domingo, 30 de janeiro de 2011

2467) A pornografia e a Internet (30.1.2011)




Segundo um artigo de Cezary Jan Strusiewicz no saite Cracked.com (http://bit.ly/f1kbvp) a indústria pornográfica é um ótimo ambiente para testar novas tecnologias e novas formas de comercialização. A razão para isto é que o consumidor da Pornografia não é muito exigente em perfeição técnica, em conteúdo artístico, etc. Desde que o material (livro, filme, fotos, etc.) contenha o que ele está querendo ver, de forma reconhecível, vai haver sempre quem o adquira. 

Diz Strusiewicz: 

“Durante o tempo das vacas magras na Internet, os saites pornô eram os únicos que cobravam por acesso online. A Pornografia na Web criou e aperfeiçoou os sistemas de acesso ao conteúdo através de assinaturas pagas, de verificação online de cartões de crédito e sistemas de cobrança via Web. Hoje, tudo isto é usado regularmente por multinacionais como Amazon, E-Bay e iTunes. E porque o sexo mais procurado é o sexo em movimento, os consumidores logo exigiram acesso a algo mais que fotos. Assim a Pornografia foi um dos primeiros e raros ramos de negócios a oferecer vídeos em “streaming” (o que você vê na tela mas não pode baixar), ajudando a popularizar esta prática, e até mesmo alavancando o desenvolvimento da tecnologia de Flash”.

Strusiewicz acha também que a Pornografia (que é amoral, não-ideológica, e tem um espírito meramente comercial e pragmático) pode ajudar a “limpar” a Internet, porque ela, também, é vítima de vários tipos de pirataria online e desenvolve seus mecanismos de defesa; a indústria do “X-Rated” é hoje um dos principais pesquisadores de software anti-pirataria.

Por que motivo a Pornografia está sempre à frente no que diz respeito à vanguarda hi-tech? Diz Strusiewicz: 

“Assim como uma garota reprimida que vai morar num campus universitário, a indústria pornô está não só disposta, mas sequiosa, por novas experiências. A maioria das empresas convencionais tem uma estratégia financeira planejada cuidadosamente para a próxima década. Elas não podem se dar o luxo de se desviar desse plano, e fica-lhes difícil fazer experiências e testar novas posições no mercado. O Pornô adora novas experiências e novas posições! Muitos executivos do mundo Pornô são jovens, ansiosos para experimentar maneiras diferentes de atingir os consumidores”.

Já se fala em pornografia 3-D e em aplicativos pornô em video-streaming pro sujeito assistir no iPad (anunciados no mesmo dia em que a Apple lançou o iPad). Há investimentos em pesquisas sobre Inteligência Artificial sendo financiados pela indústria pornográfica, segundo Ilan Bunimowitz, executivo do Private Media Group. 

Ela ajuda a criar novos mercados com a intenção de ocupá-los antes dos concorrentes, o que sempre acontece porque os concorrentes precisam convencer seus acionistas e obter os alvarás ou coisa parecida nos corredores do Governo. A economia informal não precisa disso. Quando a Lei vai pros cajus, os fora-da-lei já estão vindo das castanhas.






sábado, 29 de janeiro de 2011

2466) A banda de um homem só (29.1.2011)





Já devo ter falado aqui sobre o saite UbuWeb, que se auto-denomina, com bom humor, “o YouTube da vanguarda”. É exatamente isto: um enorme arquivo de sons e imagens, mas ao invés de cenas do BBB-11 e de clips de Cláudia Leitte o saite oferece entrevistas com William Burroughs, documentários sobre Picasso e Man Ray, curtas underground dos anos 1950. 

Ou, no presente caso, o documentário The One Man Band, sobre os projetos inacabados de Orson Welles. 

As últimas décadas na vida de Welles foram um triste anticlímax para o sujeito que dirigiu Cidadão Kane, várias vezes eleito como o maior filme da história do cinema. Depois de brigar com Hollywood, Welles se refugiou na Europa (com a qual, vamos e venhamos, tem muito mais a ver), onde realizou alguns filmes magníficos, mas ao mesmo tempo teve uma sucessão de naufrágios em projetos que poderiam ter resultado (quem pode afirmar que não?) em obras tão notáveis quanto O Processo ou Falstaff.

O documentário (ver aqui: http://www.ubu.com/film/welles_oneman.html) acompanha alguns desses naufrágios, e foi co-dirigido por Oja Kodar, a longilínea e misteriosa companheira de Welles no final da vida, aquela mesma que aparece com destaque em F for Fake (“Verdades e mentiras de Orson Welles”), seu último grande filme. 

Ela abre a casa onde viveram, e mostra, além de um quarto atulhado de latas de filme 35mm, os “cases” que Welles levava em suas viagens. Para onde fosse, ele levava consigo uma moviola portátil para editar filme 16mm, câmara, etc. Financiava seus projetos pessoais cobrando cachês extorsivos para trabalhar de ator em qualquer filme vagabundo. Pagavam-lhe, porque seu nome no cartaz abria muitas portas. Com o dinheiro, e com a amizade de incontáveis atores e técnicos, ele ia filmando e montando devagarinho os quebra-cabeças que resultavam em filme como Macbeth ou Otelo.

Entre os projetos inacabados está The Other Side of the Wind, que tinha como atores John Huston e Peter Bogdanovich, além de Oja Kodar (que aparece numa impressionante cena de sexo com um rapaz, na boléia de uma camionete, numa estrada, à noite, enquanto o motorista ao lado dirige como se nada estivesse acontecendo). 

Outro projeto foi The Deep, uma história de suspense e violência filmada em alto-mar, que se inviabilizou após a morte do ator Laurence Harvey. 

The Dreamers foi uma tentativa de adaptar um conto de Isak Dinesen (Karen Blixen), a escritora dinamarquesa que Welles admirava muito.

Além desses, o documentário mostra pequenos esquetes cômicos. Welles como um desconcertado cliente de dois alfaiates ingleses metidos a engraçadinhos; Welles de jornalista entrevistando Welles de nobre britânico falido; Welles como banda-de-um-homem-só tocando na rua e sendo assistido por ele mesmo em diferentes trajes (inclusive de mulher). É um material inédito e fascinante, do tipo que a UbuWeb, o YouTube da vanguarda, tem aos milhares.





sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

2465) Drummond: "Poema que Aconteceu" (28.1.2011)


(M. C. Escher, "Mãos")

Alguém devia editar uma antologia de Carlos Drummond sob o título de Poemas de Aceitação, e essa recolha nos revelaria um lado importante e profundo do poeta. 

Drummond tem um estoicismo que pende mais para o zen do que para o masoquista, e não envolve uma resignação passiva da realidade, mas um gesto filosoficamente assertivo, conquistador, de aceitar a realidade dominando-a, subjugando-a através de um abracadabra filosófico que se exprime em palavras poéticas. 

Temos a sensação de que se alguém despejasse sobre Drummond todos os blocos da Pirâmide do Egito ele seria capaz de (se lhe dessem alguns minutos) descobrir uma fórmula verbal de aceitar sua enxurrada e manter-se intacto na base do entulho. 

A aceitação tem sete faces, como tudo que CDA compôs, porque um poema não é uma bula de remédio, fórmula exata e definitiva do produto que acompanha. Um poema é o registro sismográfico das inquietações intelectuais e emocionais de um sujeito, e sua tentativa de dar um nó de tinta em volta de cada problema. 

Um problema sério do jornalismo cultural de hoje em dia (não me atrevo a chamar isso de “crítica literária”) é uma profunda incompreensão do que é a criação literária. Há sujeitos capazes de, num perfeito jargão acadêmico, criticarem um autor por “contraditório” simplesmente porque dois poemas dele, num mesmo livro, exprimem idéias opostas. 

Quem chega à poesia pelas fórmulas didáticas, e não pelos poemas, nunca vai saber o que é poesia. (E me refiro aos poemas no cru, sem anestesia, sem assinatura, sem comentário, sem preparação, o poema caído de uma fenda no céu no colo do leitor). 

Em Alguma Poesia, cujos 80 anos foram comemorados ano passado, surge o singelo “Poema que Aconteceu”, uma dessas pequenas epifanias não-poéticas, não-conceituais, não-estéticas que os poetas tantas vezes procuram. Escrever algo que representa a vida, mas a vida sem enfeites, a vida sem beleza ou drama, a vida sem profundas palavras ou nobres conceitos, a vida que lateja nos animais e nas plantas. “Life, and life only” como disse Bob Dylan. Uma tentativa de auto-despojamento que Alberto “Fernando Pessoa” Caeiro conseguiu por outros meios e caminhos. 

Nenhum desejo neste domingo 
nenhum problema nesta vida 
o mundo parou de repente 
os homens ficaram calados 
domingo sem fim nem começo. 

Não é apenas a letargia dos nossos domingos urbanos e modernos; é a polaróide de um instante sem desejos, sem problemas, sem movimento, sem palavras, sem espaço nem tempo. A vida em Modo Sleep, a vida latente mas com o intelecto desligado. O corpo apenas, vivendo um segundo de cada vez. E ele conclui: 

A mão que escreve este poema 
não sabe que está escrevendo 
mas é possível que se soubesse 
nem ligasse. 

