívido pelo modo de dizer.

Quando Carlos Drummond diz: “Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é o meu coração”, ele parece estar nos revelando algo pela primeira vez. Há mil maneiras de dizer essa mesma idéia, mas ele escolheu talvez a melhor. 

Poderia ter dito: “Oh, mundo! Como és imenso! Mas mais imenso do que o teu tamanho, companheiro mundo, é o tamanho do coração deste pobre poeta que vos fala!” É a mesma idéia, não é? Mas não é a mesma coisa.

O problema da grande maioria dos poemas que rola por aí (os meus inclusive) é que não passam de tentativas de reproduzir poemas que nos disseram algo de interessante; ou tentativas de desabafar no papel as nossas hesitações existenciais, nossos conflitos afetivos, nossa indignação cívica. 

Em geral, esses conteúdos resultam numa poesia que só diz alguma coisa ao sujeito que a escreveu. A gente percebe como ele estava se sentindo ao escrever: melancólico, ou eufórico, ou contemplativo. Mas percebe indiretamente. O poema vira um problema quando é um mero registro de uma emoção mas a linguagem em que foi expresso não gera emoção em ninguém que não seja o autor.