A mão sem Eu, a mão sem mente, a mão mediúnica, a mão-desenhando-a-mão de M. C. Escher, a mão que produz a poesia sem que o dono precise pensar. (Claro que, como Escher, Drummond sabe que está sugerindo algo impossível).





quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

2464) A pornografia e o progresso (27.1.2011)





A economia informal (aquela que se dá do lado de fora das leis e da fiscalização do Poder Público) é uma grandiosa cordilheira de montanhas, cada uma delas parecendo mais alta do que as outras, dependendo do ponto de vista. 

O Tráfico de Drogas, por exemplo, tem crescido exponencialmente nas últimas décadas. 

A Pirataria Digital evolui com tal rapidez que se fosse mesmo uma montanha e tentássemos fotografá-la a foto provavelmente sairia borrada, porque ela cresce a olhos vistos. 

A Pornografia provavelmente é a mais antiga das três, mas nem por isso perdeu impulso. Pelo contrário; no saite Cracked.com (http://bit.ly/f1kbvp) surge um argumentativo texto de Cezary Jan Strusiewicz sob o título: “Cinco aspectos em que a pornografia criou o mundo moderno”.

O primeiro, segundo ele, são as tecnologias de vídeo doméstico, que começam com o VHS. Strusiewicz observa que a idéia de podermos gravar e ver nossos próprios vídeos quando quiséssemos era praticamente inexistente antes do VHS. Diz ele: “Até o final da década de 1970, filmes de sacanagem correspondiam a metade de todas as vendas de fitas de vídeo nos EUA. Na Grã-Bretanha e na Alemanha esse número chegava a 80%."  

A razão disto é que, antes do VHS, a única maneira de ver filmes de sexo era comprar ingresso num cinema pornô, que não é, convenhamos, um lugar onde todo mundo se sente à vontade.

Segundo: a pornografia tornou possível a existência de sua câmara digital. Um dos grandes incentivos para a popularização deste formato foi quando as pessoas perceberam que, pela primeira vez, as fotos que elas tirassem na intimidade dos seus lares não teriam que ser reveladas num laboratório de uma loja, cujos funcionários, é claro, iriam copiar para si próprios as fotos mais picantes do casal. 

O artigo reproduz comerciais de revista, na época, em que essa associação entre foto digital e privacidade erótica é claramente sugerida. O VHS e a foto digital se conjugaram para permitir que qualquer pessoa gravasse e exibisse imagens por conta própria, na hora que quisesse, sem que elas tivessem que passar pela mão de ninguém.

Terceiro: Gutenberg inventou a imprensa; a pornografia a alavancou. Strusiewicz dá um pulo para séculos atrás e mostra algo parecido ocorrendo no começo da imprensa. Diz ele: 

“Gutenberg e sua Bíblia deram o pontapé inicial, mas durante séculos um dos autores mais lidos na Europa foi Pietro Aretino, hoje considerado um dos pais da literatura erótica, com seu livro de 1524 I Modi (As Maneiras), com gravuras de Giulio Romano”. 

Uma espécie de Kama Sutra italiano enumerando posições e técnicas. Ainda hoje, os Sonetos Luxuriosos de Aretino são traduzidos e lidos no Brasil. 

A tese de Strusiewicz é que sempre há compradores para a obra erótico-pornográfica, independentemente de seu acabamento técnico ou valor artístico. Isto faz desta indústria um excelente campo de testes para novas tecnologias e para novos experimentos de transações comerciais.


Continua aqui:

https://mundofantasmo.blogspot.com/2011/01/2467-pornografia-e-internet-3012011.html




quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

2463) Um conto em Power Point (26.1.2011)



Novas tecnologias criam novas maneiras de manipular textos. Com sorte, podem produzir também novas dinâmicas internas: o modo de organizar as palavras; o modo de destacá-las; o modo de conduzir o olhar do leitor e o fluxo de leitura; o modo de alternar cenas; o modo de encadeá-las produzindo a impressão de continuidade ou sequência. Tudo isto faz parte da arte da narrativa, e o surgimento de novos suportes para a palavra escrita pode nos ajudar a contar histórias de uma maneira que não poderia ser contada num texto apresentado de modo convencional, como este aqui.

A escritora Jenifer Egan produziu um conto narrado em forma de apresentação de Power Point, este popularíssimo recurso que possibilita a conferencistas projetarem os parágrafos de sua conferência numa tela, em grandes letras coloridas, e lerem o texto em voz alta para uma plateia que lê ao mesmo tempo, movendo os lábios. Paulo Freire não teria concebido uma maneira melhor de alfabetizar professores e doutores!

O conto de Egan se intitula “Great Rock and Roll Pauses” e utiliza o sistema de “slides” sucessivos do Power Point, telas que se sucedem, cada uma com certa quantidade de texto organizada em torno de formas geométricas, induzindo diferentes fluxos de leitura. O conto foi incluído em seu livro A Visit from the Goon Squad (Knopf, 2010), e pode ser visto em sua forma original (quadros coloridos, sucessivos), aqui:
http://www.slideshare.net/JenniferEgan/rockandroll97-2004cppt.

O conto, aliás,tem como tema um garoto autista (irmão da narradora) cujo hobby é colecionar e analisar o que em música de chama de “pausas Clearmountain” – aquelas pausas bruscas no meio de uma canção, para logo em seguida a música voltar com força total. (Têm este nome por terem sido usadas e abusadas pelo produtor musical Bob Clearmountain). Talvez o estilo Power Point ajude a reproduzir a mentalidade precisa, ordenada e meio mecânica de um autista.

Não se trata, como tanta gente repete, passivamente, de “destruir as formas arcaicas e superadas de literatura”. Nenhuma forma é tão arcaica e superada que não possa ser usada de maneira eficiente ou original. Trata-se de experimentar formas novas, não para “renovar a literatura”, coisa que nenhum escritor pode fazer sozinho, mas pelo espírito lúdico de se divertir com uma maneira diferente de contar. Se isto vai ser assimilado pelo chamado “corpus” literário, não depende de nenhum autor individual. É um processo coletivo e randômico. Melhor ir se preocupar com outra coisa.

Alguém um belo dia teve a ideia de usar tipos de letras diferentes (que hoje chamamos de itálico e negrito) para destacar partes diferentes do texto – mudar de interlocutor, distinguir entre frases pensadas e frases ditas em voz alta, sugerir a presença de uma consciência externa à cena e que a contempla, etc. No começo isto pode ter parecido mero exibicionismo ou excentricidade; mas hoje é um recurso usado em qualquer best-seller.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

2462) “A Rede Social” (25.1.2011)



O filme de David Fincher sobre a invenção do Facebook parece plausível (não li o livro original nem sei os detalhes da história). Ele deixa claro o lado meio aleatório da coisa: o sucesso involuntário, o processo que foge ao controle de seus criadores. O Facebook deixou de ser um passatempo para tirar nerds da obscuridade social em que viviam e se transformou numa fortuna de bilhões de dólares. O livro em que o filme se baseia chama Mark Zuckerberg e Eduardo Saverin de Bilionários por Acidente. Longe de ser um hino à iniciativa individual ou à genialidade, este episódio é um hino ao Acaso. Centenas de redes sociais de diferentes tipos são criadas por mês no mundo. Umas dão certo, outras não. Sabemos por quê deram ou não deram, mas só o sabemos retrospectivamente. Impossível prever. Saverin (no filme) desembolsa 19 mil dólares para fazer o Facebook decolar. Tem gente por aí que já desembolsou milhões, e a idéia deles não decolou ainda.

O Zuckerberg do filme é um nerd radical, inteligentíssimo mas inábil no trato com seres humanos, o que fica bem claro no modo agressivo com que ele trata uma namorada na sequência inicial do filme, metralhando-a com questionamentos e sarcasmos até que ela o manda pro inferno e cai fora. Vê-se que ele é muito mais aparelhado para disputas judiciais, porque durante as sessões em que é acusado de roubar as idéias alheias ele usa essas mesmas armas de maneira exemplar, demolindo os opositores. A mesma nerdice e agressividade de Bill Gates e tantos outros.

Roger Ebert, comentando o filme, observa que existem tradicionalmente três atividades que produzem gênios infantis: matemática, música e xadrez. E sugere que a programação de computadores pode ser uma quarta área. Por que não? Esses geniozinhos têm cérebros capazes de façanhas espantosas mas tendem a ser tímidos, rudes, introvertidos, antissociais. Fala-se a propósito deles na Síndrome de Asperger, que é uma condição próxima do autismo. Zuckerberg, segundo os depoimentos, seria assim; Ebert o compara com Bobby Fischer, o neurótico campeão de xadrez.

A crítica de Peter Travers na Rolling Stone comenta a imagem de Zuckerberg, milionário, sentado sozinho numa sala escura, “com o rosto iluminado pela luz azul do monitor, e fingindo que não está sozinho”. É uma maneira bitolada de ver as coisas. Muita gente pulando carnaval também finge que não está sozinha. Os nerds estão reinventando o mundo à sua imagem e semelhança. Dizer que um computador não faz companhia é tão injusto quanto dizer o mesmo de um livro ou de uma vitrola tocando Beethoven. O Facebook pode dar uma simples ilusão de sociabilidade, mas esta não é mais ilusória, para as pessoas “que não se encaixam”, do que a sociabilidade em carne-e-osso de uma festinha no campus, uma platéia de rock ou um churrasco na laje. O filme mostra que o mundo está cada vez mais formatado pelos nerds, após séculos de ditadura dos extrovertidos.

domingo, 23 de janeiro de 2011

2461) Vou mandar o clone (23.1.2011)



Por um lado meu problema é tempo. Me envolvo em atividades que se bifurcam em duas, que por sua vez se bifurcam em quatro, e como o tempo disponível não se bifurca da mesma forma, vejo-me saltando feito um louco daqui para ali, tentando comparecer a compromissos, perdendo um tempo irrecuperável em deslocamentos tartarugais pelo trânsito, dormindo às pressas, comendo mal, falando em dois celulares ao mesmo tempo, voltando para casa três vezes antes de chegar ao elevador porque me lembro que esqueci alguma coisa, faltando a encontros, confundindo terça-feira às cinco horas com quinta-feira às três... Não, não, impossível viver assim. Felizmente a engenética e a biotecnologia já me presentearam com uma solução rápida (mesmo que não muito barata).

Amanhã, churrasco na cobertura do industrial argentino que gostou do meu livro sobre Jorge Luís Borges e se comprometeu a financiar sozinho a edição do meu DVD ao vivo. Gente fina, o Lorenzo; culto, bom papo, amante da boa comida e das bebidas geladas. Problema são os amigos dele, igualmente ricos mas que nunca ouviram falar no Aleph, não sabem quem é Funes nem onde fica Tlon. Vão me encher de perguntas bobas sobre minha vida, vão ficar querendo comparar Dilma e a Sra. Kirchner, comparar Messi e Ronaldinho Gaúcho... Ora, que se danem. Vou mandar o clone.

Depois de amanhã vai ser pior. Tenho uma reunião numa produtora que vai avaliar meu projeto de documentário sobre coco de embolada e hip-hop. “Avaliar” não é bem o termo porque o projeto já foi aprovado e essa reunião é meramente pró-forma, já sei que eles vão fazer o possível para inflar a parte de hip-hop e minguar a parte do coco. Acham que coco é coisa de gente descalça, e que o hip-hop, por ser conhecido no mundo inteiro, tem mais resposta de público e mais chances de passar nas TVs a cabo do Azerbaijão e da Nigéria. Não sabem de nada. Não tenho paciência para ficar argumentando: vai ser como eu disse, e já passei para meu representante ordens tão inflexíveis quanto as Leis da Robótica de Asimov. Isso mesmo – não vou lá, vou mandar o clone.

Bendita solução, que me custou os olhos da cara, mas me permite pôr os pés somente onde me interessa e onde estou me divertindo ou aprendendo algo útil. Ninguém vai mais malbaratar meu tempo, espremer em gotas de suor inútil os minutos de ouro dos meus últimos anos de vida. Não fico mais em fila de banco (ele mesmo renegocia o empréstimo com o gerente) ou em sala de espera de médico (perto da minha vez de ser atendido ele me avisa pelo celular e eu chego num instante). Quando for apenas para estar presente, apertando mãos, ouvindo e respondendo bobagens anódinas, fingindo que estou me divertindo; quando fôr para aguentar com estoicismo o embate inútil das ondas da aporrinhação alheia; quando fôr para esperar sentado que a aranha do tempo termine de tecer seu relógio com a hora marcada, já sei o que vou fazer.

sábado, 22 de janeiro de 2011

2460) “Europa 51” (22.1.2011)



Este filme de Roberto Rossellini faz a ponte entre o neo-realismo italiano do pós-guerra e o cinema dos anos 1960, chamado de “realismo crítico” e que teve como grandes nomes Antonioni, Visconti, Pasolini, algumas obras de Fellini, etc. Europa 51 já se afasta do neo-realismo (uma escola de filmes feitos nas ruas, com personagens populares, atores não-profissionais, “modus operandi” de documentário) em ser parcialmente ambientado nos apartamentos da alta classe média. Irene (Ingrid Bergman) é a esposa norte-americana de um industrial e sofre uma crise ao perder o filho de doze anos. Influenciada por seu primo, um jornalista marxista, começa a frequentar favelas e a se comover com o destino dos pobres. Torna-se um desses personagens que, sem ideologia política ou fé religiosa, sentem a compulsão de fazer o bem e de ajudar pessoas que antes eram-lhe invisíveis. Irene é um desses personagens que tateiam o mundo em busca do caminho de uma possível santidade. Como o Nazarín e a Viridiana de Buñuel, como vários personagens de Pasolini, como o São Francisco cuja vida o próprio Rossellini filmara em 1950, como o Rocco de Visconti (cada um desses personagens com nuances bem diferenciadas), Irene tenta justapor a um mundo áspero e pragmático um ideal intuitivo, não-racionalizado, de bondade, caridade e fraternidade.

A beleza nórdica de Ingrid Bergman faz um contraste interessante com os rostos mais feios, porém imensamente mais vívidos e reais, dos pobres com quem ela contracena. Estrangeira no país, ela é mais estrangeira ainda naquele mundo de pessoas que convivem diariamente com a doença, a violência, a fome e a morte. Aos poucos ela abandona a família (como os personagens de Pasolini em Teorema) e acaba sendo internada numa clínica para doentes mentais, onde nem o psiquiatra nem o padre conseguem entender com clareza qual é o mal de que ela sofre. Sua santidade fora de lugar contrasta incrivelmente com a personagem Passerotto (Giulietta Massina), uma mãe solteira de seis filhos, incorrigível namoradeira, e que tira de letra todos os problemas do cotidiano. É para que Passerotto não perca um emprego que Irene a substitui em alguns dias de trabalho numa fábrica de papel, onde parece entender pela primeira vez o gigantismo das engrenagens que tornam possível o mundo de onde ela vem.

Outra sequência notável é quando Irene caminha pela clínica e encara as loucas, uma por uma, que olham para a câmara com diferentes graus de desequilíbrio e com expressões “uncanny” de total alienação, desenraizamento, perda de contato humano; ainda assim, Irene ajuda a salvar uma mulher que tenta se enforcar. Acalma-a com as mãos e o olhar, e lhe diz: “Você não está sozinha”, antes de deitar-se ao seu lado, como fizera com o filho, antes da morte dele. Na cena final, somente os pobres que ajudara parecem compreendê-la; ela não tem lugar no seu mundo pequeno-burguês, e caberá a Antonioni na década seguinte mostrar que mundo é esse.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

2459) Drummond: “Política” (21.1.2011)



Existem mil histórias de poetas que entram para a atividade político-partidária e se desiludem. O exemplo mais trágico é Paulo Martins (Jardel Filho) em Terra em Transe.

Um Dom Quixote se debatendo num mundo de Sanchos Panças. Um Jesus destrambelhado chutando-o-pau-da-barraca dos vendilhões do templo. Um idealista que foi naquela velha onda do “sonhar mais um sonho impossível...” e quando viu tinha cochilado ao volante e quem o acordou foi a colisão com o muro do Palácio do Governo.

Em seu livro Alguma Poesia, Drummond dedicou ao seu amigo Mário Casassanta (intelectual e educador, que veio a ser reitor da UFMG) o poema “Política” em que relata algumas melancolias desse personagem-tipo:

Vivia jogado em casa.
Os amigos o abandonaram
quando rompeu com o chefe político.
O jornal governista ridicularizava seus versos,
os versos que ele sabia bons.
Sentia-se diminuído na sua glória
enquanto crescia a dos rivais
que apoiavam a Câmara em exercício.

Vidinha antipoética, não é mesmo? Triste do poeta que para saber-se poeta depende dos elogios da imprensa ou dos amigos. Não que os dois não tenham importância, mas escrever poesia é uma façanha íntima que se esgota na página e na consciência do valor da página recém-escrita; o resto é política, é marketing, é comércio editorial.

E tem gente que para ser chamado de poeta é capaz de tudo, até de escrever poemas, mesmo não gostando de fazê-lo. Não buscam a poesia. Buscam o elogio do jornal governista (ou do oposicionista, o que dá no mesmo).

Entrou a tomar porres
violentos, diários.
E a desleixar os versos.
Se já não tinha discípulos.
Se só os outros poetas eram imitados.

Ter discípulos e imitadores é o horizontezinho de expectativa do nosso personagem; como não achar uma graça cruel nas desgraças que sofre? Mas para o cristão Drummond todo mundo é capaz de se auto-destruir por dentro, de renascer, de se auto-salvar:

Uma ocasião em que não tinha dinheiro
para tomar o seu conhaque
saiu à toa pelas ruas escuras.
Parou na ponte sobre o rio moroso, o rio que lá embaixo pouco se importava com ele
e no entanto o chamava
para misteriosos carnavais.
E teve vontade de se atirar
(só vontade).
Depois voltou pra casa
livre, sem correntes
muito livre, infinitamente
livre livre livre que nem uma besta
que nem uma coisa.

É o grito de ruptura do cara que percebe o grande engodo da política, onde “amizade” significa gratidão cega e lealdade não-crítica. O poeta dá um chute nos engodos e foge para um “rio” que lhe promete “misteriosos carnavais”.

Por outro lado, é o rompimento com a forma tradicional de poesia, parnasiana ou simbolista. Se Bilac quisesse falar sobre esse assunto aí escreveria um soneto, “A Desilusão de Péricles” ou coisa parecida. Drummond frita aquele conjunto de ilusões poético-alegórico-mitológicas no óleo fervente do coloquialismo, do jornalismo, do modernismo, da poesia livre que nem uma coisa.





quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

2458) “_Não contem com o fim do livro” (20.1.2011)



O primeiro livro interessante de 2011 está sendo esta coletânea de diálogos (Ed. Record, 2010) travados entre Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, com intermediação do escritor Jean-Philippe de Tonnac. Gosto de livros de diálogos assim, porque muitas vezes (como no presente caso) temos a sensação de estar na mesma sala, sem direito a voz, mas com direito a testemunhar a troca de idéias e de informações entre dois sujeitos que têm grande quantidade delas. Umberto Eco, autor de O Nome da Rosa é mais conhecido do que Carrière, que os cinéfilos conhecem como roteirista de dezenas de bons filmes, entre os quais alguns dos melhores de Luís Buñuel. O tema das conversas é o Livro, na era das tecnologias eletrônicas, das novas formas de edição e comercialização; e este tema tem um interesse adicional porque os dois, além de escritores, são bibliófilos e colecionadores de obras raras, com grande conhecimento da literatura e do mercado editorial dos últimos séculos.

Eco e Carrière conversam como quem joga frescobol, procurando devolver a bola ao outro da melhor maneira possível para que este abra uma nova vereda no diálogo. Mesmo quando discordam, o fazem com leveza e bom-humor. O fato de um ser italiano e o outro francês os leva a fazer comparações constantes (sem ufanismo, sem bairrismo) entre as artes dos respectivos países. A certa altura, Eco se pergunta por que motivo não havia uma grande pintura inglesa no tempo de Shakespeare, enquanto que no tempo de Dante havia Giotto, e na época de Ariosto havia Rafael. É como se em dado momentos as energias criativas de um país inteiro convergissem para uma única forma de arte, enquanto que em outros, por motivos obscuros, elas florescessem simultaneamente em muitas direções. Carrière cita uma frase meio cruel de François Truffaut, que dizia: “Não existe cinema inglês, não existe teatro francês”.

Com relação ao desaparecimento do livro, os dois observam com razão que as tecnologias digitais ficam obsoletas muito mais rapidamente que o livro impresso. Carrière vai buscar em sua biblioteca um pequeno incunábulo em latim, impresso em Paris em 1498; com exceção de umas poucas palavras obscuras, é perfeitamente legível como linguagem e como tecnologia, cinco séculos depois. E ele cita o caso de um cineasta belga, seu amigo, que tem no porão de casa 18 computadores diferentes, para poder consultar trabalhos antigos, criados em programas de PC que não são mais usados hoje.

Os dois comentam que a possibilidade atual de armazenar quantidades imensas de dados não significa que tudo isto continuará armazenado (e acessível) indefinidamente, e observam que mesmo uma biblioteca gigantesca não passa de uma mera seleção, um filtro de escolha, de prioridades, aplicado a uma cultura. “O que devemos preservar?” – eis a questão, porque é impossível preservar tudo, tanto quanto é impossível consultar tudo quanto foi preservado (e que é necessariamente uma pequena parte desse todo).

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

2457) As telenovelas de Woody Allen (19.1.2011)



Em cartaz na Paraíba, Você vai conhecer o homem dos seus sonhos, de Woody Allen, é uma espécie de novela da Globo, comprimida em uma hora e meia e falada em outra língua. O filme se passa em Londres mas só percebi isso quando vi o volante do automóvel no lugar errado; para mim, era a mesma Nova York de sempre, os mesmos casais-em-crise de sempre, os mesmos artistas frustrados, os mesmos cinquentões neuróticos. Não tenho visto seus filmes mais recentes, mas Woody Allen parece ter cristalizado um estilo em que cada filme parece se passar no quarteirão vizinho ao dos filmes anteriores.

Aqui estão de volta alguns personagens clichê de Allen: o ricaço de meia-idade que larga a esposa idosa por uma sirigaita que o trai com meio mundo; o escritor que nunca escreve, limita-se a queixar-se em voz alta do desinteresse dos editores e dos críticos; a mulher que recorre a cartomantes para ouvir coisas que lhe fazem bem; o marido jovem e ocioso que trai a mulher com quem quer que apareça à sua frente. São personagens e situações clichê, e por isto mesmo dependem do charme do ator ou atriz que os interpreta. Os melhores neste caso são Gemma Jones (a velhota que acredita no astral), Lucy Punch (a garota-de-programa vulgar e desengonçada), Naomi Watts (a secretária de Antonio Banderas), Josh Brolin (o escritor-marido cafajeste). Allen parece um diretor de óperas montando pela vigésima vez Aida ou Turandot pelo prazer de ver novos atores em velhos papéis.

Falei em novela; a vantagem de fazer cinema, como no caso de Allen, é o fato de poder comprimir os oito meses de uma novela em uma hora e meia de projeção. Se este filme fosse uma novela da Globo veríamos Banderas e Watts visitando vinte artistas plásticos e dizendo as mesmas coisas a cada um deles; veríamos todos os preparativos do casamento de Allan e Dia até seu cancelamento na véspera; veríamos 150 cenas de Anthony Hopkins sendo traído pela despilotada com quem casou. Um filme de hora e meia permite ao diretor resumir isso em meia dúzia de cenas, e dar a cada uma um quê de surpresa ou de reviravolta, antes que seu interesse se esgote.

O filme é mais divertido pelas situações do que pelos diálogos. Se o víssemos sem saber de quem era poderíamos pensar que era de um imitador de Allen (pois se trata de uma imitação, só que feita pelo próprio autor dos originais), porque desta vez há raros diálogos que valem como piada autônoma, piadas-de-uma-linha, frases devastadoras. As falas de Gemma Jones (“Cristal me disse que eu fui uma aristocrata numa vida passada...”) não são engraçadas em si, não são piadas; rimos porque nos parecem patéticas e estranhamente próximas de nós, e isto não se deve ao dialoguista, e sim à atriz. A crítica vive a cobrar de Woody Allen, aos 75 anos, uma nova obra-prima. Se ele fizesse um artesanatozinho como este todo ano eu me dava por satisfeito

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

2456) "O Cavaleiro de Bronze" (18.1.2011)



As chuvas catastróficas no Estado do Rio neste começo do ano aconteceram, por sincronicidade, na mesma semana em que eu estava lendo, no livro de Marshall Berman Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar, o capítulo dedicado à cidade de São Petersburgo, e à sua importância na consolidação dos projetos modernistas da Europa. Berman explica que Petersburgo foi uma cidade conquistada ao mar, um triunfo da engenharia e do urbanismo de sua época, uma espécie de apoteose do pensamento modernista de que a ciência, a tecnologia e a razão são capazes de vencer qualquer obstáculo, e que suas vitórias sempre representam a passagem para um estágio superior da vida humana.

Berman comenta o poema de Puchkin “O Cavaleiro de Bronze”, em que Petersburgo é destruída por uma enchente do rio: “O rio desabou com ódio e tumulto, inundou as ilhas, fez-se cada vez mais feroz, elevou-se e rugiu como uma máquina exalando vapor e, frenético, desabou finalmente sobre a cidade. (...) Um cerco! Um ataque! Ondas sobem até as janelas, como bestas selvagens. Barcos, numa massa desordenada, quebram os vidros com as popas. Pontes que o dilúvio rompeu, fragmentos de cabines, vigas, tetos, as mercadorias dos comerciantes precavidos, os pertences arruinados dos pobres, as rodas das carruagens da cidade, os caixões do cemitério, tudo flutua à deriva pela cidade”.

A criação da cidade pela engenharia e sua parcial destruição pelo rio/mar ganham dimensão simbólica pela força da poesia de Puchkin e da análise de Berman. Cada cidade é um pequeno triunfo modernista e tecnológico, uma modesta derrota imposta à Natureza (porque é em termos de conflito contra a Natureza que as cidades em geral são vistas). Cada vez que o império da Natureza contra-ataca, conquista, por sua vez, uma modesta vitória. O mundo moderno, conforme Berman o enxerga, perde cidades inteiras como uma cobra perde pele: como uma fase natural de seu próprio crescimento.

As obras da antiguidade sonhavam em permanecer de pé durante 40 séculos; as de hoje querem ser a apoteose do presente. Até quando desmoronam são um triunfo, porque o capitalismo/modernismo, insaciável, constrói outra por cima das ruínas da primeira. Nossas cidades são o avanço do descartável, do efêmero, bairros construídos sobre lixões, favelas espalhadas no mangue da beira-rio, efeitos colaterais da briga com a Natureza e primeiras vítimas dos seus contragolpes. Cada pirâmide precisa de 150 mil operários e consequentemente de 150 mil barracos; não existem pirâmides onde não existem barracos.

As enchentes de Teresópolis, Friburgo, São Paulo, bem como as de Palmares e de cidades alagoanas ano passado, são a pororoca entre civilização e natureza. Nossas cidades se desmancham no ar porque seu sentido se esgotou (para quem as construiu) no empreendimento da construção. É a civilização do presente, que constrói como se o futuro não viesse nunca, como se já tivéssemos atingido o fim da História.

domingo, 16 de janeiro de 2011

2455) Videoclip (16.1.2011)



Começa na escuridão total, um riff hipnótico de guitarra, palheta rascando nos bordões, enquanto a câmara recua e revela estar no interior de um labirinto de encanamentos enferrujados, gigantescos – a escala é dada por um operário com macacão de sarja azul e máscara de ferro, soldando uma juntura e produzindo uma girândola de faíscas prateadas, pelo meio da qual a câmara passa à medida que emerge o pulsar profundo da bateria e o solo lancinante de guitarra distorcida. 

Começa um lento travelling vertical ao longo da parede descascada em tons de ocre e azul-de-metileno, com pichações (pichações, nas paredes de um duto subterrâneo!), corações partidos, rabiscos pornô, raios em ziguezague, caveiras de vampiro, frases soltas, “concha de tu madre”, “abajo los de arriba”, a câmara continua subindo e vemos a descida vertical de uma bola de ferro atada à ponta de uma corda, quando entra o vocal rasgando os primeiros versos, “Embaixo do mundo tem um mundo de medo, tem um monstro, um segredo, tem uma montanha maior do que o mar...”

A parede é explodida e por trás dela vê-se uma parede que parece de chapas de aço luzidio cheias de rebites, que também é explodida enquanto a câmara avança para a frente, e depois vem uma parede de rocha basáltica negra e luzidia, que também explode, e depois desta há uma enorme folha de papel pautado, uma carta, escrita com tinta azul desmaiada, caligrafia cursiva com letras em cirílico, e essa carta gigantesca também explode e revela atrás de si (enquanto o verso é repetido, e guitarras dobradas em terça agora se superpõem à voz) uma epiderme de poros gigantescos, pele viva e colorida que arfa e se agita, e agora embora a câmara pareça estar avançando a imagem recua e a pele é do seio de uma moça deitada, cabeça apoiada no antebraço, está deitada numa mesa de laboratório cheia de cacos de vidro, enquanto os versos falam em “lençóis de gelo, lençóis de óleo negro, com moedas de ouro cristalizado...”

Rufos de tambores, uma meia dúzia de bateristas poderosos rufando em conjunto enquanto os contornos de imagem se desmancham a cada pancada, tremendo como treme a água de um copo à aproximação de um trem. 

E é de fato um trem que se desloca, pois a mesa de laboratório está no interior de um vagão hermeticamente fechado, e as vidraças estão ocupadas por homens-morcegos descarnados que esmurram os vidros querendo entrar. Teclados pungentes, rascantes, recortam o coro de vozes cavernosas que anunciam: “nas escadas da Noite de Walpurgis, rolam corpos queimando sem parar”. 

O trem avança no corredor de um hospital imenso, e nas portas dos quartos enfermeiras e pacientes o veem passar trovejante, e se persignam. E na última janela do trem que se afasta um homem nu, descarnado, amarrado por correntes de ferro ao gradil do vagão, canta “ecoa, ecoa, por dentro das veias de qualquer pessoa”, e a câmara se aproxima de sua boca e é engolida para sempre.


(Este conto está incluído no livro Histórias Para Lembrar Dormindo, Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2013) 



sábado, 15 de janeiro de 2011

2454) Escravos e robôs (15.1.2011)




(O Homem Bicentenário, filme de Chris Columbus)

Os robôs, nos livros e filmes de FC norte-americana, vieram substituir historicamente os escravos numa sociedade que (como a nossa, aliás) se criou em cima da escravidão, com tudo que ela acarreta. 

Nós brasileiros nunca poderemos esquecer (mesmo com Rui Barbosa queimando os arquivos do tráfico, pra fazer de conta que nada daquilo tinha acontecido) que o nosso país foi construído ao longo de séculos de exploração e massacre de negros africanos e de índios. 

Eu, pessoalmente, nunca escravizei ninguém, nunca bati nem mandei bater de chicote em ninguém, acho a escravidão uma calamidade. Mas sou beneficiário dela, porque toda minha infância foi paparicada por negras e mais negras que ajudavam minha mãe no serviço doméstico e me tratavam como se eu fosse filho delas mesmas. Eram assalariadas, e ao mesmo tempo eram, naquela promiscuidade sociológica que já conhecemos, tratadas em parte como pessoas da família, com autoridade para nos repreender e nos proibir, com acesso à casa inteira, tornando-se confidentes e conselheiras das patroas. 

 Não sei o que é ser dono de um escravo, mas sei o que é ter dentro de minha casa uma pessoa de condição social supostamente inferior que me deve trabalho, respeito e obediência. Dentro dos parâmetros, é claro.

Nos primeiros contos de Isaac Asimov muitos robôs tinham funções parecidas às das escravas caseiras: exercer tarefas domésticas e cuidar das crianças. 

 Não é difícil, durante a leitura daqueles contos, abstrair o desajeitado corpanzil metálico do autômato, com seu cérebro positrônico, e ver no lugar dele uma crioula rotunda e bonachona, com paciência infinita para as infinitas perguntas dos sinhôzinhos, e sempre cumprindo ao pé da letra, com exatidão quase maníaca, as ordens que recebeu dos patrões. 

José dos Santos Fernandes, meu colega do Clube de Leitores de Ficção Científica, tem um conto intitulado “As Crianças Não Devem Chorar”, em que um criado-robô acaba adotando uma medida radical para evitar que as crianças chorem durante uma ausência dos pais.

Um robô é um escravo, seja ele a empregada doméstica Rose de The Jetsons, seja o Andrew de “O Homem Bicentenário” de Asimov (que evolui lentamente até se tornar um homem livre). De preferência é alguém que não tem iniciativa alguma, que obedece ordens sem discutir, que tem inteligência bastante para responder perguntas mas não para formulá-las, que é possuidor de reservas aparentemente inesgotáveis de força física e de concentração mental, alguém capaz de dar a vida pelos seus patrões, alguém que nunca irá questionar, divergir, discordar, desobedecer.

A literatura que fala de robôs se relaciona com a enorme necessidade de que exista uma classe servil para obedecer aos sinhôzinhos que foram, de maneira brusca, privados daqueles seres tão submissos e esforçados. Era como se os brancos de classe média pensassem: “Já que não posso mais comprar um escravo, vou tentar fabricar um”.








sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

2453) A biblioteca de João Guimarães Rosa (14.1.2011)




Qualquer conjunto de informações pode ser interpretado de modos diferentes, desde que essa interpretação não seja contraditória e se atenha aos fatos. Interpretar não é o mesmo que provar; é ficar no simples terreno da conjetura. 

Minha conjetura de hoje é que Guimarães Rosa tinha uma razoável familiaridade com a literatura de gênero (fantasia, ficção científica, terror, policial, faroeste, etc.), e isso se refletiu em sua obra. 

Como suporte da minha conjetura usarei os livros que havia na biblioteca pessoal de Rosa quando de sua morte em 1967. Esses livros foram listados por Suzi Frankl Sperber em seu ensaio Caos e Cosmos (Editora Duas Cidades).



Rosa, leitor de obras fantásticas? Bem, ele tinha em casa o Manual de Zoologia Fantástica de Borges (também publicado como O livro dos seres imaginários), o Aura de Carlos Fuentes, além de obras de Garcia Márquez e Juan Rulfo. Não me surpreendi nem um pouco ao ver que os livros de Alice de Lewis Carroll também estavam presentes em sua estante. 

Os precursores da ficção científica também estavam por lá, como é o caso das obras completas de Luciano de Samosata, das Viagens de Gulliver de Swift e de O Golem de Gustav Meyrink. 

Ele tinha também a versão francesa de uma obra de H. G. Wells, L’île de l’Aepyonnis, que não estou conseguindo identificar. (Estou em viagem, e sem acesso a minha própria biblioteca. Não me venham com esse papo de Google. Mais de 90% do que tenho nas minhas estantes não está no Google.) [P.S. em 2017: trata-se do conto "A ilha do Epiórnis", que depois vim a traduzir e incluir na coletânea de Wells que organizei para o selo Alfaguara, O País dos Cegos e outras histórias, 2014. ]

Outros clássicos do fantástico que Rosa possuía são Peter Schlemihl de Adelbert von Chamisso (a história do homem que perdeu a própria sombra), Rashomon de Akutagawa (que deu origem ao filme famoso de Kurosawa), além de leituras místicas como Encontros com Homens Notáveis de Gurdjieff e Nothing dies de J. W. Dunne. 

Rosa também lia clássicos do gênero de aventuras, como As Minas de Salomão de H. Rider Haggard e a antologia Western Award Stories organizada por Zane Grey.

O Mistério Magazine de Ellery Queen, a famosa revista de contos policiais, era uma leitura que Rosa apreciava para relaxar, conforme confessa numa carta a seu tradutor italiano Edoardo Bizarri; e sua filha Agnes lembra numa entrevista à Revista do Livro que o pai a levou à banca de revista, comprou o EQMM e lhe aconselhou a leitura do conto clássico de mistério “A Dama e o Tigre” de Frank R. Stockton.

Claro que ter os livros na estante não prova que Rosa os tivesse lido, ou os tivesse apreciado, ou sido influenciado por eles. Mas prova que pelo menos ele os conhecia o bastante para tê-los em casa, levando-se em conta que numerosas mudanças de país o obrigaram a se desfazer de uma quantidade apreciável de obras. 

José Mindlin (Uma vida entre livros) conta que quando encontrou Rosa em Paris este lhe ofereceu à venda uma coleção de obras eróticas, porque suas filhas estavam ficando mocinhas e ele não queria manter aqueles livros em casa.






quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

2452) O Ultra-Google (13.1.2011)



Este novo fenômeno do mundo digital vem comprovar minha tese de que tudo no mundo se deve ao Acaso, e mesmo os outros fatores que parecem contrabalançá-lo – a Vontade, a Necessariedade, o Determinismo, o Livre Arbítrio, a Convergência Sócio-Estatística – não passam de bolsões isolados no corpo do Acaso, como minúsculas bolhas de ar aprisionadas na massa densa de um iceberg. Uma década atrás, o sonho e xanadu mental de todo brasileiro eram as seis dezenas cabalísticas da Mega-Sena. Hoje, são os oito algarismos do telefone do Ultra-Google. Um programa especial os altera sempre que alguém acerta, de modo que quem tiver essa chance pode fazer um pedido, por mais complexo que seja; depois, não adianta discar de novo, porque o número mudou. Suas chances voltam a ser as mesmas de todo mundo.

Muitos amigos meus devem ter discado esse número por engano e perdido a oportunidade apenas porque estranharam a resposta calma e polida do outro lado da linha: “Ultra-Google. Em que posso servi-lo?”. O primeiro que teve uma resposta à altura foi meu amigo Dedé, da carvoaria, que, respondeu em cima da bucha: “Rapaz, me traga aqui em casa duas dúzias de Skol bem geladinhas, um prato de moela, e uma mulher!” Riu e desligou. Meia hora depois, tocou-lhe à campainha uma moreninha no capricho, com a encomenda em dois isopores. E a conta, claro. Que ele pagou e não se arrependeu. Depois matutou como o Ultra-Google sabia seu endereço, e deduziu que era através da conta do celular com que ligou.

João Paulo, aquele baixinho que trabalha na Chesf, ligou um número aleatório e quando ouviu a resposta disse, pra testar: “Quero uma pizza grande metade calabresa e metade pepperoni, uma Coca dois litros, uma camiseta preta tendo impressa minha foto e meu telefone, o livro novo de Veríssimo e um celular TIM em meu nome”. Meia hora depois recebeu a encomenda, pagou em cheque, e só reclamou do preço da camiseta (50 reais).

Oito números! Parece quase nada, mas vivo tentando, tentando... Jodélzio, que mora aqui no andar de baixo, mangou de mim dizendo que isso era lenda-urbana da operadora para fazer as pessoas ligarem mais e pagarem mais. Fiquei meio dubitativo, mas aí me chegou um email entusiasmado de Germana, que é produtora executiva na Sempre-Vídeo. Ela ligou para um fornecedor (estavam fazendo um longa-metragem sobre Villa-Lobos) e o Ultra-Google atendeu. De mau humor, ela disse: “Preciso de um palacete mobiliado estilo 1930, um trem de ferro e duas orquestras sinfônicas”. Preciso falar mais? O filme já ganhou três prêmios.

Ultra-Google! Por que não pensei nisto antes, por que deixei os americanos mais uma vez passarem na minha frente na árdua maratona das invenções que mudam o mundo? Continuo aqui, celular em punho, polegar infatigável. Meu pedido está pronto e decorado na ponta da língua. É só uma coisa, uma coisinha só, uma coisica de nada, nada, nada-nadinha... Atenda, Ultra-Google, por favor!

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

2451) De Moebius a Cortázar (12.1.2011)



Seja dada uma faixa plana de material maleável, mais longa do que larga, e muito mais larga do que espessa. Um modelo padrão seria uma faixa de pano, ou de papel flexível, com o formato aproximado de uma régua escolar, ou seja, 30 cm de comprimento por 3 de largura. Essa faixa tem a feição peculiar possuir duas faces reversas e opostas. Só é possível passar de uma faixa para outra indo até alguma das bordas e transpondo-a. Este aspecto é crucial, porque a faixa tem que ser achatada, diferente de uma faixa roliça (algo como uma corda, um barbante, etc). Uma corda roliça é cilíndrica, é contínua ao longo de seu eixo, não possui arestas ou bordas, não estabelece limites, parece aos nossos olhos uma única superfície. Já a faixa achatada, em forma de régua, sugere a presença de dois espaços contrapostos, duas faces.

A faixa parece ter apenas duas dimensões (comprimento e largura), porque sua espessura de meio milímetro, ou ainda menos, é mínima, quase insignificante. Mas o fato é que ela tem três dimensões, sim, e está num espaço tridimensional, o que vivemos.

O que chamamos de Faixa de Moebius é uma faixa que foi torcida sobre si própria e depois teve suas duas extremidades coladas uma à outra. Isto só é possível porque o espaço em que vivemos tem três dimensões visíveis. Ninguém se admira ao manusear uma Faixa de Moebius, ainda que a esteja vendo pela primeira vez. Parece algo curioso, mas nossa mente a assimila de imediato, porque estamos acostumamos a deformações desse tipo, e porque sabemos, mesmo sem verbalizar as coisas nestes termos, que aquela faixa embora pareça ter apenas duas dimensões tem na verdade três, como qualquer outro objeto físico.

O aspecto original da Faixa de Moebius consiste no fato de que ela nos sugere uma transição imperceptível de um universo X para um universo Y que lhe é oposto e aparentemente inacessível. Isto ocorre através de duas figuras que podemos chamar a Torção e a Juntura. porque a partir de certo ponto a faixa começa a sofrer uma Torção que, por mantê-la intacta, é quase imperceptível. A Torção se acentua até perfazer um giro de 180 graus, quando então a face e o reverso da faixa são invertidas em relação ao espaço circundante. A essa altura a Torção se estabiliza e a faixa se alonga, aparentemente idêntica a si mesma, até que as duas extremidades se encontram na Juntura. Em geral é somente neste ponto que se dá a percepção do que aconteceu.

Este é um processo clássico de muitas narrativas fantásticas em que dois universos incompatíveis acabam se encontrando e tornam-se vasos comunicantes. A Torção se produz ao longo da narrativa pela adição gradual de elementos aparentemente normais; a Juntura se dá em geral num trecho específico, quando algo impossível parece acontecer. A mais simples e clara ilustração desse processo é o conto de Julio Cortázar “Continuidade dos Parques”, no livro Final de Jogo.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

2450) Positively 4th Street (11.1.2011)



Já li algumas biografias de Bob Dylan. Quando vejo uma, em geral procuro algum episódio crucial e leio o que o cara tem a dizer. Se me agradar, compro o livro. Se for coisa de tiete, deixo pra lá. Às vezes é melhor uma biografia contra (porque são raras) do que a favor (numerosas, redundantes). Uma boa biografia-contra é Bob Dylan de Bob Spitz, em que as fases de mau-caratismo e manipulação de Dylan no auge do sucesso (1963-66) são descritas de modo arrepiante. Mais light, mas nessa mesma direção, é este livro de David Hajdu, que na verdade descreve dois casais: as duas irmãs Baez (Joan e Mimi) e as variadas técnicas que dois jovens poetas-compositores, Dylan e Richard Fariña, empregaram para namorar com as duas, casar (Richard/Mimi) e assim encurtar o caminho rumo ao estrelato.

Como se sabe, Joan Baez era a Rainha da Folk Music quando Dylan não era ninguém. Os dois se conheceram. Ela se apaixonou por ele e percorreu os EUA apresentando-o em seus shows e gravando suas canções. Quando Dylan virou roqueiro, ela, que não gostava de rock, permaneceu fiel ao seu próprio repertório de nostálgicas baladas e suaves canções de protesto. Dylan mandou-a passear e casou com Sarah Lownds, com quem teve quatro filhos.

O grande personagem deste livro é Fariña, que parece ter sido um sujeito charmoso e implacável, inescrupuloso e cheio de talento. Tinha aquela ansiedade, natural nos jovens, de fazer sucesso o mais depressa possível, até porque tinha de se comparar o tempo inteiro a Dylan, mais jovem, mais talentoso e de ascensão mais rápida. Tenho um dos dois CDs que Fariña e Mimi gravaram juntos, Reflections in a Crystal Wind. São canções melancólicas com violão e dulcimer (uma espécie de marimbau chique), não tão boas quanto as que Dylan estava compondo, mas melhores que a maioria daquela época.

Fariña morreu em 1966 num acidente de moto, no dia do lançamento de seu (ótimo) romance Been Down So Long It Looks Like Up To Me. Tinha 29 anos. Na universidade foi grande amigo de Thomas Pynchon, que anos depois lhe dedicou o clássico Gravity’s Rainbow. Acho que diz algo sobre o charme e o talento de Fariña o fato de que mesmo depois de ler o livro de Hajdu (sarcástico e implacável contra ele e Dylan) fiquei admirando-o ainda mais. Era um talento borbulhante e tinha a cara-de-pau necessária para se meter em coisas que não sabia (não era bom cantor, p. ex.) e dar um jeito de se sair bem. (Mais sobre Fariña: http://tinyurl.com/3yk8q8h).

Apenas dois meses após a morte de Fariña, Dylan teve o seu famoso acidente de moto que o tirou de campo por um ano, quando ele aproveitou para fazer uma reviravolta em sua carreira. Parou com as drogas e as turnês e dedicou-se à vida doméstica e à composição de canções country. Fala-se muito que o acidente foi forjado. Dylan, sempre alerta, deve ter pensado: “Vou fingir que tive um acidente antes que tenha um, como ocorreu com Dick Fariña”.

domingo, 9 de janeiro de 2011

2449) O nosso pecado original (9.1.2011)



Pecado original é um pecado que remonta à nossa origem, não à nossa pessoa. Um pecado que não cometemos, mas que foi cometido por quem nos trouxe ao mundo, e que de certo modo nos influencia. Quando um indivíduo toma consciência desse pecado, que não dependeu de uma decisão ou de uma opção sua, sente uma culpa que o habita mas não lhe pertence, e que por isso mesmo lhe parece impossível de expiar.

A corrupção, em suas mil formas, está entranhada em nossa vida política, empresarial, econômica. Onde quer que exista muito dinheiro (e, de maneira perversa, onde exista dinheiro público) a corrupção surge. Seria um exagero, e, mais que isto, um absurdo, dizer que todo mundo rouba, ou que a maioria das pessoas rouba. Mas as facilidades para roubar são tão variadas que a muita gente é possível roubar de pouquinho em pouquinho durante muito tempo, ou roubar carradas de grana de uma vez só, sabendo que provavelmente vai ficar tudo por isso mesmo. E até os que não roubam acabam fazendo vista grossa, seja por medo de perder o emprego, medo de represálias, amizade ou obediência devida aos roubantes, ou a mera indiferença que leva tantos, inclusive os honestos, a dar de ombros e dizer: “Deixa pra lá... Todo mundo faz...”

Essas gigantescas quantidades de dinheiro roubado (Brasil Colônia, Brasil Império, Brasil República, Brasil de hoje) são uma argamassa que ajudou a consolidar nossa nação, porque grande parte do dinheiro roubado acaba, bem ou mal, sendo investido honestamente no comércio, no lazer, nos serviços em geral, nos imóveis, ou em poupanças e investimentos que vão financiar forças produtivas que nada têm a ver com o roubo. Famílias inteiras de gente honesta cresceram à sombra de um roubo antepassado. Roubou-se muito no Brasil, e decerto muito ainda se roubará, porque não se cura uma endemia com um estalo de dedos. E quando olhamos em volta (tantos prédios, tantos carros, tantas lojas, tantos negócios) somos forçados a reconhecer que se o dinheiro sujo do Passado fosse evaporado com uma varinha mágica, levaria consigo, para o Nada, uma quantidade vertiginosa de coisas.

A corrupção é um pecado original meu, seu, de todos nós. Mesmo não roubando acabamos, por vias transversas, nos beneficiando de coisas geradas com o produto do roubo (comércio, indústria, serviços, lazer). Não há batismo que nos purifique por inteiro. Talvez tenhamos que tratar a corrupção como outros pecados originais nossos (a escravidão, o latifúndio, os massacres étnicos) e tirar dela algo de positivo. O dinheiro pode ter origem suja, mas ainda assim pode ser reaplicado, num estado de limpeza provisória, na corrente econômica. Talvez a função de ser honesto, hoje, seja essa: lavar o dinheiro sujo que nos chega às mãos. Purificá-lo, geração após geração, até que talvez um dia sua origem maldita se dilua. E possamos acreditar que um mal possa produzir, por linhas tortas, algum tipo de bem.

sábado, 8 de janeiro de 2011

2448) O número fatal (8.1.2011)



Nossas vidas têm regularidades tão implacáveis quanto as que regem o balé dos planetas e a multiplicação dos cromossomos. Pensamos que somos dotados de livre-arbítrio, mas nosso livre-arbítrio consiste apenas em imaginar que o temos. Um indivíduo que salta de um arranha-céu é livre para pensar o que quiser, inclusive que poderia interromper a queda, mas, talvez até para provar o seu livre-arbítrio, ele toma a decisão de continuar caindo. A natureza se repete; é do seu feitio. Não podemos imaginar que um belo dia uma laranjeira produza, no meio das laranjas habituais, uma graviola. Ou um relógio.

O caso de Thomas Adelmann, por exemplo. É um pacato comerciante de Munique, dono de uma loja de relógios que herdou do avô através do pai. Talvez fosse ele (que a cada noite, antes de dormir, toma de um caderno da capa preta e anota em colunas, com letra miúda, as despesas do dia, desde o metrô ao cigarro, desde o jornal ao carnê do seguro, desde as frutas que trouxe para casa à mesada da filha adolescente) uma das pessoas mais capacitadas para perceber a existência do número fatal, o número que rege sua vida. E este número é 611.

Como se sabe, na vida não há coincidências, a não ser que consideremos uma coincidência o fato de que toda tarde, após o trabalho, voltamos para a mesma rua, entramos na mesma casa e dormimos na mesma cama. Coincidência, os números marcados numa régua estarem todos a um centímetro de distância um do outro? A vida de Thomas Adelmann estava regida em ciclos de 611 horas ou 611 dias. Esta era a raiz (o x-linha e o x-duas-linhas) que zerava de forma satisfatória as modestas turbulências produzidas no Universo pela sua presença; e o readmitia no fluxo da harmonia universal.

Thomas nunca somou as letras do seu nome completo, do da sua noiva, e dos pais e avós de ambos. Se o tivesse feito teria chegado ao número 611 e isto lhe pareceria um dado aleatório. O lacônico testamento do pai, deixando-lhe, previsivelmente, a loja na Schillerstrasse, tinha um total de 611 palavras. O bilhete de loteria que um vendedor com óculos verde-escuros lhe ofereceu numa estação de trem ostentava um número que era (mas como Thomas poderia saber?...) 611 ao quadrado (ele agradeceu e recusou o bilhete, que dias depois fez a fortuna de uma professora de piano regida pelo mesmo algoritmo). E como explicar a Thomas que o dia de sua morte ocorrerá num múltiplo de 611 em relação ao do seu nascimento?

Se existissem deuses poderíamos elogiar sua generosidade. Não os havendo, basta dizer que é uma feliz coincidência o fato de que as regras fundamentais do nosso destino nos são invisíveis, de tão amplas. São como as Linhas da Nazca, que traçam figuras quilométricas e imperceptíveis sob os pés dos incautos viajantes. Fosse o número, ao invés de 611, um simples 3 ou um simples 7, é possível que numa noite insone Thomas saltasse na cama, gritando “Eureka!”. Ao que nos consta, isto até agora não aconteceu.

2447) A arte do livro bizarro (7.1.2011)




Sou colecionador de livros bizarros, exóticos, meio absurdos. Não dos livros propriamente, porque não tenho dinheiro que os compre nem lugar onde os amontoe; mas das informações a seu respeito, que muitas vezes se limitam a ver a capa, o título, ler um resumo.

O Livro Bizarro nos lembra que o mundo dos livros se parece ao mundo da Natureza, onde as coisas brotam ao acaso, sem coordenação central. Basta esquecermos as cadeias de grandes livrarias e irmos fuçar Web afora (ou em sebos e bibliotecas) para descobrirmos livros tão improváveis quanto o ornitorrinco, o tubarão-martelo e a bactéria de arsênico.

Quem imaginaria, por exemplo, um livro intitulado Tudo Sobre Cascas de Feridas? É uma obra didática infantil de Genichiro Yagyu (1998), a quem tirei o chapéu: está aí um assunto que jamais me ocorreria.

Talvez me ocorresse, como a qualquer cidadão, o tema da obra de Deborah K. Hargis: Suas Pernas São Longas Demais: Como Ir Além das Desculpas nos Casos de Disfunção Erétil. É um manual que analisa as desculpas dadas pelos homens (“Você parece com a minha mãe”, “Acho que bebi muito”, “Acho que bebi pouco”, etc.) naquela mais constrangedora das situações.

Talvez fosse útil a gente consultar Mais 101 Utilidades Para um Gato Morto de Simon Bond (observem a sutileza do “mais”: trata-se decerto de uma segunda compilação), ou os provavelmente sábios conselhos de Donald Rogers em Ensinando Sua Esposa a Ser Viúva.

Temas mais leves podem ser encontrados em A Estranha História dos Dentes Falsos de John Woodforde, Amor e Sexo com Robôs de David Levy, Como Ensinar Física ao seu Cachorro (pena que não haja um livro visando filhos adolescentes!) de Chad Orzel, Um Atlas das Pulgas da Grã-Bretanha e Irlanda de R. S. George.

Tudo na vida tem dois lados, não é mesmo? Aqui está Castração – Vantagens e Desvantagens, de Victor Cheney, que não me deixa mentir.

São livros técnicos destinados a aprimorar nossa vida prática, mas não é apenas neles que a estranheza se manifesta. Fico pensando nas mirabolantes aventuras contidas no romance A Vagina Mal-Assombrada de Carlton Mellick (autor de outras obras como O Cadáver do Jesus Elétrico ou Zumbis e Fezes).

Ou nas revelações históricas contidas em Os Homens que Embalsamaram Lênin de Ilya Zbarsky. 

Sem falar nas emoções de Socorro! Estou Sendo Comido Por um Urso! de Mikle Hansen. (Gostou? Tem mais aqui: (http://tinyurl.com/2u8w63z).

O Livro Bizarro nos produz um estimulante alongamento dos músculos mentais, porque em geral ficamos presos àquela vidinha besta entre os clássicos do passado e os sucessos do presente.

O Livro Bizarro é o sexto lado do Pentágono e a terceira margem do rio. Não é feito por galhofa. São livros sérios, escritos por gente de verdade para quem aquele assunto merece respeito e atenção. O mundo é mais rico do que imaginamos, ainda que essa riqueza se expanda em direções que às vezes dá medo explorar.






quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

2446) O bandido João Branco (6.1.2011)



(Roy Barcroft, ou, no Nordeste, "João Branco")

Eu confesso que não tenho lembranças dele, mas muitos amigos meus recordam que Roy Barcroft era o indefectível vilão em mil faroestes em preto-e-branco das décadas de 1940 e 1950. Durão, mal-encarado, com voz intimidante, (apesar de na vida real ser, ao que se diz, um sujeito afável e brincalhão), Barcroft era o eterno fora-da-lei dando trabalho a mocinhos como Wild Bill Elliott ou Rocky Lane.

Ora, aqui no Nordeste surgiu, não se sabe como, a mania de dar aos personagens genéricos de Barcroft o nome de “João Branco”. Garotos de muitas cidades nordestinas sempre se referiam desse modo a ele quando contavam uns para os outros o filme que tinham visto na matinê da véspera: “Aí o artista entrou na caverna e quando viu apareceu João Branco com mais uns cinco bandidos, aí teve a maior briga, eles amarraram o artista em cima da linha do trem...”

Por que João Branco? Segundo Homero Fonseca, autor do romance “Roliúde” (a história do matuto que vive de contar filmes de Hollywood de cidade em cidade), os garotos de sua geração misturaram a figura de Roy Barcroft com o nome do autor das legendas em português dos filmes da época. E de fato eu me lembro que a maior parte dos filmes que eu via quando garoto se encerravam, na hora do “The End”, com uma derradeira legenda dizendo: “Legendas de João Branco”. (Anos depois, esta referência seria substituída por: “Tradução: S. da Rocha Spiegel”. Hoje, na TV a cabo, aparece: “Tradução: Drei Marc”). Por caminhos ínvios, o nome do tradutor foi associado, na imaginação dos pirralhos, à imagem do bandido.

Homero está tentando localizar quem foi de fato João Branco, que se ainda for vivo deve ter mais de 90 anos; e em que cidades essa relação entre seu nome e a figura de Roy Barcroft se estabeleceu. Isto é uma pesquisa curiosa porque o imaginário do faroeste norte-americano influenciou muitas gerações de garotos, desde os fãs de “Apolônio Cassíde” até os de Clint Eastwood.

Há pelo menos mais duas histórias curiosas misturando Nordeste e Faroeste. Não sei se muita gente fora dos limites de Campina Grande sabe que um dos grandes goleiros da Paraíba na década de 1950 foi o famoso Arricarêi, do Treze, e que este foi assim batizado por sua semelhança com Harry Carey, o grande ator de westerns dos anos 1920 e 1930. Um dos companheiros de infância e de peladas de Arricarêi era um neguinho chamado Zé Gomes, que, assim como o amigo, adotou para si um nome de cowboy, Jack Perry. Com o passar do tempo acabou ficando conhecido apenas como Jack, e depois que se tornou músico um diretor de rádio o batizou em definitivo como Jackson, e mais que isto: Jackson do Pandeiro.

Que pena não podermos perguntar a Arricarêi e a Jackson se eles alcançaram essa época em que o bandido era chamado de João Branco independentemente de seu nome em inglês. Seria um capítulo a mais na história do roliudismo que impregnou sucessivas gerações de garotos no brejo, sertão, cariri e agreste.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

2445) O colaborador de conteúdo (5.1.2011)



Abril de 2019 começou bem. Meus pais me convidaram para um almoço celebrando meu novo emprego. Achei ótimo, a não ser pelo fato de que chamaram meu avô, que não me dá força de jeito nenhum. No meio do almoço, Mamãe ergueu o suco de laranja dela e disse: “Vamos brindar, gente. Ao trabalho de Betinho, e muita realização profissional para ele!” Papai ergueu a cerveja: “E dinheiro, para ele repor o que a gente gasta há vinte anos”. Mamãe replicou: “Que coisa, Alberto, pra se dizer a um filho”. Vovô, que não bebe, ergueu um pedaço de carne espetado no garfo e tocou com ele no copo de meu pai, sem dizer nada. Ele não fala com minha mãe. “E você, meu filho?”, perguntou ela, “não vai brindar?” Eu ergui minha cerveja, fiz um gesto curto em semicírculo abrangendo a todos. “Do que se trata, afinal?” perguntou Papai.

Expliquei que eu agora era colaborador de conteúdo. O Space Booth já era a maior rede de relacionamento do mundo: quatro bilhões de usuários no planeta, 250 milhões só no Brasil. Estar ali era poder ser amigo de qualquer celebridade da música, do cinema, da TV. Havia até um novo setor, o da Política Radical, que estava fazendo muito sucesso. Vovô se manifestou: “Não são políticos radicais, são terroristas.” Tentei explicar que o conceito de terrorismo é subjetivo, afinal Tiradentes foi considerado terrorista, mas Vovô não deixa ninguém falar. Fez um discurso dizendo que no tempo dele terrorista não vendia autógrafo pela Internet e primeira-ministra do Irã não distribuía calcinhas com os eleitores. Na verdade, no tempo dele o Irã nem tinha mulher na política.

Mamãe pediu licença (ela fala e Vovô se cala pra não lhe responder, toda vez é assim) e peruntou o que era colaborador de conteúdo. Expliquei que eu tinha que fazer posts o dia inteiro, de tudo que me agradasse: músicas, filmes, vídeos, roupas... Cada post dando uma dica contava pontos. Quando eu acumulava pontos suficientes, tinha direito a brindes, viagens, Vale Lazer, Vale Barato, etc. Papai me interrompeu: “Sim, mas, e salário?” Papai é tão antiquado quanto Vovô, é do tempo de salário. Expliquei que na economia moderna a pessoa presta serviços e recebe produtos, e o dinheiro, mero intermediário, tende a desaparecer. Minhas refeições eram oriundas de meus posts sobre lanchonetes. Roupas, objetos pessoais, tudo tinha origem semelhante. Cem posts sobre música davam direito a um boné, e assim por diante. “Ah meu Deus, demora uma vida”, suspirou Mamãe, e eu disse que não, durante uma tarde normal eu fazia mais de 500 posts. E minha pontuação-de-perfil era repassada para meu Cartão de Crédito, me dando abatimento nas despesas relativas aos temas que eu postava. Vovô me chamou de vagabundo e lacaio do capitalismo; aí eu joguei meu trunfo: “Qué isso, Vovô, não banque o moralista, eu dei um comando de busca e vi que você já teve 3 mil amigos no Facebook”. Ele soltou um palavrão e saiu da sala. Toda vez é assim.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

2444) Uma noite em 67 (4.1.2011)



Assisti finalmente o documentário Uma Noite em 67 de Renato Terra e Ricardo Calil, que reconstitui a noite da grande final do Festival da Música Brasileira da TV Record. Misturando material de arquivo e entrevistas atuais, o filme pede aos artistas vencedores e derrotados, além de críticos e organizadores, que relembrem e comentem aquela época. Fazer filme assim é um dos muitos ovos-de-Colombo à disposição de documentaristas. O material de arquivo é farto (pelo que eu soube, tudo pertence á TV Record, então basta consultar um único arquivo em ver de fazer uma via-crucis de dezenas deles). Os entrevistados estão todos aí, acessíveis. E se o fato enfocado for de fato interessante, é só editar bem o material e correr pro abraço.

O Festival de 67 foi chamado o “festival da virada”, acho que porque marcou o surgimento do Tropicalismo como uma força musical, ainda meio sem forma e sem manifesto, uma espécie de dissidência pop da MPB. Isto ficou bem claro na premiação final. O primeiro e o terceiro prêmios foram para duas revelações da MPB tradicional, Edu Lobo (campeão com “Ponteio”, em parceria com Capinam) e Chico Buarque (“Roda Viva”). Ambos tinham ganho festivais recentemente (Edu com “Arrastão”, Chico com “A Banda”), então apesar de jovens já podiam ser considerados concorrentes pesos-pesados. O 2º. e o 4º. lugares foram para os tropicalistas: Gilberto Gil com “Domingo no Parque” e Caetano Veloso com “Alegria, Alegria”. Ficou explícito então o racha entre a música que recorria a fontes brasileiras tradicionais, principalmente o samba e outros ritmos regionais, e a música que assimilava influência do rock, da música pop internacional e de outras formas de linguagem (quadrinhos, cinema, etc.).

O filme é uma ótima Sessão Nostalgia para os que, como eu, acompanharam aquele festival pela TV, torcendo muito e sem saber direito por quem torcer. A rejeição ao Tropicalismo foi muito forte em alguns setores. Eu mesmo durante algum tempo martelei na tecla de que eles imitavam demais os Beatles, só depois reconheci o quanto havia ali de talento e originalidade. A oposição entre violão e guitarra era uma falsa oposição, uma metonímia mal colocada em que para rejeitar o todo (a invasão do lixo musical norte-americano) era preciso rejeitar uma parte (o uso de um instrumento elétrico).

Hoje já se sabe que o Tropicalismo venceu, e que sua vitória não eliminou o samba, a música rural, a canção regional e acústica. O estilo Tropicalista de se apresentar (guitarra, roupas exóticas, atitudes performáticas, modelos americanizados) virou um novo padrão. Algo parecido ocorreu com o tropicalíssimo programa de Chacrinha, que era transgressivo em seu tempo e hoje virou uma nova norma, sendo diluído e palidamente copiado por Faustão, Luciano Huck e todos os demais. Um padrão foi substituído por outro. O Sistema que assimila tudo assimilou o Tropicalismo, e os verdadeiros tropicalistas foram fazer outra coisa.